“Uma indígena, abandonada pelo amante europeu com quem vivera longos anos, vendo-o partir numa caravela de passagem, matou o filho comum, cortou-o em duas partes e lançou uma destas ao mar como que entregando ao homem a porção que lhe pertencia. A bordo perguntaram a este quem era essa mulher, ao que respondeu: não é ninguém, é uma índia sem importância” PRADO, Paulo. Obr. Cit. Pg. 63
Na história do Brasil houve uma relação diferente entre a constituição da Nação e do Estado se comparada à experiência das nações europeias, especificamente à Alemanha e à Itália de unificações nacionais tardias. Na Alemanha, por exemplo, a nação e a constituição de uma identidade nacional antecedeu e mesmo ajudou a constituir o Estado Nacional.
No Brasil processou-se algo bastante distinto. Nossa independência em face de Portugal deu-se em 7 de Setembro de 1822: como bem ilustrou José Murilo de Carvalho, o povo assistiu aos acontecimentos de rua “bestializado”, “abasbacado”, sem entender muito bem o que se passava, suspeitando tratar-se de um desfile militar, que pouco mudava sua pacata rotina.
No Brasil, o Estado Nacional antecedeu a nacionalidade: não havia em 1822 uma identidade nacional consolidada, mas um país dominado pelo instituto da escravidão, em que negros que eram esmagadora maioria não tinham cidadania mas eram antes encarados como “res”, não portadores de qualquer vínculo com a terra. Os demais, uma minoria, eram portugueses, estrangeiros, ou, quando brasileiros, se vinculavam mais a identidades regionais como paulistas, pernambucanos ou baianos. A constituição de uma identidade nacional seria um projeto que seria consolidado muito tempo depois e teria como principais artífices a chamada “geração de 30”, um conjunto de intelectuais que em outro contexto histórico se voltariam às origens históricas do Brasil em busca da conformação da nacionalidade, dos traços comuns que informariam a identidade da Nação.
Gilberto Freyre e seu “Casa Grande e Senzala” (1933), Sérgio Buarque de Hollanda e seu “Raízes do Brasil” (1936) e Caio Prado Jr. e seu “Evolução Política do Brasil” (1933) são os principais expoentes da supracitada geração: cada um à sua maneira irá voltar-se ao passado colonial brasileiro com finalidades parecidas: explicar o presente e buscar o sentido da História. Há todavia uma obra que está situada no mesmo contexto e que parece estar esquecida na historiografia. “Retrato do Brasil” (1928) de Paulo Prado antecedeu as três obras referidas e situa-se nos mesmos marcos, com o adicional de ter sido publicada no ano de 1928 e com o seu pioneirismo ter uma importância singular: como adverte o grande historiador Fernando Novais, “Retrato do Brasil” com a sua ousada tese de que o brasileiro é um povo triste, rompe com uma certa historiografia brasileira tradicional de tons ufanistas e com isto abriu caminho para as demais obras que configuraram em análises críticas, sob novos pressupostos teórico metodológicos, que foram além da tradicional configuração positivista da história do Brasil inaugurada por Vernhagen.
Desde início pleiteamos uma equiparação de “Retrato do Brasil” de Paulo Prado às demais obras da “Geração de 30” como clássico da História do Brasil. Certamente, trata-se, como o sub-título da obra sugere, de um ensaio; o leitor irá deparar-se como uma narrativa da história que antecede a disciplina da história das mentalidades, sem todavia, todos os rigores metodológicos devidos da disciplina da história. Mais uma vez, Paulo Prado, um historiador diletante, aprendiz de Capistrano de Abreu, produziu um “Retrato do Brasil”. Uma pintura impressionista cujos métodos estão expostos pelo próprio autor:
“Este Retrato foi feito como um quadro Impressionista. Dissolveram-se nas cores e no impreciso das tonalidades as linhas nítidas do desenho e, como se diz em gíria de artista, das “massas e volumes”, que são na composição histórica a cronologia e os fatos. Desaparecem quase por completo as datas. Restam somente os aspectos, as emoções, a representação mental dos acontecimentos, resultantes estes mais da dedução especulativa do que da sequência concatenada dos fatos”.
