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Diário Liberdade
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Terça, 21 Fevereiro 2017 14:08 Última modificação em Quarta, 22 Fevereiro 2017 12:04

'O grande problema é a falta de dinheiro para o SUS, e não a forma de repasse desses recursos'

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País: Brasil / Institucional, Saúde / Fonte: EPSJV

[André Antunes] O Ministério da Saúde anunciou no dia 7 de fevereiro alterações no modelo de repasse dos recursos da União para estados e municípios.

Através do Projeto SUS Legal, como a medida foi batizada, a transferência de recursos federais para o SUS será feita por meio de dois blocos de financiamento: custeio e investimentos. Anteriormente os repasses eram feitos de acordo com o que ficou estabelecido pela portaria 204 de 2007, que dividia os repasses em seis blocos de financiamento distintos: Atenção Básica, Vigilância em Saúde, Média e Alta Complexidade, Medicamentos, Gestão e Investimento. Aprovada no dia 30 de janeiro em reunião da Comissão Intergestoras Tripartite (CIT), a medida contou com o apoio tanto do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) quanto do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).Essa é uma reivindicação antiga dos gestores, que alegam que o modelo vigente ‘engessa’ sua atuação uma vez que eles não podem dispor livremente dos recursos atrelados a cada bloco específico. Para Conass e Conasems, a mudança é importante no sentido de avançar no processo de regionalização do SUS. As mudanças, no entanto, também foram objeto de apreensão. Para alguns críticos a mudança representará um grave retrocesso no financiamento da Atenção Básica e da Vigilância em Saúde no SUS, podendo significar um desvio de recursos de áreas com menor visibilidade, como a Vigilância em Saúde, para áreas como a de média e alta complexidade, com forte presença do setor privado prestador de serviços para o SUS, que tem maior capacidade de exercer pressão sobre os gestores locais por mais recursos. Nesta entrevista, o professor da Universidade de São Paulo (USP) Áquilas Mendes argumenta que a questão tem mais contradições do que essa polêmica faz parecer. Segundo ele, essa é uma discussão que vem se dando desde a criação do SUS, cujo marco regulatório preconiza a alocação equitativa com base no planejamento de saúde construído nos conselhos estaduais e municipais de saúde. A questão, diz, é que isso nunca foi implementado e os repasses federais sempre foram feitos com base em critérios definidos pelo ministério, que com isso centralizava a decisão sobre as políticas de saúde que deveriam ser implantadas nos níveis estadual e municipal. Essa mudança poderia, então, ser uma boa notícia, mas ele adverte que, para isso, seria preciso alocar mais recursos para o SUS, o que não está nos planos do governo atual. O pesquisador faz um apanhado histórico desse debate e defende que hoje o foco das lutas precisa ser a garantia de mais recursos para o SUS.

Na sua opinião, o que significa para o SUS esse novo modelo de repasse de recursos da União para os estados e municípios?

Eu primeiro queria fazer um histórico sobre esse processo, para não cair na crítica que alguns estão fazendo e que eu considero muito superficial. Essa é uma reivindicação de estados e municípios há anos, desde que o SUS foi criado, desde a Lei Orgânica do SUS e, principalmente, da Lei 8.142, de 1990. A lei 8.142 trata das transferências de recursos no interior do SUS. E desde lá se falava na ideia do repasse dos recursos no fundo ao fundo, que seria do Fundo Nacional de Saúde para os fundos estadual e municipal de saúde, de forma automática e global. Na prática, isso só funcionou em 1993, com um processo de municipalização que se iniciou naquela época com a Norma Operacional Básica (NOB) 93 do Ministério da Saúde, que determinou a transferência dos recursos da União para 11 municípios do Brasil que foram habilitados para receber recursos da União de forma global, passando a ter a responsabilidade sobre as ações e execuções dos serviços de saúde. Na época isso era chamado de gestão semiplena. O que significa isso? Significa o município receber a transferência e usar o recurso mediante o seu planejamento local; vale dizer, o seu plano de saúde, decidido num conselho, ou seja, na sua política de saúde determinada pelas necessidades locais. Então, esses 11 municípios receberam, entre 1993 e 1995, recursos da União de forma global.

