O sistema de exploração como ponto de partida
É evidente que se falamos de emancipação da mulher isso significa implicitamente que ela é oprimida, explorada. Importa compreendermos as bases dessa opressão, dessa exploração.
Comecemos por dizer que a opressão da mulher é uma consequência da sua exploração, a opressão na sociedade é sempre o resultado da exploração imposta. O colonialismo não nos veio ocupar com o objetivo de nos prender, de nos chicotear ou dar palmatoadas. Ele invadiu-nos, ele ocupou-nos com o objetivo de explorar, as nossas riquezas, explorar o nosso trabalho. Para nos explorar, para suprimir a nossa resistência à exploração e impedir uma revolta contra ela, introduziu então o sistema de opressão. A opressão física, com os tribunais, a polícia, as forças armadas, as prisões, as torturas, os massacres. A opressão moral, com o obscurantismo, a superstição, a ignorância, destinados a destruir o espírito de iniciativa criadora, liquidar o sentido de justiça e crítica, reduzir a pessoa à passividade, à aceitação do estado de explorado e oprimido como coisa normal. Dentro do processo surge então a humilhação e o desprezo, porque aquele que explora e oprime tem tendência a humilhar e desprezar a vítima, considerá-la como naturalmente inferior. Aparece o racismo, forma suprema da humilhação e do desprezo mecanismo da alienação da mulher é idêntico ao mecanismo da alienação do homem colonizado na sociedade colonial, ou do trabalhador na sociedade capitalista.
A partir do momento em que a humanidade primitiva começou a produzir mais do que consumia, foram criadas as bases materiais para que no seio da sociedade surgisse uma camada que se iria apropriar dos frutos do trabalho da maioria. É esta apropriação do resultado do trabalho das massas por um punhado de elementos na sociedade que constitui a essência do sistema de exploração do homem pelo homem e o coração da contradição antagônica que há séculos divide a sociedade.
Logo que se desencadeou o processo de exploração, a mulher na sua generalidade, como o homem, foi submetida à dominação das camadas privilegiadas. A mulher é também um produtor, um trabalhador, mas com qualidades particulares. Possuir mulheres é possuir trabalhadores, trabalhadores gratuitos, trabalhadores cuja totalidade do esforço de trabalho pode ser apropriada sem resistência pelo esposo, que é amo e senhor. Casar-se com muitas mulheres na sociedade de economia agrária torna-se um meio certo para acumular muitas riquezas. O marido assegura-se de uma mão-de-obra gratuita, que não reclama nem se revolta contra a exploração.
Daí a importância da poligamia nas zonas rurais de economia agrária primitiva. A sociedade, compreendendo que a mulher é uma fonte de riqueza, exige que um preço seja pago. Os pais requerem do futuro genro o pagamento dum preço, o “lobolo”, para cederem a filha. A mulher é comprada, herdada, como se fosse um bem material, uma fonte de riquezas.
Mas mais importante ainda: comparada com o escravo, por exemplo, que também é uma fonte de riqueza, que também é um trabalhador gratuito, a mulher oferece duas outras vantagens ao seu proprietário: é uma fonte de prazer, e sobretudo, é uma produtora de outros trabalhadores, uma produtora de novas fontes de riqueza.
Este último aspecto é particularmente significativo. Assim, um marido terá na sociedade o direito de repudiar a mulher e de exigir a devolução do lobolo quando a mulher for estéril, ou o marido pensar que ela assim o é. Nota-se ainda que em muitas sociedades, conscientes do valor da força de trabalho dos filhos gerados pela mulher, se estabelece o princípio de que estes pertencem ao clã maternal, à família da mãe. Na nossa sociedade é também corrente a prática de os filhos continuarem a pertencer à família da mãe, sobretudo enquanto o marido não tiver satisfeito a totalidade do lobolo, isto é, o preço da compra dessas riquezas. É este contexto que produz a sobrevalorização da fertilidade da mulher, a transformação da relação homem-mulher em mero ato de procriação.
