Já se tornou rotina a ideia de planos de regularização de dívidas ao Fisco e à Segurança Social que incluem perdões [1] . Desta vez é o PERES, há 20 anos foi o Mateus e antes um Catroga; no partido-estado apreciam-se estes nomes, a mimetizar operações militares, para assustar embora não passem de momices. A insistência regular nestes planos é um atestado do seu rotineiro fracasso; e, sobretudo, revela a continuidade das condições socioeconómicas que alimentam a formação daquelas dívidas. Com ou sem crise, com ou sem troika.
Trapaças e vigarices tantas vezes repetida deixam de o ser?
No período 1986/96 houve SEIS planos como o atual; em seguida, outro em 2002 e posteriormente mais alguns, com o último a ser apresentado em 2013. Em todos se diz que é a última oportunidade, parecendo que o PERES não quis cair no ridículo de repetir a piada, embora seja evidente que haverá mais. Empresários devedores, atentos e manhosos sorriem e continuam a utilizar o Fisco e a Segurança Social como financiadores habituais e complacentes.
Em 2003, Ferreira Leite avançou com uma titularização de dívida no valor nominal de € 1.995,2M e a cobrança relacionada, após sete anos, somava €187,3M. O negócio foi com o Citygroup (link).
Em 1985/95, Cavaco desviou [2] dinheiro da Segurança Social para tapar buracos no orçamento do Estado, no valor de 1.206,4 milhões de contos (equivalente a toda a cobrança de 1995). E para se perceber melhor o significado disto é melhor imaginarem que nas vossas faltas, se vão abastecer ao frigorífico do vizinho, sem direito a devolução ou pagamento. Que se saiba ninguém foi julgado por gestão danosa e os pensionistas nem sequer se terão apercebido de que foram roubados.
Pior, a estes planos de pagamento apresentados com tanta pompa, o que se segue é que os devedores pagam apenas uma ou outra prestação e depois deixam de pagar. E isso, pela simples razão de que estão falidos e sobrevivem à custa do não pagamento de impostos e da propositada lassidão dos serviços públicos nesta área. Por outro lado, essas empresas, em regra, já têm os seus bens todos hipotecados a favor da banca por conta de crédito obtido; em contrapartida, muitos dos seus detentores estarão ricos, com altas cilindradas e uma quota nos € 70.000M que indivíduos portugueses têm em offshores.
Habitualmente, esses planos de pagamento obrigam ou obrigariam à prestação de garantias de cumprimento, tal como a compra de uma casa por uma família é acompanhada de hipoteca sobre a mesma a favor do banco ou como o BCE financia os bancos exigindo títulos de dívida pública como “colaterais”. No novo plano, o governo decidiu prescindir de garantias alegando “que o regime atual exige… garantias difíceis de obter” e que “isto causa grandes dificuldades às famílias e à tesouraria das empresas…”[3]. Se as empresas não podem oferecer garantias porque o “mercado” não confia nelas, o bondoso Estado, mesmo assim, avança com o plano pois sempre irá cobrar alguma coisa para alindar o deficit. A afirmação governamental demonstra implicitamente que as empresas recorrentes ao plano, rapidamente poderão deixar de o cumprir; e que a afirmação no comunicado acima referido segundo o qual “o regime aprovado visa criar condições para a viabilização das empresas” é uma lengalenga para adormecer crianças com menos de três anos.
O fracasso está garantido
Espelhemos adiante uma imagem do fracasso destes planos, no período 1988/2014, para o caso da Segurança Social, através da relação entre dívida e cobrança de contribuições, onde se pode verificar uma histórica inobservância das regras por parte das empresas, como também o seu agravamento nos últimos anos, com a atuação anti-social do governo Passos e do carocho Mota Soares, em particular.
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Dívida/
cobrança (%)
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Meses de cobrança
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1988
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32,8
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3.9
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1998
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27,7
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3.3
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2002
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38,5
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4.6
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2008
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30,6
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3.7
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2011
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56,1
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6.7
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2014
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80,1
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9.6
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A degradação da situação, no capítulo da Segurança Social inclui ainda uma questão muito particular: a de que nenhumgoverno tem legitimidade para perdoar dívida à instituição.
A Segurança Social não faz parte do aparelho do Estado e os descontos para aquela não são impostos, têm uma finalidade bem expressa nas leis – financiar pensões, desemprego e doença, essencialmente. Os fundos da Segurança Social pertencem a quem para a mesma desconta ou descontou; e que se saiba, nenhum trabalhador ou pensionista foi consultado sobre o perdão. Quem se apropria de dinheiro alheio entregue à sua guarda, comete o crime de abuso de confiança.
A impunidade destes crimes demonstra que vivemos em cleptocracia e não em democracia.
Neste PERES exige-se que os devedores podem ter acesso a um plano de pagamento “com a duração máxima de 11 anos (150 prestações)”[4] com a anulação de pagamento de juros e custas judiciais; trata-se de uma réplica do velho “plano Mateus” de 1996 agravada porém, com a obrigação de pagamento até 20 de dezembro de 8% da dívida (link).
Quanto a esta última obrigação pergunta-se:
- quantas empresas, certamente já estranguladas por crédito bancário e dificuldades em pagar a fornecedores, terão capacidade para em dois meses encontrar dinheiro para pagar 8% da sua dívida fiscal e/ou contributiva, acumulada durante anos?