Isso não avançou por quê?

Acontece que o SUS vai sendo construído num embate muito forte, embate no qual estamos construindo a federação brasileira, que também é da Constituição de 1988. Não tem nada construído, é uma disputa muito intensa entre as esferas. E sabemos que historicamente a União sempre foi centralista e queria manter o poder. A Constituição diz que é para descentralizar recursos, mas não descentraliza encargos. Então, com essa ideia, a União nunca quis abrir mão do controle do poder do dinheiro. Acontece que, em 1994 entra o PSDB no governo e mudam-se os ministros, entra o [José] Serra na Saúde. O Serra vai criar, em 1996, uma nova portaria, que é a NOB 96. Ela abriu um flanco para a criação de incentivos financeiros que o governo federal vai usar para repassar recursos. O governo federal inventa uma política e exige que municípios e estados façam essa política na área da saúde. Se ele fizer, ele manda um projeto que vai ter um incentivo financeiro. Com base nisso, foram ganhando força os incentivos financeiros na forma de transferência de recursos dos ministérios, acabando com a ideia do repasse global. E aí vai-se criando o que na área da saúde ficou conhecido, na terminologia do senso comum, como ‘caixinhas’.

Naquela época, vários críticos, eu entre eles, escreviam artigos dizendo que o financiamento do SUS estava pautado pelo governo federal; que a política era dada pelo governo federal, porque ele inventava os programas e criava recursos para isso. Se o município e o estado criassem, eles recebiam; senão, não tinham dinheiro. Então, a política é dada pelo financiamento centralizado. O Serra, por exemplo, criou a campanha de combate ao câncer de colo uterino. Se o município criasse lá o projeto para fazer essa campanha, recebia o recurso. Se ele inventasse campanha pra combater a catarata, tinha município que não tinha nem quase problema de catarata, mas ia atrás, porque fazendo esse projeto e mandando para o Ministério, recebia recursos.

Agora, o grande mote na NOB 96, foi o Saúde da Família. Se você implantar uma equipe de Saúde da Família, você tem tanto de recurso do Ministério; se nessa equipe você implantar agente comunitário, você tem mais recursos por agente comunitário. A NOB 96 criou o PAB, Piso da Atenção Básica. Vários autores da época já vão dizer que oPiso da Atenção Básica  abriu a porteira para crescer mais incentivos. Por quê? Porque o ministério vai repassar os recursos mediante um per capita nacional do governo federal. Na época, foi concebido que o valor seria de R$ 10 per capita ao ano. Se você olhar a transferência do Ministério, quando a gente fala de atenção básica, por exemplo, o que mais cresceu foi o chamado PAB variável, não o PAB fixo, que é baseado no per capita; o PAB variável eram os incentivos para implantar as políticas do governo federal: implantou Saúde da Família? Tem incentivo. Incorporou dentista na equipe? Tem mais incentivo. E foi abrindo o que tudo mundo vai chamar de “caixinha”. Tudo pela lógica do governo federal. Por isso havia um pleito, sobretudo dos gestores, dos secretários municipais de saúde, Conasems, do Conass, de acabar com isso e criar a transferência em bloco.

E é isso o que foi aprovado em janeiro pela CIT?