Mas uma situação particular surgiu. O explorador, graças à sua dominação sobre as massas, adquiria vastas riquezas, enormes propriedades, manadas de gado, ouro, joias, etc. Apesar das riquezas, como todo o homem, continuava mortal. Punha-se então o problema do destino dessas riquezas; por outras palavras, a questão da herança torna-se fundamental. A mulher é a produtora dos herdeiros.
Compreendemos assim, que o ponto de partida da exploração da mulher e sua consequente opressão se encontra no sistema de propriedade privada dos meios de produção, no sistema de exploração do homem pelo homem.
Os mecanismos ideológicos e culturais da dominação
A sociedade da propriedade privada dos meios de produção, sociedade de exploração do homem, cria e impõe a ideologia e cultura que defenderão os seus valores, assegurarão a sua sobrevivência. A exploração econômica da mulher, a sua transformação em produtor sem direitos, ao serviço do proprietário — esposo ou do proprietário — pai, exigem a elaboração da ideologia e cultura adequadas, a organização dum sistema de educação que as transmitam. É evidente que não se trata dum ato único e total, mas dum processo que se elabora e refina durante os milênios em que a sociedade existe.
O obscurantismo é o ponto de partida do processo. Manter a mulher na ignorância, ou só educá-la o mínimo necessário, é o princípio geral. Em toda a parte vemos que o analfabetismo é sempre superior nas mulheres que, embora constituam a maioria da população, aparecem sempre como minoria nas escolas, nos liceus, nas universidades.
As civilizações mais desenvolvidas do passado, como hoje ainda na sociedade capitalista, sempre mantiveram a ciência como monopólio do homem, seu domínio exclusivo. Manter a mulher separada da ciência é impedi-la de descobrir que a sociedade é criada em função de certos interesses precisos, e que por consequência é possível modificar a sociedade.
O obscurantismo, a ignorância, são irmãos gêmeos da superstição e os pais da passividade.
Todas as superstições, as religiões, sempre encontraram o terreno mais fértil no seio da mulher, porque esta se encontrava mergulhada na maior ignorância e obscurantismo. Na nossa sociedade, os ritos e cerimônias aparecem como o veículo principal de transmissão dos conceitos da sociedade sobre a inferioridade da mulher, sobre a sua subserviência em relação ao homem. É a este nível ainda que se propagam numerosos mitos e superstições que se destinam objetivamente a destruir o espírito de iniciativa da mulher; e reduzi-la à passividade.
A própria educação familiar acentua e reforça estes diversos aspectos. Desde criança a rapariga é educada duma maneira diferente do rapaz, é-lhe inculcado um sentimento de inferioridade.
Nada disso é surpreendente: como dissemos, a sociedade exploradora fomenta a ideologia, a cultura, a educação que servem os seus interesses. Ela faz isso com a mulher, como o faz com o colonizado ou o trabalhador nos países capitalistas. Todos eles são mantidos deliberadamente na ignorância, obscurantismo e superstição, com vista a convencê-los a resignarem-se à sua situação, a inculcar-lhes o espírito de passividade e servilismo.
O racismo surge aqui: o colonizado é definido como ser humano de segunda categoria, em função da sua cor. A mulher é definida como ser humano inferior por causa do seu sexo. Nos países capitalistas da Europa dirão que a mulher é uma criatura com cabelos compridos e ideias curtas.
O processo de alienação mental atinge o ponto culminante quando o elemento explorado, reduzido à passividade total, já não consegue imaginar que possa existir uma possibilidade de libertação, e ele próprio se torna em agente difusor da teoria da resignação e passividade. Devemos reconhecer que a dominação multissecular da mulher a reduziu em grande parte a este estado de passividade, que a impede mesmo de compreender a sua condição.
A definição do antagonismo
Importa compreender corretamente a natureza da contradição ou das contradições que se encontram em jogo, pois só depois de as compreendermos estaremos em condições de definir os alvos do nosso ataque, conceber a estratégia e a tática adequadas ao nosso combate.
