Esse romance que é muitas vezes chamado de relato pelo narrador, nos convida a (re)pensar o valor das fronteiras construídas geograficamente. "As identidades flutuam no ar" (BAUMAN, 2005, p.19). Além disso, ao que parece toda a lógica de A Jangada de Pedra é estruturada em termos de uma viagem completamente utópica, quer dizer, a Península lança-se ao desconhecido em procura da utopia. É importante ressaltar que, nesse romance, observamos dois tipos de viagem: uma delas é a viagem da própria Península, a outra é a feita pelos personagens buscando sentido a suas vidas totalmente fragmentadas e deslocadas. Essa fragmentação se estende, portanto, a todo o país.
Em se tratando de fragmentação, poder-se-ia situar essa obra dentro do chamado "Post-Modernismo" cujos principais aspectos, como nos lembra Ana Paula Arnaut são: " a maioria dos géneros e a decorrente fluidez genológica, num ostensivo e sempre subversivo: a insistente e crescente polifonia, em algumas situações a tocar as fronteiras do indecifrável, da fragmentação e da (aparente) perda de narratividade; os exercícios metaficcionais, já presentes em romances cómicos e satíricos do século XVIII, mas agora renovados em grau e qualidade da escrita da história à re-escrita da História" (ARNAUT, 2010, p.131)
Faz-se necessário salientar também a importância da entrada de Portugal para a União Européia, mesmo que publicação do romance tenha ocorrido anos deste acontecimento, pode-se pensar que a obra de José Saramago já aponta para um Portugal mais unido aos laços europeus e confuso, fragmentado dentro de si. O romance de Saramago traz, de certa forma, algumas tentativas de resposta para o sentimento pessimista e fragmentário que ronda essa nova realidade portuguesa desde o Ultimatum Inglês em 1890 quando os portugueses foram obrigados a retirar suas tropas de África.
Na ficção Saramaguiana, a viagem da Península e, sobretudo, de Portugal e seu desprendimento do velho continente representa, de alguma forma, uma busca por singularidade em meio a fragmentação, por uma identidade própria em meio a essa verdadeira multiplicidade de identidades e identificações que na contemporaneidade aparece na sua maneira mais fluida. Essa noção vai de encontro ao conceito de "pertencimento" de Zygmunt Bauman em "Identidade" (2005) em que consiste em levantar a hipótese de que as identidades culturais estão totalmente atreladas ao local de nascimento do sujeito."O pertencimento teria perdido o seu brilho e seu poder de sedução, junto com a função integradora-disciplinadora, se não fosse constantemente seletivo nem alimentado e revigorado pela ameça prática da exclusão" (BAUMAN, 205, p.28)
A Jangada de Pedra problematiza também a concepção de marginalidade de Portugal como nação. E como assinala Eduardo Lourenço, essa tal "pequenez"é o que confere identidade ao povo português. Além disso, o autor indica no "caso português" não um problema de identidade sim de imagem, ou seja, como o povo português se enxerga na Europa e no mundo.
"... um povo como Portugal não tenha realmente problema de identidade, nem de identificação, como paradoxalmente, e a outro nível, os teve sempre e continua a ter a imperial Espanha, aquela que com maior acuidade, o seu maior ensaísta chamou invertebrada.É que o mistério de nossa identidade, de nossa permanência e continuidade ao longo dos séculos está precisamente relacionado com a nossa pequenez" (LOURENÇO, 1994, p.18)
Em A Jangada de Pedra, vemos claramente que os pequenos países e povos estão atrelados a um certo esquecimento quando o narrador retrata o caso de Andorra de que: "imperdoalvelmente nos íamos esquecendo, é o que o que estão sujeitos todos os pequenos países" (SARAMAGO, 2006, p.29). Além disso, dever-se-ia citar o exemplo do personagem de Galiza, Região Autônoma da Espanha, mas que mantém vínculos profundos com a lusofonia, sobretudo pela sua formação cultural e literária. O personagem pergunta: "Para onde vai esta água?" e ninguém nota a existência deste personagem. O caráter marginal de Portugal se materializam nessa viagem ao desconhecido para tentar chegar a algum conhecimento de si. Toda essa fragmentação, característica de nossa sociedade moderna, faz com que se precise viajar dentro de si e para além para que alguma resposta seja dada.
Nesse processo de novas significações, concepções e identificações, encontramos o elemento do amor. Em A Jangada de Pedra, podemos dizer que o amor é o único meio que liga e une personagens e uma narrativa totalmente atordoada. Tais personagens que deixam a banalidade de suas vidas para embarcarem numa viagem sem sentido e, tavez, sem volta, logo, em direção a um auto-conhecimento. Os personagens Joana Carda e José Arnaiço, Joaquim Sassa e a galega Maria Guaraiva iniciam relações amorosas, enquanto Pedro Orce, o mais idoso fica refém da tristeza e da solidão e sua morte é inevitável.
Esses viajantes dos novos tempos decidem continuar seu longo trajeto, mesmo após a morte do companheiro de viagem Pedro Orce, em direção a um futuro incerto, em direção ao medo, ao desconhecido. O romance termina de forma enigmática, elucidando a fragmentação de Portugal, da Península e dos personagens, tendo em vista que as mulheres ficam grávidas e a vara de negrilho se torna verde. Essa vara que a personagem Joana Carda riscou o chão no início do romance e que, possivelmente, desencadeou essa ruptura da Península. A representação da cor verde e da gravidez no final do romance pode apontar para um nascimento de uma nova concepção de identidade portuguesa tanto em relação a sua cultura, literatura e relação com outros povos.
"Tendo tudo isto acontecido, dizendo o tal português, poeta que a Península é uma criança que viajando se formou e agora se resolve no mar para nascer, como se estivesse no interior de um útero aquático, que motivos haveria para espantar-nos de que os humanos úteros das mulheres ocupassem" (SARAMAGO, 1989, p.281)
Rodrigo Moura é doutorado em Literatura Comparada e Teoria da Literatura e dedica seu estudo para a literatura portuguesa e galega contemporânea abordando temas como: identidade, identificação, exílio, sujeito e espaço.