Exatamente. Na realidade, havia um pleito constante de acabar com essas ‘caixinhas’. Nós chegamos ter a cerca de 300 formas de repasse. Então, por exemplo, o município lá de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, tinha um gestor de saúde que tinha que abrir umas 20 ou 30 contas para poder fazer o controle do repasse. Então, ele é mais um despachante do Ministério, para fazer a política que o ministério induz, do que efetivamente alguém para fazer uma política colada nas necessidades de saúde locais. Já no governo Lula, quando houve o Pacto pela Saúde, teve uma nova portaria do Ministério para tentar tirar essa fragmentação de forma de repasse. O Pacto pela Saúde tentou terminar com as portarias, com os incentivos todos, mas não se conseguiu avançar no debate. Naquela época, eu já acompanhava e já produzia para o próprio Ministério sobre como fazer uma alocação equitativa de recursos, ou seja, a transferência seria passada para garantir equidade, corrigir as desigualdades. Não poderia ser pela lógica de produção, mas sim pela lógica das necessidades de saúde, características epidemiológicas, socioeconômicas. Começamos a fazer estudos, chegou o momento em que a gente foi apresentar o estudo ao Ministério, na época do ministro Saraiva Felipe, já no governo Lula, e aí eles disseram: “Está ótimo, o estudo está muito bacana, mas vamos fazer o seguinte, vamos juntar todas as caixinhas e vamos criar oito blocos de financiamento”. Oito blocos por quê? Porque você tinha oito secretarias no Ministério da Saúde. Então foi por área programática, nível de atenção, quem mais tinha poder.

Isso foi com a portaria 204, de 2007, que estava em vigor?

Exatamente. No final foram criados os cinco blocos, que depois viraram seis, que estão até hoje. Veja que isso é um debate do Pacto, que é de 2006, mas que só sai essa definição em 2007. Então, no finalzinho de 2007 a transferência passa a ser por blocos, que continuam com a lógica de oferta, só se mudou a forma de repasse de acordo com as áreas que mais pressionavam: a média e alta complexidade e a área da SAS [Secretaria de Atenção à Saúde] do Ministério. Então ficaram os blocos de: Gestão, Assistência Farmacêutica, Vigilância Sanitária, Atenção Básica e Média e Alta Complexidade. E depois criaram o bloco de investimento, no governo Lula, que não tinha muito uma defesa do SUS, porque vinha dos sindicatos e os sindicatos não defendem muito o SUS. Então a marca do Lula foi criar as Unidades de Pronto Atendimento, as famosas UPAs. A UPA significava construir uma coisa que vai aparecer, que é um contêiner e tal, mas muito município dizia: ‘eu não preciso de uma UPA, eu já tenho pronto-socorro, preciso de dinheiro pra ele’. Não, agora a política é a UPA. Se criar a UPA tem dinheiro, faz o projeto e tal, o Ministério ajuda e instala a UPA.

Aí, em 2012, foi aprovada a Emenda Constitucional 29, que se materializa na chamada Lei Complementar 141. Já havia um debate intenso para regulamentar a emenda, e a discussão não era só ter mais recurso, mas era a forma de distribuição dos recursos da União. Então, há o artigo 17 na lei 141, que diz como se devem dar as transferências na rede a partir de 2012. A transferência deve ser repassada pela União para os estados e municípios tendo como critério as necessidades em saúde, balizadas nas condições demográficas, epidemiológicas, socioeconômicas e espaciais. Porque, por exemplo, como fica o pessoal na Região Norte? Eles precisam se deslocar às vezes dez dias de barco para ter uma referência., e então, você tem que considerar esse critério na forma de transferência. A discussão deveria ser equidade e não somente produção, a questão espacial também era importante.

Só que na hora do ‘vamos ver’, com o movimento interno e a pressão do mercado, acabaram saindo nesse artigo, além desses critérios que eu falei, os critérios estabelecidos no artigo 35 da lei 8080. O artigo 35 fala em capacidade de oferta, fala em algumas questões demográficas e tal, mas fala de outras coisas também, inclusive coisas que não tinham sentido, como o plano quinquenal de cada ente federado. Não existe no Brasil plano quinquenal, o que existe é plano quadrienal, que são quatro anos. Na época havia um estudo do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] dizendo que parte dos critérios do artigo 35 não eram aplicáveis, outra parte, sim. E nunca foi regulamentado esse artigo 35. Já em 2012 formou-se um grupo na tripartite da qual eu participei para discutir como operacionalizar esse artigo 17. Em 2013 nós começamos a discutir nesse grupo, conduzido pelo Ministério, que então começou a querer discutir para dentro, com as diversas áreas programáticas. E as áreas não queriam abrir mão dos blocos, porque os blocos já eram a garantia de ‘reserva de mercado’, vamos chamar assim, de cada área para obter recurso. E as áreas começam a exigir que haja uma fragmentação por dentro dos blocos de financiamento. Então, a área da saúde mental cria a coisa dos CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], que é um avanço, só que requer incentivo financeiro, então isso é incorporado dentro da média e alta complexidade. Ao incorporar, o município na ponta tem que abrir uma conta separada para as coisas da saúde mental porque ele tem que prestar conta para essa área. Então, por dentro dos cinco blocos há 890 formas de repasse de recursos. O que, na prática, exige que lá na ponta os gestores abram conta para prestar contas para os órgãos de controle, que vêm ganhando espaço no país. O que é uma coisa positiva, mas também tem o lado negativo. Os órgãos de controle adoram essa fragmentação, porque vem tudo amarrado, controlado.

