Um grande exemplo disso se deu com o famoso Decreto de Fevereiro de 1861 de Alexandre II, que colocava fim à servidão na Rússia. Com a medida, cerca de 22 milhões de camponeses servos tornaram-se “livres”.
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Porém, diametralmente, as terras trabalhadas pelos camponeses foram transferidas para os latifundiários. Os camponeses, agora livres e despojados da terra, somente poderiam reaver seus pequenos lotes mediante o pagamento de uma quantia denominada “resgate”.
Na prática, sem recursos financeiros para isso, os camponeses foram destituídos de todos os meios de vida em nome da tal liberdade e obrigados uma vez mais à completa submissão “voluntária” aos latifundiários. Apenas assim poderiam recuperar os lotes que lhes pertenciam... A justiça chegaria 56 anos depois com a Revolução de Outubro de 1917.
Esse processo de “liberdade”, que visa formar um imenso exército atomizado de despossuídos que sirvam à produção capitalista ao mesmo tempo que concentra a propriedade privada da terra, coleciona ao longo dos séculos milhares de massacres.
O Brasil, em abril de 1996, no município de Eldorado dos Carajás, no Pará, foi palco da chacina que resultou no assassinato de 19 trabalhadores rurais Sem Terra. Ao todo, foram 21 mortos. Passadas duas décadas desde o massacre, ninguém foi responsabilizado.
Em 2012, foi a vez do Paraguai presenciar mais um desses episódios. Em 15 de junho daquele ano, durante o cumprimento de uma ação de despejo, 300 policiais apoiados pelo Grupo Especial de Operações (GEO) invadiram o assentamento de “Marina Kue” no município de Curuguaty.
Tratou-se de verdadeira execução. A polícia abriu fogo indiscriminadamente contra os camponeses, que morreram por disparos dados a curta distância, conforme relatório produzido pela Plataforma de Estudos e Investigações de Conflitos Camponeses (PEICC).
A ação, autorizada pelo juiz José Benites e pela promotora Ninfa Aguiar, deixou um saldo final de 11 camponeses e 6 policiais mortos e cerca de 100 feridos.
A terra vinha sendo há anos objeto de disputa judicial. Até 1990 a área pertencia à Marinha Paraguaia. Após ser desocupada, tornou-se terra devoluta, passando a ser reivindicada pela família Riquelme, que em 2004 apresentou um documento de usucapião.
A influência da família Riquelme é fruto da relação estabelecida pelo ex-senador do Partido Colorado por três mandatos (1989-2008) e empresário já falecido, Blas Riquelme [1].
O “massacre de Curuguaty”, como vem sendo tratado o episódio, foi utilizado para, seis dias depois, justificar o impeachment do presidente Fernando Lugo.
Semanas depois, após a instauração do inquérito, a denúncia contra os camponeses foi aceita e deu-se início ao processo para julgar os fatos daquele 15 de junho. Desde o início, o foco do juízo e da promotoria, esta última protagonizada por Jalil Rachid, Lilian Alcaraz, Juan Leonardi Guerrero e Nelson Ruiz, foi apurar os supostos crimes cometidos pelos camponeses, cuja conclusão resultou na sentença publicada na última segunda-feira (11/07).
As condenações pautaram-se numa suposta emboscada seguida da morte de seis policiais pelos camponeses, que foram condenados a cumprir penas que variam entre 4 e 35 anos por crimes de homicídio doloso, invasão de imóvel alheio, associação criminosa, além de outros [2].
Curiosamente, ao longo das audiências, ficou comprovado que as armas utilizadas pelos camponeses, na sua maioria ferramentas para trabalhar a terra ou espingardas de caça, seriam incapazes de produzir aquelas mortes.
Isso porque, segundo relatório do PEICC, as mortes dos seis policias foram causadas por disparos de armas de alto calibre, em regiões fatais do corpo (sobretudo na cabeça), com munições capazes de perfurar coletes à prova de bala.
Não bastasse tudo isso, a perícia oficial demonstrou que apenas uma das espingardas dos camponeses foi disparada.
Por outro lado, até o momento, não há qualquer investigação promovida pelo Ministério Público para apurar e responsabilizar os agentes que assassinaram os 11 camponeses.
Segundo Catalina Britez, socióloga e militante do Movimento 15 de Junio, organização criada logo após o episódio e cujo nome faz referência à data do ocorrido, “o massacre de Curuguaty e o julgamento injusto dos 11 companheiros camponeses nos demonstra que a 'justiça' paraguaia não é imparcial, tem classe, e está a serviço dos donos dos latifúndios”.
Para ela, um dos elementos que explica a repressão aos camponeses é o fato de que “o modo de produção capitalista no Paraguai está assentado no latifúndio, com imensas extensões de terras nas mãos de poucos donos”.
Esse caráter de classe a que se refere Catalina Britez foi abordado em nota intitulada “4 anos da resistência heroica de Marina Kue: firmes e de pé” emitida pelo Movimento 15 de Junio.
Nela, a organização afirma, com razão, que as famílias Riquelme e Favero, além de outros latifundiários, são os que falam através dos promotores. “Esta é a verdadeira face do Estado antinacional a serviço dos latifundiários e do capital estrangeiro contra o povo paraguaio”, menciona o documento.
Como registra a referida nota, a respeito do processo judicial, não há dúvidas de que se tratou de um verdadeiro julgamento político e cujo objetivo foi apenas “criminalizar a luta camponesa e encobrir o Golpe de Estado de 2012”.
A decisão proferida pelo Tribunal de Sentença do Paraguai e todo o processo de investigação e instrução que levou ao julgamento dos camponeses é a mais perfeita expressão do uso do direito como instrumento de repressão da classe trabalhadora.
Em célebre passagem de sua Teoria Geral do Direito e o Marxismo, Evgeni Pachukanis já alertava para esse uso do direito nos momentos de acirramento da luta de classes: “quanto mais aguda e encarniçada se torna a luta de classes, tanto mais o domínio de classe tem dificuldades em se realizar [...]. Neste caso, o tribunal 'imparcial', com as suas garantias jurídicas, cede lugar a uma organização directa da violência de classe, cujas acções são guiadas exclusivamente por considerações de oportunidade política” [3].
A sentença judicial que condenou os camponeses é, como todos os atos do processo, uma farsa. Ela sequer representa uma trégua na luta do campesinato paraguaio. Como ressalta a nota política do Movimento 15 de Junio, "a verdadeira justiça virá da luta unida de todo o povo por sua libertação".
*João Guilherme é militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), estudante de Direito da PUC-SP, integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital e coordenador do Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito.
Notas:
[1] Acessar: http://www.abc.com.py/nacionales/fallecio-blas-n-riquelme-445260.html
[2] Rubén Villalba: 30 anos (mais 5 anos de segurança); Luis Olmedo Paredes: 20 anos; Arnaldo Quintana (18 anos); Néstor Castro Benítez: 18 anos; Felipe Benítez Balmori: 4 anos; Adalberto Castro Benítez: 4 anos; Alcides Ramón Ramírez: 4 anos; Juan Carlos Tillería: 4 anos; María Fany Olmedo: 6 anos; María Dolores López: 6 anos; Lucía Aguero: 6 anos.
[3] PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo. Trad. Soveral Martins. 2. ed. Centelha. Coimbra, 1977. p.230.