O Golpe de Estado do dia 11 de setembro de 1973 teve um claro conteúdo de classe. Os empresários nacionais e estrangeiros, donos das fábricas e empresas, dos monopólios das riquezas nacionais, estavam perdendo seu poder e viam ameaçada as bases de sua dominação.
A classe operária já não se limitava ao programa de governo da Unidade Popular, estava mais adiante. Com a nacionalização do cobre e a criação da Área de Propriedade Social proposta pelo governo de Allende, que permitiu nacionalizar o cobre e outras áreas da economia, a classe trabalhadora iniciou seu próprio programa de toma das fábricas e expropriação, sobretudo impulsionado pelos Cordões Industriais, organismos que se formaram a meados do ano de 1972 como uma resposta à paralisação patronal dos empresários e dos caminhoneiros.
Os Cordões Industriais se colocaram como uma organização de trabalhadores a nível local (na fábrica), territorial (no bairro e junto a outras organizações da zona) e tendencialmente nacional (contando com uma coordenação dos Cordões Industriais), ainda que não conseguiram se desenvolver como produto do golpe do Estado. Iniciaram um processo de toma de fábrica, para enfrentar o fechamento pelas patronais; se preocuparam dos problemas do abastecimento – afetado pela paralisação de transportes – e da distribuição, fazendo convênios entre fábricas, com organizações populacionais e sociais para distribuir seus produtos; também da gestão das empresas. Embrionariamente, eram organismos de auto-organização e independência de classe que começavam a declarar o problema do poder a nível territorial e potencialmente no poder político e no Estado.
Os Cordões Industriais foram criticados pela CUT, que os acusava de paralelismo e estiveram em permanente tensão com Allende e o governo. Como declarava uma carta do Comando Coordenador dos Cordões, datada em 5 de setembro de 1973: “Antes, tínhamos o medo de que o processo até o Socialismo estava se dando para chegar a um governo de centro, reformista, democrático-burguês, que tendia a desmobilizar as massas ou leva-las a ações de rebeldia do tipo anárquico por instinto de preservação. Mas agora, analisando os últimos acontecimentos, nosso medo já não é mais esse, agora temos a certeza de que estamos em um caminho que nos levará inevitavelmente ao fascismo”.
Depois do bombardeio ao palácio da presidência La Moneda e o suicídio de Allende, os partidos da Unidade Popular e o MIR se recolhem. Tinha sido feito o chamado de não resistir. Nas fábricas e nos cordões, centenas de trabalhadores esperaram por horas e dias a chegada das armas ou dos militares constitucionais que a Unidade Popular falava. A única coisa que chegou foram as invasões massivas, em que milhares de pessoas foram detidas e levadas aos campos de detenção, enquanto se produziam as primeiras execuções.
Em síntese, o golpe de Estado e a Ditadura tiveram como primeiro objetivo enfrentar o governo da Unidade Popular e especialmente, a organização operária, popular e estudantil que se expressava na organização dos Cordões Industriais ou nas Juntas de Abastecimento Popular, para terminar instalando um processo refundacional, com a aplicação do modelo neoliberal e a destruição dos embasamentos tradicionais do poder político econômico que sustentaram a nação durante largas décadas.
A Ditadura cívico-militar
Depois do Golpe se instalou uma Ditadura cívico-militar que durou quase duas décadas e que produziu importantes transformações no país. A Ditadura se sustentou na Doutrina de Segurança Nacional, considerando como inimigos da nação as organizações sindicais e de esquerda, utilizando uma política baseada na repressão e no terror, pré-escrevendo os partidos políticos e as instituições como o Congresso ou os partidos políticos, ilegalizando muitas organizações sindicais, impondo o toque de recolher durante largos períodos, contando com detenções massivas, invasões à empresas e comunidades, fechamento de muitos meios de comunicação. As violações aos direitos humanos foram massivas, com milhares de detidos, torturados, executados, desaparecidos e exilados.
A Ditadura buscou desmantelar os direitos econômicos, políticos e sociais, conquistados durante anos pelos trabalhadores, pelos setores populares e a classe média. No âmbito econômico foi impulsionada a desregulação e a abertura aos mercados estrangeiros, o financiamento econômico, a privatização de empresas e serviços públicos para reorganizar a estrutura do país; no âmbito político, se instalou o autoritarismo e se modificou a constituição no ano de 1980, implementando entre outras coisas, o sistema binominal e os senadores designados; no âmbito social se promoveu o individualismo, o consumismo e o medo; em suma, um projeto associado ao modelo neoliberal que modificou substancialmente a sociedade chilena.
