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Segunda, 20 Junho 2016 21:07

Contratos de associação: um cimento aglutinador da maioria?

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País: Portugal / Língua/Educaçom / Fonte: Jornal Mudar de Vida

O significado da polarização política em torno dos contratos de associação dos colégios privados com o Estado não pode ser subestimado.

 Em 29 de Maio veio para a rua a “onda amarela” com umas dezenas de milhares de pessoas diante do parlamento, a defenderem os interesses dos colégios privados. Em 18 de Junho será, pelo contrário, a manifestação convocada pelos sindicatos em defesa do ensino público.

Quando os neo-liberais querem “mais Estado”

Há, desde logo, um contraste entre o crónico subfinanciamento da escola pública e a liberalidade do financiamento do Estado aos colégios privados. E o contraste torna-se tanto mais gritante, quanto é certo que em parte há uma relação de causa e efeito entre ambos: como se não bastasse o diktat da troika para impor o subfinanciamento da escola pública, tudo é ainda agravado pela canalização duma parte do orçamento educativo para os bolsos de dois grandes cartéis do negócio do ensino — a Igreja e o grupo GPS.

Convém lembrar que há neste momento, em números redondos, cerca de 80 colégios privados a receberem 150 milhões de euros anuais ao abrigo de contratos de associação. Originariamente, os contratos surgiram nos anos 1980, quando a escolaridade obrigatória foi alargada e o ensino público não dispunha de suficientes instalações e docentes para responder a esse aumento súbito da população escolar. O Estado assinou então com vários colégios privados contratos de associação, visando preencher as lacunas do serviço público, e prevendo que o Ministério da Educação financiaria os colégios sob determinadas condições: estes deveriam acolher estudantes de locais onde não houvesse escola pública, sem poderem recusá-los e sem lhes cobrarem propinas.

Mas em breve se verificou que o contexto estava a mudar drasticamente. Já nos anos 1990, a estagnação demográfica tendia a reaproximar a capacidade instalada da escola pública daquilo que eram as necessidades, agora mais limitadas, de acolhimento de estudantes. Só que, apesar de haver cada vez menos jovens, havia cada vez mais contratos. Tinha surgido uma pequena indústria de preenchimento de lacunas do serviço público, e com a pequena indústria, um grande e poderoso lobby.

Nesse lobby destaca-se a Igreja e destaca-se, como novidade, o Grupo GPS. Neste, abundam antigos deputados e mesmo membros de vários governos do “centrão”, até ao nível de secretário de Estado. Para uma indústria educativa como esta, pequena em comparação com a poderosa Mota Engil, é lógico que a capacidade de recrutamento não dê ainda para ex-ministros como Jorge Coelho ou Paulo Portas. No Grupo GPS brilham também maçons de ambos os partidos do “centrão”, lutando pelos contratos de associação com um zelo em nada inferior ao dos seus irmãos católicos.

Este elenco de notoriedades é mais do que suficiente para bloquear investigações policiais ou para influenciar políticas de Governo. Assim, em 2011, quando a ministra da Educação Isabel Alçada esboçou uma tímida tentativa para limitar os novos contratos de associação com os colégios, logo tropeçou na tenaz resistência daquele lobby. A tímida tentativa acabou por ser também efémera e inconsequente. E em 2014, quando o Grupo GPS foi alvo de de um mandado de busca policial, por suspeita de apropriação indevida de dinheiros públicos, também se arranjou modo de tudo voltar rapidamente à normalidade.

Quando o Governo de Passos Coelho chegou ao poder em 2011, deixou de haver, sequer, tímidas tentativas. No seu lugar, surgiram diligências descaradas na direcção diametralmente oposta. Em vez de se tentar limitar contratos que visivelmente já tinham perdido qualquer justificação de interesse público, o inventivo ministro Nuno Crato empreendeu novas medidas, cada vez mais audazes, para reforçar radicalmente o financiamento do negócio educativo privado. Data de então a ideia peregrina de um “cheque-ensino”, que seria dado às famílias para colocarem os filhos a estudar onde preferissem — reduzindo cada vez mais o Estado ao papel de financiador, e retirando-lhe cada vez mais o de prestador de um serviço público essencial. Hostil à prestação pública de serviços públicos, o Governo desenhava todo um sistema em que às entidades privadas, com fins lucrativos, era reconhecida uma superior competência na prestação desses serviços.