Mas o que a aprovação dessa portaria significa no contexto político atual?

Nós estamos num quadro político muito complicado. Só que, por dentro do SUS, os gestores têm que se virar. Conass e Conasems não pararam de pedir que isso tudo fosse aglutinado ao longo desse tempo todo, e o Ministério sequer discutia com eles. Quando você aloca de forma equitativa, vai ter que tirar recurso de um estado, por exemplo, e passar para aquele que está precisando mais. E isso politicamente é inviável. E aí vai precisar de recurso novo para fazer a distribuição equitativa de recurso. Então, como nós temos problema de financiamento do SUS, não tem recurso novo. Aí entra o governo Temer e aprova a PEC 241, que virou a Emenda Constitucional 95. Então, a situação do sistema é grave porque não tem recurso. Tem a pressão do gestor na ponta de município e do estado, porque a crise está batendo em todos, tem queda de arrecadação nos estados e municípios. Os municípios sempre reclamaram que se sobrava dinheiro na média e alta eles não podiam pegar esse dinheiro e passar para a atenção básica e vice-versa, porque os orçamentos são formados por blocos que criam programa orçamentário e na lei orçamentária você não pode deslocar de um para o outro. Então, eles estão amarrados.

Este ministro, diante da falta de recursos, na sua correlação de forças políticas, foi levado pelos gestores e pela equipe dele no Ministério, sobretudo a secretaria executiva que veio do Conasems, a acabar com isso. O ministro, é claro, nem sabe de todos esses debates que eu falei. Ele, politicamente, faz isso numa situação de ausência de recursos, porque aí os estados e municípios não vão poder reclamar. Ele agora joga lá para baixo, na pressão e na disputa no município e no estado. Os órgãos de controle não gostaram disso , o Ministério da Fazenda e Planejamento nunca permitiu isso. O problema é que antes o Ministério da Saúde não tinha poder para ir direto ao presidente, porque os ministérios da Fazenda e do Planejamento sempre foram mais fortes. Só que agora, as áreas sociais estão todas a reboque da lógica da política de exceção que este governo está lançando. Então, o ministro, que nem da saúde é, teve o aval do Temer. É a contradição do processo. Toda essa minha fala é porque eu não posso dizer simplesmente se sou contra ou a favor. Nós temos que levar a contradição e expor as vantagens e desvantagens.

Que são quais?

Uma vantagem é que você agiliza e traz à tona a ideia de que a construção da política tem que se dar localmente e não induzida pelo governo federal, e traz maleabilidade para que os gestores possam fazer e executar melhor política de saúde. Mas, para isso, tem que amarrar com critérios de rateio que a lei impõe. Há todo um debate dos gestores de pressionar o Ministério. Eles estão sentados juntos para garantir que vai ter que construir nessa fase de transição esses critérios de rateio. Inclusive, eu estive no Conselho Nacional de Saúde colocando isso, que pode ser uma desvantagem se não amarrar com os critérios. A desvantagem seria que vai ficar solto lá na ponta e aí é claro que o mercado pressiona muito mais.

Essa foi uma das críticas colocadas também nesse processo, de que a nova forma de repasse de recursos vai abrir caminho para que o mercado de média e alta complexidade que presta serviço para o SUS possa pressionar por uma fatia maior dos recursos no nível municipal. Qual é sua análise sobre o risco disso vir a acontecer?