Por um lado uma corajosa confissão da subjetividade do historiador ao retratar e pintar um painel do passado. Por outro lado, o próprio retrato de limites metodológicos que envolvem noções apriorísticas, como se conclusões primeiras estivessem para ser provadas por um vasto repertório de documentos primários, que no livro envolvem especialmente documentos do Santo Ofício, relatos de viajantes do séc. XVI, XVII, Portugueses e Espanhóis, especialmente voltados ao problema da cobiça e da luxúria.
Contexto: autor e obra
Paulo Prado advém da ilustre e aristocrata família Silva Prado de São Paulo, ligada à comercialização de café e à construção de ferrovias. Filho do Conselheiro Antônio Prado, Ministro do Império, com grande fortuna e prestígio, o que garantirá ao filho uma vida sem grandes compromissos, apesar de ter dividido sua vida como empresário de café, jornalista, ativista literário e historiador.
Formou-se na tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e posteriormente passou temporada em França donde conheceu Eça de Queiróz que teve ótima impressão do moço.
De volta à São Paulo, ligou-se ao grupo de artistas modernistas e participou ativamente da construção da Semana da Arte Moderna de 1922. Foi amigo de Mário de Andrade e basta dizer que Macunaíma foi dedicada a...Paulo Prado. Pode-se dizer que os dois livros têm interfaces: o senso comum diz ser o Brasileiro triste enquanto a tese central do “Retrato” é a de que o brasileiro é um povo triste, em face da cobiça pelo enriquecimento rápido e da luxúria num contexto da falta de mulheres brancas e da disponibilidade de mulheres índias e negras. No Macunaína, o paradoxo se encontra no fato do herói brasileiro ser um “herói sem nenhum caráter”. Dentre as antinomias, pode-se observar como se começam os dois livros:
“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente” (Macunaíma); “Numa terra radiosa vive um povo triste” (Retrato do Brasil).
Paulo Prado deve ser associado quanto à sua produção intelectual ao movimento modernista. Os livros de Paulo Prado e de Mário de Andrade foram publicados em 1928. São daquele momento histórico a revolta dos 18 de Copacabana de 1922, levante tenentista que teve seu desenvolvimento no contexto de luta contra a República Velha, a Coluna tenentista, o posterior Crack de 1929, a fundação do Partido Democrático em São Paulo, do qual participou o pai de Paulo Prado: em suma os fins da primeira República.
Falou-se nas críticas ao livro, que o ensaio de Paulo Prado primava pelo pessimismo. Pelas cartas do autor, sabe-se que o mesmo discordava desta ideia. Paulo Prado considerava-se otimista, mas otimista diferente do velho ufanismo positivista. Seu otimismo é o mesmo de “um médico ou cirurgião” o que nos leva a concluir que seu movimento é o mesmo de alguém que faz um diagnóstico e propõe soluções. E Paulo Prado é explícito: a mudança está na Guerra ou na Revolução.
Evolução Histórica do Brasil
Em 1530, desde a descoberta, o Brasil encontra-se em situação de relativo abandono. Em face da pirataria Francesa, serão nestes anos que se inicia de fato a ocupação, a empresa colonizadora chefiada por Martim de Souza. Em 1549, com o governo Tomé de Souza, observa-se o início de uma relativa atividade administrativa na colônia como expedições oficiais e as primeiras missões jesuítas.
