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Sábado, 11 Março 2017 04:21 Última modificação em Quinta, 23 Março 2017 08:10

A fragmentação de Portugal: A Jangada de Pedra, de José Saramago Destaque

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País: Portugal / Língua/Educaçom / Fonte: Diário Liberdade

[Rodrigo Moura] A Jangada de Pedra foi publicada pela primeira vez em 1996 e problematiza através do elemento ficcional uma nova concepção de Portugal a partir de uma viagem insólita da Península Ibérica em direção ao desconhecido. De certa forma, José Saramago, com um caráter, por assim dizer, profético, lança um olhar sobre esse Portugal que se confronta com a União Européia e com a possibilidade de múltiplas identidades que ultrapassam as barreiras do território e da cultura portuguesa.

Esse romance que é muitas vezes chamado de relato pelo narrador, nos convida a (re)pensar o valor das fronteiras construídas geograficamente. "As identidades flutuam no ar" (BAUMAN, 2005, p.19). Além disso, ao que parece toda a lógica de A Jangada de Pedra é estruturada em termos de uma viagem completamente utópica, quer dizer, a Península lança-se ao desconhecido em procura da utopia. É importante ressaltar que, nesse romance, observamos dois tipos de viagem: uma delas é a viagem da própria Península, a outra é a feita pelos personagens buscando sentido a suas vidas totalmente fragmentadas e deslocadas. Essa fragmentação se estende, portanto, a todo o país.

Em se tratando de fragmentação, poder-se-ia situar essa obra dentro do chamado "Post-Modernismo" cujos principais aspectos, como nos lembra Ana Paula Arnaut são: " a maioria dos géneros e a decorrente fluidez genológica, num ostensivo e sempre subversivo: a insistente e crescente polifonia, em algumas situações a tocar as fronteiras do indecifrável, da fragmentação e da (aparente) perda de narratividade; os exercícios metaficcionais, já presentes em romances cómicos e satíricos do século XVIII, mas agora renovados em grau e qualidade da escrita da história à re-escrita da História" (ARNAUT, 2010, p.131)

Faz-se necessário salientar também a importância da entrada de Portugal para a União Européia, mesmo que publicação do romance tenha ocorrido anos deste acontecimento, pode-se pensar que a obra de José Saramago já aponta para um Portugal mais unido aos laços europeus e confuso, fragmentado dentro de si. O romance de Saramago traz, de certa forma, algumas tentativas de resposta para o sentimento pessimista e fragmentário que ronda essa nova realidade portuguesa desde o Ultimatum Inglês em 1890 quando os portugueses foram obrigados a retirar suas tropas de África.

Na ficção Saramaguiana, a viagem da Península e, sobretudo, de Portugal e seu desprendimento do velho continente representa, de alguma forma, uma busca por singularidade em meio a fragmentação, por uma identidade própria em meio a essa verdadeira multiplicidade de identidades e identificações que na contemporaneidade aparece na sua maneira mais fluida. Essa noção vai de encontro ao conceito de "pertencimento" de Zygmunt Bauman em "Identidade" (2005) em que consiste em levantar a hipótese de que as identidades culturais estão totalmente atreladas ao local de nascimento do sujeito."O pertencimento teria perdido o seu brilho e seu poder de sedução, junto com a função integradora-disciplinadora, se não fosse constantemente seletivo nem alimentado e revigorado pela ameça prática da exclusão" (BAUMAN, 205, p.28)

A Jangada de Pedra problematiza também a concepção de marginalidade de Portugal como nação. E como assinala Eduardo Lourenço, essa tal "pequenez"é o que confere identidade ao povo português. Além disso, o autor indica no "caso português" não um problema de identidade sim de imagem, ou seja, como o povo português se enxerga na Europa e no mundo.

"... um povo como Portugal não tenha realmente problema de identidade, nem de identificação, como paradoxalmente, e a outro nível, os teve sempre e continua a ter a imperial Espanha, aquela que com maior acuidade, o seu maior ensaísta chamou invertebrada.É que o mistério de nossa identidade, de nossa permanência e continuidade ao longo dos séculos está precisamente relacionado com a nossa pequenez" (LOURENÇO, 1994, p.18)

Em A Jangada de Pedra, vemos claramente que os pequenos países e povos estão atrelados a um certo esquecimento quando o narrador retrata o caso de Andorra de que: "imperdoalvelmente nos íamos esquecendo, é o que o que estão sujeitos todos os pequenos países" (SARAMAGO, 2006, p.29). Além disso, dever-se-ia citar o exemplo do personagem de Galiza, Região Autônoma da Espanha, mas que mantém vínculos profundos com a lusofonia, sobretudo pela sua formação cultural e literária. O personagem pergunta: "Para onde vai esta água?" e ninguém nota a existência deste personagem. O caráter marginal de Portugal se materializam nessa viagem ao desconhecido para tentar chegar a algum conhecimento de si. Toda essa fragmentação, característica de nossa sociedade moderna, faz com que se precise viajar dentro de si e para além para que alguma resposta seja dada.

Nesse processo de novas significações, concepções e identificações, encontramos o elemento do amor. Em A Jangada de Pedra, podemos dizer que o amor é o único meio que liga e une personagens e uma narrativa totalmente atordoada. Tais personagens que deixam a banalidade de suas vidas para embarcarem numa viagem sem sentido e, tavez, sem volta, logo, em direção a um auto-conhecimento. Os personagens Joana Carda e José Arnaiço, Joaquim Sassa e a galega Maria Guaraiva iniciam relações amorosas, enquanto Pedro Orce, o mais idoso fica refém da tristeza e da solidão e sua morte é inevitável.

Esses viajantes dos novos tempos decidem continuar seu longo trajeto, mesmo após a morte do companheiro de viagem Pedro Orce, em direção a um futuro incerto, em direção ao medo, ao desconhecido. O romance termina de forma enigmática, elucidando a fragmentação de Portugal, da Península e dos personagens, tendo em vista que as mulheres ficam grávidas e a vara de negrilho se torna verde. Essa vara que a personagem Joana Carda riscou o chão no início do romance e que, possivelmente, desencadeou essa ruptura da Península. A representação da cor verde e da gravidez no final do romance pode apontar para um nascimento de uma nova concepção de identidade portuguesa tanto em relação a sua cultura, literatura e relação com outros povos.

"Tendo tudo isto acontecido, dizendo o tal português, poeta que a Península é uma criança que viajando se formou e agora se resolve no mar para nascer, como se estivesse no  interior de um útero aquático, que motivos haveria para espantar-nos de que os humanos úteros das mulheres ocupassem" (SARAMAGO, 1989, p.281)

Rodrigo Moura é doutorado em Literatura Comparada e Teoria da Literatura e dedica seu estudo para a literatura portuguesa e galega contemporânea abordando temas como: identidade, identificação, exílio, sujeito e espaço.

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