A gente tem que garantir agora os critérios de rateio. Por quê? Nos critérios de rateio é assim: você vai ter que mandar o recurso baseado em necessidades de saúde medidas por critérios demográficos, epidemiológicos, socioeconômicos e espaciais. Você precisa medir o desempenho, o que o município e o estado fizeram de saúde. Porque se você mandar e deixar que a disputa fique lá no mercado, a média e alta então vão se sobrepor, você tem que garantir não do ponto de vista do controlismo da área programática. Como se vai medir desempenho técnico? Você vai medir frente ao que se definiu como planejamento local, ao que está lá no plano de saúde, com metas, indicadores. Como é que eu vou medir? O resultado que você alcançou daquela meta. Aí a forma de transferência não vai ser por incentivo de cada área, mas pelo resultado geral da política. Essa é a reivindicação desde aquela época. Mas, para isso, precisa todo apoio à construção do planejamento, precisa que o conselho de saúde tenha esse papel. Agora a gente volta a impor essa discussão, mas vai precisar fazer pressão política, senão não garante. Quando eu estive no Conselho Nacional de Saúde, defendi que eles devem fazer essa ponderação. Eles estão começando a trabalhar nisso, mas agora vai depender da pressão política. Esses critérios têm que ser discutidos conjuntamente, porque se ficar somente a ideia de passar custeio e investimento e ponto, vai ser um problema.

Alguns críticos alertam para o risco de que isso signifique uma perda de recursos para áreas com menos poder de pressão política, como a vigilância sanitária, o que pode ser bastante grave especialmente num contexto de epidemias como a da febre amarela e a zika. Qual a sua avaliação sobre isso?

Eu não concordo com essa crítica de que agora acabou a vigilância sanitária, acabou a atenção básica. Ora, a atenção básica e a vigilância sanitária já vêm acabando há muito tempo. O SUS vem acabando há muito tempo por uma série de outros motivos. Essas críticas são programáticas. O bloco da vigilância era um dinheirinho tão pequeno. E não é que vá acabar o bloco da vigilância, porque na realidade a ideia que a gente tem que atacar é a de que é só juntar os blocos.Na ponta, o município já tem ações de vigilância que ele tem que dar conta. Ele não vai deixar de fazer aquilo. O que nós precisamos é fazer uma discussão para enfrentar esse debate. O problema é a ausência do financiamento da saúde, do SUS. Não tem recursos. Não vai ser a modalidade de repasse que vai impactar. Eu acho que essa crítica é bem de reserva de mercado da área deles, da atenção básica e tal. Nós temos que trabalhar para reforçar o SUS em outra lógica.

Os gestores do Conasems e Conass são enfáticos em dizer que já estão trabalhando na regulamentação dessa portaria onde tudo isso vai ser amarrado. Agora, o quadro político é muito complicado. Então na realidade, eu não sei até que ponto há margem para isso.

E isso tem um prazo definido?

Eles querem dar o prazo até 60 dias a partir da emissão da portaria. E eles já estão trabalhando. O Conasems fez uma oficina e me chamou para discutir, o Conass vai chamar em outra oficina, estão chamando técnicos, pessoas que estudam isso. Agora, é do embate político, nós estamos num quadro político complicado, então não dá para dizer que acabou. Essa é uma visão simplista, é preciso ponderar a contradição do processo. Essa discussão não pode estar associada simplesmente a criar a modalidade de custeio e capital. Do ponto de vista do Ministério e do governo, eles fizeram o jogo deles. Qual é o jogo? Joga lá para baixo, deixa os estados se enfrentarem com o mercado e ele tira a batata quente dele, porque não tem recurso. Mas a todo momento tem que se estar discutindo que tem que ter recurso novo para a saúde.

Um dos argumentos do ministério para defender a alteração é de que em 2016 os municípios deixaram de usar R$ 5,7 bilhões em recursos por conta do modelo anterior de repasse. Esse argumento é válido?