- quantas terão capacidade para acrescentar nos seus planos financeiros as duas prestações - Fisco e Segurança Social - durante 150 meses?
- e ainda conseguirem investir para exportar mais, aumentar o efetivo de pessoal, como antevê o governo, ao explicitar que o seu objetivo “não é o encaixe financeiro, mas preparar as empresas para se recapitalizarem a partir de Janeiro de 2017"(link). Seria obra se …não fosse apenas brincadeira. Imaginam que o povinho é estúpido?
Em relação ao volume da dívida potencialmente abrangida, Rocha Andrade apontou para € 25000 M de dívida fiscal (link) o que vai muito para além dos € 4.100 M referentes a devedores listados na internet, sabendo-se que alguns, corados de vergonha correram a pagar € 56.4M ! Em 2014 o Fisco recuperou apenas € 959,3 M, um pouco menos do que teve de declarar prescrito (€ 1.153 M).
Por seu turno, a Segurança Social que na Conta de 2014 referia uma dívida de € 10.941,3 M tinha na lista pública de devedores uns parcos € 197 M em falta não se sabendo se, em 27 de setembro (link), algum devedor arrependido se teria chegado à frente.
As dificuldades na constituição dessas listagens só revelam a bagunça que carateriza os sistemas informáticos e as bases de dados. Nenhuma empresa descura a lista e a caraterização dos seus devedores!
Uma instalada cultura de burla
São várias as causas desta situação. Por um lado, há uma cultura geral de fuga e fraude, como acomodação à longa tradição da existência de um Estado autoritário, predador e corrupto (link); mesmo quando se apresenta, qual verniz, com um aspeto democrático, situa-se sempre longe da satisfação das necessidades da população, que corresponde fugindo quanto pode, ao pagamento de impostos.
Para se nutrir, o Estado, dirigido por uma classe política tão mentecapta e mentirosa quanto venal, dota-se de uma burocracia kafkiana, de sistemas de informação desconexos e de uma panóplia de inspeções, fiscalizações, autoridades, reguladores, de muito baixa eficácia. Se alguma coisa de positivo a presença da troika teve em Portugal, foi a de uma maior sistematização da informação pública sobre a área financeira e das contas públicas.
Assim sendo, os grandes pagadores de impostos são os que são objeto de retenção de IRS na fonte, mormente os trabalhadores e os pensionistas ou, os consumidores em geral de bens ou serviços, onerados com IVA, ISP… O IRC é considera-se nos meios fiscais como tendo essencialmente uma função política, para mostrar que o Estado também tributa os capitalistas, num jogo de faz de conta., em que aqueles são retribuídos de outras formas.
Essa cultura é inerente a um capitalismo subalterno, com empresários parcos de capital, pouco dotados de capacidades técnicas ou de gestão que procuram compensá-las, através de ligações subterrâneas com a classe política, na gestão do favor ou do apoio financeiro estatal, tendo como pano de fundo a essencial necessidade de trabalhadores baratos e submissos. Uma cultura que as suseranias externas mantêm porque os baixos salários também são do seu interesse para a manutenção de um modelo económico onde as grandes empresas se integram em redes multinacionais, desinteressando-se do escasso mercado interno e as pequenas empresas, de capitais nativos se concentram em segmentos de baixa tecnologia, construção/imobiliário ou turismo. Isso contribui para que a região portuguesa com maior vocação exportadora (Norte) seja a mais pobre da Península Ibérica (link). É também sintomático que os capitalistas mais ricos sejam grão-merceeiros que abastecem larga parte da população ao mesmo tempo que esmagam os produtores agrícolas ou pecuários com práticas de oligopsónio.
Torna-se evidente que neste contexto, a fuga e a fraude fiscal são generalizadas e socialmente aceites, até invejadas, por quem não tem meios de se inserir com sucesso nessa via. Os grandes beneficiários são as grandes empresas que conseguem contratos leoninos, subvenções, subsídios, excepções, em união promíscua com a classe política, mormente o partido-estado PS/PSD que domina o país, praticamente desde a queda do fascismo. Se não é daí que resulta a atribuição a Portugal do terceiro lugar europeu nos índices de corrupção, depois da Grécia e da Itália, então a que se deve o galardão?
Após esta introdução torna-se claro ser aparente o laxismo dos governos face à fuga e a fraude que parcialmente é materializada em dívida. Esse laxismo é estrutural e cultural; esse desvio de dinheiro dos impostos e da Segurança Social faz-se para financiar as empresas portuguesas cujo grau de endividamento junto da banca é dos mais elevados da Europa (link).
Por exemplo, se perguntarem num país europeu de capitalismo avançado se é possível uma tão generalizada fuga ao pagamento das contribuições para a Segurança Social, ficarão a olhar para vocês com ar de estranheza. Porém, em Portugal a dívida à Segurança Social acima referida, correspondente a 12 meses de pensões, estava em 2014 quase toda provisionada; o que significa dada como perdida. Implicitamente a secretária de estado reconhece isso ao afirmar que "a dívida líquida passível de ser abrangida (pelo plano agora promovido) é de três mil milhões de euros" (link). Essa naturalidade é considerada fatalidade pelos trabalhadores e não consta de qualquer caderno reivindicativo dos sindicatos, onde também nunca constou a lesiva promiscuidade que os governos promovem criando um sistema de vasos comunicantes entre as contribuições para a Segurança Social, pagos pelos trabalhadores e os impostos pagos a priori por toda a população.