O fato é que desde o início do empreendimento colonial, a cobiça pelo ouro esteve presente dentre os portugueses, além de franceses e demais europeus que aqui aportaram. Eram aventureiros e estavam influenciados pelo contexto cultural do renascimento. A cobiça é assim um dos elementos que informam a tristeza brasileira. As bandeiras não só estiveram associadas à caça de índios e escravos fugidios, mas foram particularmente movidas pela cobiça:
“Junto aos novos descobertos vinha, porém, morrer enfraquecida, mas sempre alucinada, a bandeira. Conservava, como desde os tempos piratiningos, os traços característicos da sua formação: Interesse, Dinamismo, Energia, Curiosidade, Ambição. Faltavam-lhes os estimulantes afetivos de ordem moral e os de atividade mental. Nunca soubera transformar em gozo a riqueza conquistada. A sua energia intensiva e extensiva concentrava-se num sonho de enriquecimento que durou séculos, mas sempre enganador e fugidio. Com essa ilusão vinha morrer, sofrendo da mesma fome, da mesma sede, da mesma loucura. Ouro, ouro, ouro.”
Os outros dois elementos constitutivos da tristeza do brasileiros são a luxúria e o romantismo. “Após o coito os animais ficam tristes, exceto o galo que canta”, diz um adágio da medicina. O sensualismo que informa todo o período colonial foi amplamente retratado por cronistas, ao ponto de haver pedidos junto à Europa para que se trouxessem mulheres da corte ao Brasil, para se efetivar casamento e interditar situações de poligamia e endogamia envolvendo uma ampla miscigenação de brancos, negros e índios. Paulo Prado enxerga uma melancolia e pendor à fraqueza em face deste sensualismo que também remete à vocação romântica, ao discurso rebarbativo de nossos parlamentares e literatos e nossa tendência à apatia, indolência e passividade. “O romântico adora a própria dor” assevera Paulo Prado. O que não se sabe é como o seu ensaio, que dedica alguns parágrafos a um artista de marca menor como Aleijadinho, não faz qualquer menção a um verdadeiro milagre advindo dos mais baixos escalões das pirâmides sociais brasileiras: Machado de Assis. Seu realismo literário mordaz e sua literatura com vocação universal vai na contramão do Romantismo brasileiro e sua própria aparição coloca sob suspeita a tese do Romantismo.
Tristeza e Esperança
A “Tristeza Brasileira” deve ser encarada conforme a proposta metodológica enunciada pelo próprio autor e sugerida já no título do livro. Estamos diante de um retrato, ou se quisermos de uma fotografia do Brasil. Mesmo uma fotografia não é imparcial: o fotografado pode ser retratado num dia infeliz e não estar sorrindo e o erro do historiador é, a partir deste retrato, concluir que o personagem da foto é....triste. A história não é um SER. A história é um processo. É um estar sendo, de molde que o ensaio de Paulo Prado tem validade não pela conclusão, mas por outros aspectos. Suas fontes históricas são relevantes e têm a credibilidade por estarem baseadas ao seus estudos de história junto ao grande historiador Capistrano de Abreu: o ensaio é um livro saboroso sobre os costumes e o cotidiano do Brasil colonial. Como sugerimos, sua grande contribuição para a historiografia do Brasil diz respeito a certa rejeição ao ufanismo que abriu caminho à “Geração de Trinta”, e por isso deve ser equiparada àqueles grandes pensadores.
Parece-nos todavia que tais críticas são até triviais e não devem ter passado despercebidas pelo grande pensador Paulo Prado, alguém com um vasto repertório cultural. Talvez a tristeza que viu no povo Brasileiro diga respeito a si próprio. É natural para quem observa o problema do Brasil, o seu passado e o seu presente, suas potencialidades e todo desperdício, sintir uma enorme tristeza. Num estado como São Paulo, com o aquífero do Guarani, um dos maiores do mundo, há ainda racionamento de água. 111 mortos no presídio do Carandiru desarmados e todos os policiais absolvidos por legítima defesa. Vídeos de cárcere circulando pela internet com presos jogando futebol com a cabeça de um outro preso. Triste, triste, triste.