Este texto de Miguel Urbano Rodrigues, escrito em vida de Fidel, pode ser também lido como a comovida homenagem de odiario.info a El Comandante en Jefe.
Querido povo de Cuba:
Compareço com profunda dor para informar o nosso povo e os nossos amigos da América e do mundo que hoje, 25 de Novembro, às 10:29 horas da noite, faleceu o Comandante em Chefe da Revolução Cubana Fidel Castro Ruz. Em cumprimento da vontade expressa do Companheiro Fidel, os seus restos serão cremados. Às primeiras horas de manhã de sábado 26 a comissão organizadora dos funerais dará ao nosso povo uma informação detalhada sobre a organização da Homenagem póstuma que será feita ao fundador da Revolução Cubana.
¡Até à vitória sempre!
Raul Castro
Em meados dos anos 60, encerrando o XII Congresso dos Trabalhadores Cubanos, em Havana, Fidel formulou um desejo: «que no futuro poucos homens, ou mesmo ninguém, tenham a autoridade que tivemos no início da Revolução, porque é perigoso que seres humanos disponham de tanta autoridade».
O revolucionário cubano não podia então prever que essa situação, que o preocupava, iria manter-se por muitas décadas.
A doença que o levou agora a transferir a chefia do Estado e do Partido para o irmão desencadeou a nível mundial uma avalanche de opiniões contraditórias sobre o homem e a sua intervenção na História. Raramente em vida de um estadista célebre se escreveu e falou tanto sobre ele como agora sobre Fidel.
Ele foi na segunda metade do século XX o dirigente do Terceiro Mundo que maior influência exerceu pela palavra e pela acção no rumo de acontecimentos que marcaram o processo da descolonização e as lutas contra o imperialismo.
A meditação sobre a temática do poder pessoal acompanha-o desde a juventude.
Creio que foi sincero ao definir como perigoso o excesso de autoridade concentrada num dirigente. Foram as próprias circunstâncias da História que o investiram de um poder cada vez maior que não ambicionava.
Fidel tinha lido na universidade os clássicos do marxismo. Estudou-os depois na prisão. Mas a sua opção pelo socialismo resultou do movimento, da dialéctica da História.
O atentado terrorista que fez explodir La Coubre e a invasão mercenária de Playa Giron, ideada e financiada pelos EUA, ocorreram numa época em que o brado soy y seré marxista-leninista, que alarmou Washington, expressou mais a decisão de defender a Revolução situando-a no campo socialista, do que propriamente uma opção ideológica.
Fidel insistiu muitas vezes no significado que sempre atribuiu à avaliação da correlação de forças. Ao reconhecer que em Cuba foram cometidos muitos erros tácticos na condução do processo, conclui que não identifica um só erro estratégico importante. O mérito, acrescentarei, é seu.
Já na Sierra Maestra durante a luta armada, ele revelara dotes de um grande estratego. Mas foi posteriormente que, na confrontação permanente com o imperialismo, desenvolveu uma capacidade extraordinária de compreender o movimento da História nos momentos em que o seu rumo se define.
Escolha dolorosa
Isso aconteceu concretamente na fase crítica em que a Revolução, numa guinada brusca, rompeu com o discurso e a praxis dos anos da utopia para fazer uma escolha dolorosa. Cuba estava à beira do desastre económico e o único país que lhe estendeu a mão foi a União Soviética. Sem essa aliança tudo se teria afundado. Naturalmente o preço foi muito alto. A Revolução entrou num período cinzento – assim lhe chamaram – num processo de burocratização que atingiu duramente a intelligentsia, sufocou o debate de ideias e a criatividade em múltiplas frentes.
Mas não havia alternativa.
Até o Che, o homem novo do futuro, na definição de Fidel, o companheiro entre todos admirado e querido, que tinha sobre o mundo um olhar nem sempre coincidente, reconheceu na sua carta de despedida, ao partir para a aventura africana, que lamentava não se ter apercebido mais cedo das capacidades de liderança e de visão estratégica que faziam do comandante um revolucionário incomparável, único.
Lenine emergiu como um líder incontestado na mais brilhante geração de revolucionários profissionais europeus do século XX. Fidel não foi tão afortunado, nem isso era possível.
O núcleo de quadros revolucionários do Exército rebelde era insuficiente para enfrentar após a vitória os desafios colocados pela História. A geração que acompanhou Fidel forjou-se em circunstâncias muito adversas num pequeno país já bloqueado pelos EUA, vítima de uma guerra não declarada.