Nós fizemos estimativa para poder fazer a locação equitativa, e identificamos que teria que ter R$ 5 bilhões a mais. Com R$ 5 bilhões eu já melhoraria a forma de transferência, garantiria equidade e tal. Isso para os estados. Quando eu falei isso no Conselho Nacional de Saúde, o representante do Ministério da Secretaria de Orçamento, indicado por esse ministro, virou e disse. “R$ 5 bilhões é o dinheiro que os municípios deixaram no fundo e não usaram”. Então eles estão jogando agora que os municípios e estados é que são os culpados, eles que se virem porque o ministério está fazendo a sua parte. Então, é um pouco um meio de jogar a batata quente para lá. Se você perguntar isso para o Conasems, eles vão dizer que não, que o que ficou em caixa foi problema de dinheiro que veio atrasado, dada a insuficiência orçamentária, o problema do financiamento do SUS, e que eles não podem deslocar para cá e para lá. Então fica parado. Aí a discussão vai para um nível de uma tecnicalidade na execução orçamentária. A gente não pode cair nisso.

O que eu digo é o seguinte: tem que problematizar, porque isso que está sendo anunciado como uma grande questão não é a grande questão. A grande questão é a forma com que o ministério está privatizando por dentro, defendendo planos de saúde populares. Nós somos contra tudo isso. Aí joga isso do modelo de repasse como uma grande questão, e os opositores mais imediatos, que estavam no governo até ontem, fazem a crítica, dizendo que agora então virou um grande problema. Eu tenho receio que isso vá deslocando o debate da privatização por dentro que está se fazendo, com o modelo que o ministro anuncia sempre, nessa lógica dos planos acessíveis.

Na sua opinião, o que significa para o SUS esse novo modelo de repasse de recursos da União para os estados e municípios?

Eu primeiro queria fazer um histórico sobre esse processo, para não cair na crítica que alguns estão fazendo e que eu considero muito superficial. Essa é uma reivindicação de estados e municípios há anos, desde que o SUS foi criado, desde a Lei Orgânica do SUS e, principalmente, da Lei 8.142, de 1990. A lei 8.142 trata das transferências de recursos no interior do SUS. E desde lá se falava na ideia do repasse dos recursos no fundo ao fundo, que seria do Fundo Nacional de Saúde para os fundos estadual e municipal de saúde, de forma automática e global. Na prática, isso só funcionou em 1993, com um processo de municipalização que se iniciou naquela época com a Norma Operacional Básica (NOB) 93 do Ministério da Saúde, que determinou a transferência dos recursos da União para 11 municípios do Brasil que foram habilitados para receber recursos da União de forma global, passando a ter a responsabilidade sobre as ações e execuções dos serviços de saúde. Na época isso era chamado de gestão semiplena. O que significa isso? Significa o município receber a transferência e usar o recurso mediante o seu planejamento local; vale dizer, o seu plano de saúde, decidido num conselho, ou seja, na sua política de saúde determinada pelas necessidades locais. Então, esses 11 municípios receberam, entre 1993 e 1995, recursos da União de forma global.

Isso não avançou por quê?

Acontece que o SUS vai sendo construído num embate muito forte, embate no qual estamos construindo a federação brasileira, que também é da Constituição de 1988. Não tem nada construído, é uma disputa muito intensa entre as esferas. E sabemos que historicamente a União sempre foi centralista e queria manter o poder. A Constituição diz que é para descentralizar recursos, mas não descentraliza encargos. Então, com essa ideia, a União nunca quis abrir mão do controle do poder do dinheiro. Acontece que, em 1994 entra o PSDB no governo e mudam-se os ministros, entra o [José] Serra na Saúde. O Serra vai criar, em 1996, uma nova portaria, que é a NOB 96. Ela abriu um flanco para a criação de incentivos financeiros que o governo federal vai usar para repassar recursos. O governo federal inventa uma política e exige que municípios e estados façam essa política na área da saúde. Se ele fizer, ele manda um projeto que vai ter um incentivo financeiro. Com base nisso, foram ganhando força os incentivos financeiros na forma de transferência de recursos dos ministérios, acabando com a ideia do repasse global. E aí vai-se criando o que na área da saúde ficou conhecido, na terminologia do senso comum, como ‘caixinhas’.

