A prisão por “desobediência” ou por “desacato”, sempre foi uma tática adotada por parte dos comandos policiais para reprimir ou desqualificar as ações de resistência ou de luta social. Dentro de um cenário onde a esquerda ainda demonstra uma certa confusão diretiva em relação à sua postura política contra o golpe de estado perpetrado no ano passado, o MTST tem se mostrado forte, organizado e combativo no enfrentamento dos problemas sociais nos grandes centros urbanos.
Por trás da prisão de Boulos encontramos uma série de outros fatores que, somados, demonstram a gravidade da crise institucional que a nossa frágil democracia vem enfrentando desde a derrocada institucional imposta por Temers, Cunhas e seus asseclas.
Uma prova evidente desta crise foi o massacre de centenas de presidiários em Roraima, no Amazonas, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Norte em pouco mais de 1 semana, sem que as autoridades tivessem adotado qualquer medida preventiva para evitar este fato. Também estamos observados o aumento da violência da repressão policial contra as manifestações por democracia nas capitais e grandes cidades, com a conivência do silêncio dos meios de comunicação oligopolistas. Acrescenta-se a isto, o massacre institucionalizado a direitos fundamentais, inclusive pela mais alta corte do Poder Judiciário, ou seja, pelo Supremo Tribunal Federal.
Quando a Ministra Presidenta do Supremo, Carmen Lúcia, ressalta que o custo de 1 presidiário é maior para o estado do que o de 1 criança na escola, ela esconde duas informações importantes que deveriam ser analisadas criticamente: 1º) investe-se muito pouco em educação e remunera-se muito mal os profissionais de ensino; 2º) a falta de investimento em educação, pela inversão de valores, é um dos fatores que faz o governo aplicar mais recurso na construção de presídios do que em escolas.
Ainda existe um terceiro, que é a privatização crescente do setor previdenciário, tornando a prisão de cidadãos, muitos dos quais presos de forma preventiva ou por crimes de baixíssimo potencial ofensivo, um grande e lucrativo negócio. No mundo da ética, a privação de liberdade que, segundo o Marquês de Beccaria, deveria ser a última instância punitiva, e transformar prisões em negócios, é uma total aberração moral.
Pois, a prisão de Boulos escancara outra tragédia social, acrescida de uma inversão de valores. Mais de 3.000 pessoas sem moradia em um dos maiores centros urbanos do planeta. Entretanto, a polícia é mobilizada apenas para retirar estas pessoas do assentamento e prender as suas lideranças. A pergunta é: qual direito é mais importante, a propriedade privada de um grande espaço de terra no meio urbano ou a moradia digna? Se fizermos uma leitura correta e sistêmica da nossa Constituição, que afirma ser um dos fundamentos do Estado Brasileiro a dignidade da pessoa humana, é evidente que o direito à moradia deve preceder. É uma lógica inquestionável.
No entanto, quando abrimos a discussão, também podemos observar que ninguém pode ser preso sem provas independentemente das interpretações literárias, que é imperativo o devido processo legal, que é livre a manifestação de pensamento e de opinião, que é licita a manifestação em espaço público e o direito de reunião desde que não frustre outra reunião marcada para o mesmo local, que todos devem ser iguais perante à lei, e uma série de outras garantias e direitos fundamentais que compõem o acervo daquilo que chamamos de “cláusulas pétreas”, ou seja, regras que não podem ser desobedecidas ou modificadas em nenhum momento, só pelo poder constituinte originário. Em outras palavras, somente por uma revolução.
Mas, afinal, esta é a mesma Constituição que afirma ser a República Federativa do Brasil um Estado Democrático de Direito. E nenhuma afirmação pode ser mais vazia quando a guarda da Lei Fundamental é rotineiramente vilipendiada pelas próprias instituições que deveriam protegê-la…
Autor: Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado e analista político, mestre em ciências sociais