A irracionalidade orçamental desta arquitectura em nada preocupou a troika. Os sátrapas da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do FMI sempre entenderam que havia outros parasitas a combater — por exemplo, os reformados que deviam ver congeladas as suas pensões sempre que fossem superiores a 246 euros, e deviam vê-las cortadas sempre que fossem superiores a 600 euros.

Do preenchimento das carências ao “direito de escolha”

Com o Governo de António Costa e com a maioria parlamentar da esquerda, voltou a abrir-se o dossier dos contratos de associação. O ministro Tiago Brandão Rodrigues e a secretária de Estado Alexandra Leitão fixaram-se o objectivo de limitar as rendas dos colégios privados nos locais em que o ensino público tenha suficiente capacidade. Ainda assim, nos locais onde haja essa “redundância”, poderão manter-se os contratos de associação quando eles digam respeito a turmas de ciclos já iniciados.

Ao ser reaberto o dossier, vieram a lume ou foram confirmadas informações já conhecidas, sobre a realidade dos contratos de associação. Os colégios privados nem sempre cumprem a cláusula que os obriga a aceitarem todos os estudantes sem discriminação, fazem pagar aqueles que são aceites, fazem trabalhar os docentes, em horários e com vencimentos alheios aos contratos colectivos do sector, têm agressivas estratégias de mercado para disputar ao ensino público “clientes” nos locais onde há a tal “redundância” e têm agressivas estratégias de lobby para impedir nos bastidores a abertura de novas turmas no ensino público e para obter essa abertura no sector privado.

Com tudo isto, seria impossível continuar a fundamentar os contratos de associação como complemento ao serviço público. A direita dos interesses deixou cair essa máscara. Passou declaradamente a justificar os contratos de associação com a “liberdade de escolha” e a reclamar o “pluralismo educativo”. A indústria de preenchimento de lacunas foi transformada em indústria de diversificação pluralista. O que não muda é ela continuar ávida por uma amamentação com o dinheiro do contribuinte. E, como a nova maioria pretende agora fazer contas sobre este bodo aos ricos, o arcebispo de Braga, Jorge Ortiga, apressou-se a clamar contra o “totalitarismo do Estado”.

Ao contrário do que pretende o clamor da direita, fazer contas não constitui qualquer “fundamentalismo ideológico” da esquerda. Fazer contas é, simplesmente, fazer contas. Note-se que a nova maioria nem sequer levantou a questão de reabilitar os direitos da escola pública à mesa do orçamento. Não propôs que se reinvestisse no ensino. As verbas que foram cortadas continuam cortadas. A miséria do orçamento educativo continua miserável. Há tão-somente a preocupação de introduzir nessa miséria aquele princípio moralizador de todos comerem pela mesma medida e de aplicar a mesma bitola, também naquele nicho de extravagâncias que são os contratos de associação.

Só a direita habituada ao regabofe da anterior maioria absoluta pode vir agora queixar-se do rigor orçamental que até agora foi a sua bandeira, o seu alibi para todas falcatruas, o seu mote para um estado de emergência económica que cancelava todos os contratos e o pau-para-toda-a-obra do seu catecismo neo-liberal. A ironia do alarido “pluralista” está precisamente no contrário: o que pretende a nova maioria é algo tão mínimo que, em boa lógica, a próxima delegação da troika deveria vir a Portugal dar nas costas da esquerda umas palmadas felicitatórias, e dar às orelhas da direita uns puxões severos e rectificativos. Só que a lógica real é bem diferente da formal. Essa lógica real não traz a troika a Portugal para equilibrar orçamentos e sim para esbulhar quem trabalha e quem trabalhou.