Para alcançar esse objetivo, era necessário também submeter o movimento sindical e os trabalhadores, modificando as relações de trabalho e a estrutura produtiva do país. Não só se reprimiu e perseguiu as organizações sindicais e seus dirigentes e ativistas. Além disso, se iniciou um processo de reestruturalização e autoritarismo para impedir seus funcionamentos. A CUT e outros sindicatos foram ilegalizados, expropriando seus locais de encontro. Também se proibiu, com o Bando Militar nº 36, o direito a greve, a negociação coletiva, as eleições sindicais e a possibilidade de demandar reajustes salariais por tempo indeterminado. Toda reunião sindical devia ser avisada previamente e devia contar com um agente militar. Além disso também foram criadas novas organizações no final da Ditadura para tratar de cooptar o movimento sindical. Essa política cristalizou no Plano Laboral do ano de 1979, que impulsionou a lógica neoliberal nas relações capital-trabalho.
O Plano Laboral de Piñera
O Plano Laboral, elaborado pelo Ministro do Trabalho, José Piñera, indicou um marco nas relações entre o capital e o trabalho, culminando em um ciclo de fortes ataques aos direitos trabalhistas. A Ditadura se concentrava especificamente em desarticular o movimento sindical como força política e social, atacando especificamente a relação com os partidos e a política, promovendo um sindicalismo corporativo ou gremial e tratando de atomizar a organização operária. Segundo anunciava Piñera, o objetivo do Plano era claro “o que se decide é se se entrega o poder aos sindicalistas para paralisar a economia e tomar como refém o país, o que se decide é se os dirigentes sindicais podem chegar a ter em nossa sociedade mais poder que os parlamentários”. No âmbito laboral, se instalava a ideia da produtividade, atando os salários a esse mecanismo, como também se propunha terminar com a “sindicalização obrigatória, as negociações por ramo e não por empresa, a greve com caráter de chantagem ao empresário”.
O Plano Laboral teve como eixo infringir a unidade sindical ao possibilitar a existência de múltiplos sindicatos em uma mesma empresa, estabelecendo além da vontade individual de filiação e do pagamento da cota sindical, associando democracia e indivíduo à ideia de liberdade de eleição para afiliar-se às organizações sindicais, proibindo a existência de sindicatos nos serviços públicos e empresas estratégicas. Esse ideal se relacionava sem dúvida com o modelo neoliberal que estava sendo instalado, cuja concepção de liberdade era baseada em um indivíduo isolado e atomizado. Assim, se restringiu a negociação coletiva por ramo, se anulando na prática o direito a greve, ao possibilitar a contratação de substitutos. Também se alentava a negociação individual, permitindo que os trabalhadores pudessem compactuar com a empresa por sua conta, se propondo que os empresários pudessem declarar o fechamento, como medida de pressão contra as demandas laborais.
Em suma, esse novo plano laboral tinha como objetivo “eliminar o movimento sindical em sua condição de agente socio-político nacional; a limitá-lo a um papel negociador débil no terreno econômico-reivindicativo; a deixar livre o caminho às “Leis de Mercado” no plano das Relações Laborais”, o empregador tinha amplas liberdades para despedir, negociar os salários, horários e também as condições de trabalho.
A transição e a pós-ditadura
A Ditadura buscou desarticular e derrotar o movimento de trabalhadores, utilizando a repressão, a reconversão produtiva e a implementação de uma nova institucionalidade laboral para os seus propósitos. A classe trabalhadora e suas organizações se organizaram para enfrentar essas políticas, realizando importantes ações de resistência como paralisações legais e ilegais, manifestações e protestos, mas não conseguiram paralisá-las. O centro de sua ação se enfocava na luta contra os planos econômicos e contra a Ditadura, tendo como demanda a volta da democracia.
Apesar das importantes mobilizações, as numerosas e largas greves, o ciclo de lutas e a reativação terminaram com a imposição do Plano Laboral, que significou uma nova derrota para o movimento sindical, consolidando um modelo sindical e laboral neoliberal que posteriormente a Concertação de Partidos pela Democracia aprofundou.
A luta contra o Plano Laboral impulsionou uma certa convergência sindical, que se materializou na criação do Comando Nacional de Trabalhadores, convocando a primeira greve geral contra a Ditadura no ano de 1983, depois dos devastadores efeitos da crise econômica internacional e nacional. Entretanto, os protestos também foram derrotados pela política de acordos entre o regime militar e a oposição (que mais tarde se agruparia na Concertação de Partidos pela Democracia), marginando novamente os trabalhadores e suas demandas para organizar uma transição de pacto que não rompeu com a política laboral nem com o resto da herança de Pinochet.
Os governos conciliadores sustentaram o modelo econômico e social da Ditadura; a respeito do mundo do trabalho privilegiaram a continuidade sobre a ruptura, justificado pelo discurso da ameaça à democracia, pela estabilidade econômica e também porque as relações laborais que impulsionaram a Ditadura eram parte da coluna vertebral do modelo. As organizações sindicais predominantes, assimilaram também esse discurso, o que se materializou nas políticas de diálogos e acordo social que impulsionou a CUT durante os governos conciliadores.
Entretanto, hoje se reabre o debate estratégico sobre a reemergência da classe trabalhadora e suas organizações, como também a necessidade de lutar contra o Código Laboral que vem desde a Ditadura, uma das grandes demandas do movimento sindical e que a reforma laboral de Bachelet, atual presidente, praticamente não toca.