A excepção Fidel
Alguns historiadores criticam em Fidel um voluntarismo que nunca conseguiu dominar. Esse voluntarismo marcou-lhe aliás a intervenção nas lutas do seu povo desde os anos da Universidade. A própria definição que Fidel apresenta do «marxismo martiano» como síntese do materialismo dialéctico e do idealismo que vinha de Luz Caballero y Varela confirma uma evidência: a Revolução Cubana configura um desafio à lógica da História. Assim aconteceu com Moncada, com a aventura do Granma, a luta na Sierra, e o choque posterior com o imperialismo norte-americano. A decisão de resistir e a coragem do povo cubano no combate que confirmou ser possível a resistência serão recordadas pelo tempo adiante como acontecimentos épicos da História da humanidade.
Ora o épico não pode ser explicado pela razão.
Para compreendermos a excepção Fidel, os tratados de ciência política são insuficientes.
Identifico nele uma síntese de heróis mitológicos e de heróis modernos que o inspiraram num batalhar que já se tornou História.
Fidel traz à memória Aquiles, Martí e Bolívar.
Do aqueu e do venezuelano herdou a coragem sobre-humana e a fome dos desafios ao impossível aparente. Mas a sede de glória, que acompanhou Bolívar, nunca o fascinou e a desambição foi sua companheira permanente. Contrariamente a Aquiles não atravessou o mar para destruir as Tróias contemporâneas. A sua gente atravessou um oceano mas para levar solidariedade a povos que se batiam pela liberdade.
Do cubano Martí aprendeu que revolução alguma pode vencer sem fidelidade a uma concepção ética da vida, sem amor pela humanidade. E, por humano, apresenta também alguns defeitos dos três.
Ao escrever estas linhas recordo uma conhecida afirmação sua: o dever do revolucionário é fazer a revolução.
Poucos homens em milénios de História colocaram com tanta coerência a sua vida ao serviço desse objectivo, erigido em infinito absoluto.
Imagino-o na sua cama, no hospital, insensível ao vendaval de calúnias desencadeado pela sua doença e tocado pelo furacão simultâneo de afecto, respeito e admiração.
Os revolucionários de todos os povos, onde quer que se encontrem, desejam-lhe um rápido restabelecimento. Agradecem-lhe o que fez pela humanidade.
Quase carregou o Estado e o Partido às costas em períodos de crise. E isso foi negativo. Por ter consciência da lei da vida, sabe que exigiu de si muito mais do que podia e devia. Exagerou.
Recuperada a saúde, poderá ser ainda por longos anos uma consciência actuante da humanidade revolucionaria se, distanciado de esgotantes tarefas do quotidiano, utilizar o tempo para transmitir ao seu povo e ao mundo o saber e a experiência acumulados, a sua lição de moderno Aquiles, de discípulo de Bolívar.
El comandante
Vivi oito anos em Cuba. Mais de uma vez, escutando durante muitas horas os seus discursos na Praça da Revolução em Havana, ou em comemorações do 26 de Julho noutras cidades da Ilha, me interroguei sobre a contradição entre um poder pessoal enorme, minimamente partilhado a nível decisório, e o humanismo de quem o exercia, identificável no amor pelas crianças e na solidariedade com os oprimidos e excluídos de todo o planeta.
Comportam-se como hipócritas conscientes aqueles que por ódio ou fanatismo ideológico qualificam Fidel de ditador brutal e sanguinário, de tirano feroz.
Sabem que a acusação é falsa
Quem conhece um pouco Cuba não ignora que existe ema relação de afecto profundo entre o povo cubano e el comandante en jefe. Ele é amado pela esmagadora maioria dos seus compatriotas. Depositam nele uma confiança absoluta. É um sentimento que não cultivou e talvez o inquiete por estar consciente de que qualquer dirigente, por mais dotado e sábio que seja, não pode substituir o colectivo como sujeito transformador da História.
Não há calúnia mediática que resista à prova da vida. Definir como ditador um dirigente amado por um povo que governa há quase meio século é um absurdo maldoso. O consenso entre o governante e a sua gente ridiculariza a diatribe forjada pelos seus inimigos.
A grandeza de Fidel teria obviamente de desencadear campanhas de ódio. Mas não fez surgir somente inimigos e caluniadores. É inseparável também do aparecimento de uma geração de epígonos. Em Cuba e pelo mundo afora eles apareceram. Ora a tendência para a glorificação incondicional dos grandes homens é sempre negativa. Porque não há governante perfeito. E Fidel sabe disso e não gosta que vejam nele um super-homem.
Ele é o que é, um ser mortal, modelado por uma vontade de aço, uma inteligência excepcional, e uma fome insaciável de humanização revolucionária da vida, mas com uma lúcida percepção das limitações da condição humana.
Este texto foi publicado no “Avante!” N.º 1706, 10.Agosto.2006. Foi também publicado no “Granma”.
http://www.odiario.info/um-revolucionario-incomparavel-fidel-um-aquiles/