Cada vez mais ameaçados, acuados e tendo sua imagem constantemente representada como símbolo do atraso ou da ganância humana, os povos indígenas brasileiros são cada vez mais invisibilizados. Até mesmo neste blog, geralmente só falamos das mulheres indígenas em datas específicas. Porém, é um exercício para mim ir atrás das informações que não estão nas principais capas dos portais.
Cena do documentário ‘As Hiper Mulheres’ que mostra um ritual de canto feito apenas por mulheres da tribo indígena Kuikuro. O filme faz parte do projeto ‘Vídeo nas Aldeias’, criado por Vincent Carelli para introduzir a produção cinematográfica nas aldeias indígenas brasileiras.
Tâmara Freire, no inicio desse mês, comentou sobre algo que chamou minha atenção: mulheres de tribos indígenas do Xingu estão desenvolvendo um projeto para discutir a violência contra as mulheres, vivenciada por elas com a objetivação de seus corpos e exibição não consentida de suas imagens.
A internet chegou as aldeias indígenas. E junto veio a pornografia. Os homens passaram a produzir imagens das mulheres xinguanas e compartilhá-las, sem o consentimento das próprias. O projeto ‘Yamurikumã Na Luta Por Seus Direitos’ tem como objetivo dar voz as mulheres do Xingu e, nesse caso específico, conscientizar os homens sobre os danos provocados pela divulgação de imagens das mulheres nas redes sociais.
Culturalmente, no Xingu, a nudez não é vista de forma agressiva, nem erótica. Há vários momentos em que integrantes da comunidade ficam nus ou participam de rituais e danças nus. Os próprios homens indígenas que compartilham as imagens passam a maior parte do tempo nus, mas não são expostos. No caso das mulheres, as fotos e vídeos são muitas vezes utilizados para difamar e prejudicar a imagem da mulher xinguana.
A partir da divulgação em redes sociais, pessoas de fora das comunidades tem acesso as imagens e passam a utilizá-las de diversas formas, muitas vezes desrespeitosas em relação as mulheres e as diferentes culturas indígenas. Isso tem sido mais uma forma de violência para as mulheres indígenas, que se veem excluídas de todo esse processo e ainda enfrentam o que é dito e feito com sua imagem. Numa matéria de Tâmara Freire para a Rádio EBC, Kaiulu Ialacuti conta que alguns povos chegaram ao ponto de cobrir as partes íntimas das meninas e adolescentes, durante cerimônias das quais elas tradicionalmente participam nuas, para evitar a produção de imagens erotizadas.
Relatos das mulheres indígenas também apontam uma frequência de comentários misóginos e violentos nas redes sociais. Como exemplo, contam que pegaram um trecho do documentário ‘As Hiper Mulheres‘, tiraram do contexto e passaram a divulgar que as mulheres xinguanas obrigam os homens a fazerem sexo. Isso foi sentido de forma muito negativa por essas mulheres. A maioria das imagens de mulheres indígenas na internet mostram nudez, enquanto a dos homens indígenas não. As mulheres indígenas há muito tempo são retratadas com ênfase em seu apelo sexual e elas querem mudar isso.
O projeto prevê a participação de convidadas para falar sobre violência contra as mulheres nas redes sociais e grupos de conscientização. Alguns povos, por iniciativa própria tem protegido as meninas, mas a maioria dos homens encara como uma brincadeira. Há uma luta árdua para que a violência psicológica seja reconhecida como violência nas aldeias.
Ao que parece, ter contato com a pornografia influenciou diretamente a maneira como os homens passaram a observar as mulheres e seus corpos. Essa associação pode não ser imediata e o compartilhamento das imagens remete a uma socialização masculina que utiliza os corpos das mulheres como objetos de troca. Isso são inferências que faço, já que a pornografia, especialmente aquela produzida pela indústria pornográfica, é um tema sempre presente nos debates feministas.
Acredito que a produção de imagens eróticas e pornográficas faz parte das vivências. Porém, essa situação também explicita como esses elementos podem ser usados para violentar a autonomia e autoestima das mulheres, o que muda são apenas os meios. Também percebe-se que as desculpas são as mesmas, até nas aldeias indígenas a violência é praticada sob o disfarce da brincadeira.
Bia Cardoso. Uma feminista lambateira tropical.