Apesar de, a nosso ver, os reparos feitos estarem deslocados do centro das questões abordadas no texto, os assuntos que levantam cremos merecerem um debate — não só porque se referem à actualidade política que estamos a viver no país, e ao modo de a esquerda a encarar, mas também porque remetem, de forma mais geral, para o papel de uma esquerda revolucionária nas actuais condições. Aqui vai pois um comentário, esperando que a discussão não se fique por aqui.
A parte final da crítica feita por Afonso Gonçalves usa a técnica do sofisma: atribui ao texto aquilo que ele não diz e depois tenta pôr a ridículo o que lhe atribui. Fácil, portanto. O leitor que repare no seguinte: foi AG que veio com a expressão “milagre” para classificar aquilo que o Editorial designa como a necessidade de “um grande movimento social” para mudar a relação de forças actual entre o capital e o trabalho.
É apelar a um milagre dizer que é preciso fazer deslocar para o campo do confronto de classes a acção política que hoje se trava no espaço limitado (física e politicamente) dos acordos parlamentares? Ou a acção de massas que se resume a greves e paralisações, necessárias, mas isoladas e de alcance curto?
É acreditar em milagres dizer que só o confronto de classes pode assustar e fazer recuar a burguesia?
Outra questão é saber se será fácil desencadear, ou se está à vista o surgimento dessa movimentação social. É evidente que não, nem isso é sugerido no Editorial — pelo que o reparo de Leonel Clérigo de que não basta “assobiar” passa ao lado da questão.
A questão, a meu ver, é outra.
A direita, o capital, sofreu no final do ano passado um revés político mas (é preciso repeti-lo) não perdeu as rédeas do poder, entendido como a capacidade para agir de forma determinante em todos os aspectos da vida do país, desde a economia à propaganda. Toda a crítica que o BE, o PCP e a CGTP fazem ao governo PS consiste em a) tentar “incentivá-lo” a resistir aos ditames de Bruxelas e da Alemanha, b) reclamar grão a grão a reposição das perdas salariais e outras dos quatro anos passados.
Ora, esta linha estará votada ao fracasso, a prazo maior ou menor, se não se forjar entretanto uma movimentação das classes trabalhadoras no sentido de inverter a relação de forças que lhes é desfavorável. Este é um dado que tem a ver com a consciência dos trabalhadores acerca da situação presente e do que precisam de fazer diante dela. Não é papel da esquerda revolucionária despertar essa consciência?
A descompressão conseguida com o afastamento da direita do governo não pode ser tomada como um ganho em si (menos ainda, definitivo), mas como uma oportunidade, estreita mas valiosa, para fazer crescer entre os trabalhadores a independência face ao poder e ao capital, sem o que aquele virar na balança de forças não existirá.
Não se trata, portanto, de discutir a velocidade a que se recuperam as perdas dos quatro anos passados; trata-se da questão política de conferir à acção dos trabalhadores capacidade de influenciar de forma decisiva o rumo dos acontecimentos.
Não é isso que vemos na via seguida pelos apoiantes parlamentares do governo, nem pela CGTP (para já não falar na desgraça, esperada aliás, da UGT).
O que o Editorial procurou dizer foi, precisamente, que é preciso que os trabalhadores se convençam de que têm de o fazer eles mesmos, e de que ninguém o fará por eles. E, da parte de quem, modestamente como nós, procura encontrar caminhos para afirmar uma esquerda revolucionária, a primeira coisa a fazer é falar nisso, escrever sobre isso. Ou seja, dizer que sem um movimento social independente do poder capitalista, nada feito.
Muito mal vai a esquerda quando o simples facto de se falar nestas coisas elementares, mas indispensáveis e primordiais, é tomado como um apelo a milagres e a utopias.
Isto é “pegar num altifalante”, como LC tenta caricaturar?
Em Outubro passado, quando a formação do actual governo ainda não era certa, dizíamos que “a questão decisiva que se coloca é como vai prosseguir a luta de massas contra a política de ataque ao trabalho”. E defendíamos que “as condições para que os trabalhadores, no actual quadro de forças, redobrem a resistência à austeridade e criem bases para repor de pé a luta contra o capital” eram o aumento da sua capacidade reivindicativa, a defesa dos seus interesses de classe e a sua independência política face ao poder.
É nesta base que acreditamos na possibilidade de renascimento de “um grande movimento social”. Não dizemos que seja fácil ou esteja à vista, mas que é por essa via. Se AG e LC acham que isto configura a invocação de um milagre, digam então quais as vias que preconizam para a afirmação de uma esquerda revolucionária — a partir do ponto em que estamos. Revelem a vossa “análise concreta da situação concreta”, como recomenda LC.
Já que as críticas entraram pelos caminhos do Além, aqui deixo alguns exemplos de “milagres”, que todos presenciámos, mas a que AG e LC parece não darem importância:
- A movimentação operária-popular de 74-75 em Portugal, que ultrapassou em muito as previsões mais optimistas que se poderiam fazer a 24 de Abril;
- As revoltas árabes de 2011, de uma ponta à outra do Mediterrâneo, desencadeadas sobre um solo fértil de ódio social às ditaduras e à exploração, mas que apanharam de surpresa todos os experientes e atentos serviços secretos (nacionais, europeus e norte-americanos);
- A longa e heróica luta dos trabalhadores gregos contra a espoliação made in UE, que o proletariado do resto da Europa, todo ele acobardado, deixou que fosse isolada para depois a declarar “irrealista”;
- As greves que alastram hoje mesmo em França e na Bélgica, enfrentando o estado de emergência, e que paralisam dois países do coração da Europa imperialista.
Não é que eu seja um crente nas virtudes dos movimentos de massas espontâneos, sobretudo pela dificuldade em serem duráveis e produzirem transformações efectivas. Mas não ver neles os sinais duma mudança social possível, e que amadurece, é cegueira política.