Vimos que o fundamento da dominação da mulher se encontrava no sistema de organização da vida econômica da sociedade: a propriedade privada dos meios de produção, que necessariamente conduz à exploração do homem pelo homem.
Quer isto dizer que, na sua essência, a contradição entre a mulher e a ordem social, para além das condições específicas da sua situação, é a contradição entre ela e a exploração do homem pelo homem, entre ela e a propriedade privada dos meios de produção. Por outras palavras, essa contradição é a mesma que existe entre as massas populares trabalhadoras e a ordem social exploradora.
Sejamos claros neste ponto: a contradição antagônica não é entre a mulher e o homem, mas, sim entre a mulher e a ordem social, entre todos os explorados, mulheres e homens, e a ordem social. É esta situação de explorada que explica a sua ausência de todas as tarefas de concepção e decisão no seio da sociedade, que a exclui da elaboração das concepções que organizam a vida econômica, social, cultural e política, mesmo quando os seus interesses estão diretamente afetados.
É este o aspecto principal da contradição: a sua exclusão da esfera de decisão da sociedade. Esta contradição só pode ser resolvida pela Revolução porque só a Revolução destrói os alicerces da sociedade exploradora e reconstrói a sociedade em bases novas, que libertam a iniciativa da mulher, a integram como ser responsável na sociedade e a associam à elaboração das decisões.
Por consequência, da mesma maneira que não pode haver Revolução sem libertação da mulher, a luta pela emancipação da mulher não pode triunfar sem a vitória da Revolução.
Devemos ainda dizer que os fundamentos ideológicos e culturais da sociedade exploradora, que mantém dominada a mulher, são destruídos pelo progresso da Revolução ideológica e cultural, que impõe à sociedade novos valores, novos métodos, novo conteúdo da educação e cultura. Mas, além desta contradição antagônica entre a mulher e a ordem social, surgem ainda, como reflexo, outras contradições que, com caráter secundário, opõem a mulher ao homem.
O sistema de casamento, a autoridade marital fundada exclusivamente no sexo, a frequente brutalidade do marido, a sua recusa sistemática em tratar a mulher como seu igual, constituem fontes de atritos e contradições. Por vezes mesmo, em certos casos limites, estas contradições secundárias, porque não resolvidas corretamente, agudizam-se e resultam em consequências graves, como o divórcio.
Mas não são estes fatos, por graves que possam ser, que alteram a natureza da contradição.
Importa sublinhar este aspecto porque na nossa época presenciamos, sobretudo no inundo capitalista uma ofensiva ideológica que, sob a camuflagem de luta de libertação da mulher, pretende transformar em antagônica a contradição com o homem, dividindo assim homens e mulheres-—explorados, para impedir que combatam a sociedade exploradora. Na realidade, para além da demagogia que encobre a sua natureza real, esta ofensiva ideológica é uma ofensiva da sociedade capitalista para confundir as mulheres, desviar a sua atenção do alvo verdadeiro.
No nosso seio aparecem pequenas manifestações desta ofensiva ideológica. Ouvimos aqui e acolá, mulheres murmurarem contra os homens, como se fosse a diferença dos sexos a causa da sua exploração, como se os homens fossem uns monstros sádicos que tiram o seu prazer da opressão da mulher.
Homens e mulheres são produtos e vítimas da sociedade exploradora que os criou e educou. É contra ela essencialmente que mulheres e homens unidos devem combater.
A nossa experiência prática tem provado que os progressos obtidos na libertação da mulher resultam dos sucessos obtidos no nosso combate comum contra o colonialismo e imperialismo, contra a exploração do homem pelo homem, pela construção da nova sociedade.
À memória de Josina Muthemba Machel, lutadora da Guerra de Independência, nascida em 10 de Agosto de 1945, falecida no dia 7 de abril de 1971 – hoje lembrado no país como Dia da Mulher Moçambicana.