Um cimento aglutinador só para pequenas colagens

Voltando à realidade, põe-se a pergunta: se é afinal a nova maioria que realmente trata de cumprir a meta do défice, não se terá encontrado ao menos neste consenso ultra-mínimo um poderoso cimento aglutinador dessa nova maioria? Afinal, o BE e o PCP têm na discussão em curso motivos para se felicitarem por o Estado deixar de financiar um negócio privado; e o PS tem motivos para se felicitar por lhe sair barato dar essa satisfação aos seus aliados neste ponto. Mais até: ao dar aos seus aliados essa económica satisfação, o PS parece ter encontrado, por feliz coincidência, uma forma de lustrar em Bruxelas a desejada imagem de “bom aluno”. Se funcionar, será o ovo de Colombo, que não precisa de ser partido para dele se fazerem omeletas. O Governo terá conseguido três em um: poupar dinheiro, dar satisfação à esquerda e ganhar uma boa nota em Bruxelas.

Mas, uma vez mais, a realidade contraditória e dinâmica da luta de classes sobrepõe-se a este quadro idílico de lógica formal. O PS poderá dar-se ao luxo de fazer algumas flores de esquerda num tema que envolve uma rubrica orçamental relativamente modesta, na ordem dos 150 milhões de euros. O BE, o PCP e o PEV poderão festejar neste caso uma vitória pontual na constante guerrilha de S. Bento por alguma flor de esquerda que justifique a sua incómoda adaptação ao poder. Mas correm o risco sério de confundir uma flor de esquerda feita pelo PS com o que é a natureza desse partido e do seu Governo. Essa natureza não vai mudar e virá à superfície assim que BE ou PCP tenham a veleidade de pedir noutros sectores mais sensíveis a revisão dos contratos que defraudam o Estado.

Recordemos, aliás, que o bodo aos ricos ilustrado pelos contratos de associação dos colégios só foi timidamente questionado pela secretária de Estado Isabel Alçada. Inversamente, sem nenhuma timidez essa lógica esteve presente num outro Governo PS, quando a ministra Maria de Lurdes Rodrigues lançou uma ofensiva de envergadura inédita contra todos os docentes — retribuída com uma vaga de lutas memorável — e, ao mesmo tempo, lançou a campanha da Parque Escolar. A ministra que poupava nos docentes designou, nesse caso, o bodo aos ricos como “uma festa”. E fez a “festa” com ajustes directos, sem concursos públicos, ao ponto de ter de responder em tribunal pelos desmandos cometidos. A escola pública transformada em placa giratória de dinheiros do contribuinte, que assim passavam alegremente para as mãos de fornecedores e empreiteiros, preparava o terreno para a escola pública financiadora de colégios privados.

Dir-se-á que outros governantes do PS (em tempos Isabel Alçada, agora Brandão Rodrigues e Alexandra Leitão) não têm a mesma política. Pois não. Mas a política de Maria de Lurdes Rodrigues era mais típica de todos os governos do “centrão” — incluindo os do PS, e incluindo este -, do que a tímida flor de esquerda que se está a fazer com uma alínea menor do orçamento educativo. E, se a pequena vitória simbólica subir à cabeça de BE e PCP, se com essa embalagem tentarem reabrir a discussão sobre contratos fraudulentos, em breve notarão que a “onda amarela” é uma brincadeira de crianças ao lado das forças que a direita dos interesses é capaz de mobilizar para defender rendas da rede autoviária, do sector da saúde, das obras públicas, rendas de PPPs, das fundações e tantas outras.

Não há, nos tempos que correm, espaço para um verdadeiro reformismo, e sim, quando muito, para estas flores de esquerda – opiáceas, que facilmente podem intoxicar quem as confunda com uma viragem na tendência de fundo.

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