Naquela época, vários críticos, eu entre eles, escreviam artigos dizendo que o financiamento do SUS estava pautado pelo governo federal; que a política era dada pelo governo federal, porque ele inventava os programas e criava recursos para isso. Se o município e o estado criassem, eles recebiam; senão, não tinham dinheiro. Então, a política é dada pelo financiamento centralizado. O Serra, por exemplo, criou a campanha de combate ao câncer de colo uterino. Se o município criasse lá o projeto para fazer essa campanha, recebia o recurso. Se ele inventasse campanha pra combater a catarata, tinha município que não tinha nem quase problema de catarata, mas ia atrás, porque fazendo esse projeto e mandando para o Ministério, recebia recursos.

Agora, o grande mote na NOB 96, foi o Saúde da Família. Se você implantar uma equipe de Saúde da Família, você tem tanto de recurso do Ministério; se nessa equipe você implantar agente comunitário, você tem mais recursos por agente comunitário. A NOB 96 criou o PAB, Piso da Atenção Básica. Vários autores da época já vão dizer que oPiso da Atenção Básica  abriu a porteira para crescer mais incentivos. Por quê? Porque o ministério vai repassar os recursos mediante um per capita nacional do governo federal. Na época, foi concebido que o valor seria de R$ 10 per capita ao ano. Se você olhar a transferência do Ministério, quando a gente fala de atenção básica, por exemplo, o que mais cresceu foi o chamado PAB variável, não o PAB fixo, que é baseado no per capita; o PAB variável eram os incentivos para implantar as políticas do governo federal: implantou Saúde da Família? Tem incentivo. Incorporou dentista na equipe? Tem mais incentivo. E foi abrindo o que tudo mundo vai chamar de “caixinha”. Tudo pela lógica do governo federal. Por isso havia um pleito, sobretudo dos gestores, dos secretários municipais de saúde, Conasems, do Conass, de acabar com isso e criar a transferência em bloco.

E é isso o que foi aprovado em janeiro pela CIT?

Exatamente. Na realidade, havia um pleito constante de acabar com essas ‘caixinhas’. Nós chegamos ter a cerca de 300 formas de repasse. Então, por exemplo, o município lá de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, tinha um gestor de saúde que tinha que abrir umas 20 ou 30 contas para poder fazer o controle do repasse. Então, ele é mais um despachante do Ministério, para fazer a política que o ministério induz, do que efetivamente alguém para fazer uma política colada nas necessidades de saúde locais. Já no governo Lula, quando houve o Pacto pela Saúde, teve uma nova portaria do Ministério para tentar tirar essa fragmentação de forma de repasse. O Pacto pela Saúde tentou terminar com as portarias, com os incentivos todos, mas não se conseguiu avançar no debate. Naquela época, eu já acompanhava e já produzia para o próprio Ministério sobre como fazer uma alocação equitativa de recursos, ou seja, a transferência seria passada para garantir equidade, corrigir as desigualdades. Não poderia ser pela lógica de produção, mas sim pela lógica das necessidades de saúde, características epidemiológicas, socioeconômicas. Começamos a fazer estudos, chegou o momento em que a gente foi apresentar o estudo ao Ministério, na época do ministro Saraiva Felipe, já no governo Lula, e aí eles disseram: “Está ótimo, o estudo está muito bacana, mas vamos fazer o seguinte, vamos juntar todas as caixinhas e vamos criar oito blocos de financiamento”. Oito blocos por quê? Porque você tinha oito secretarias no Ministério da Saúde. Então foi por área programática, nível de atenção, quem mais tinha poder.

Isso foi com a portaria 204, de 2007, que estava em vigor?

Exatamente. No final foram criados os cinco blocos, que depois viraram seis, que estão até hoje. Veja que isso é um debate do Pacto, que é de 2006, mas que só sai essa definição em 2007. Então, no finalzinho de 2007 a transferência passa a ser por blocos, que continuam com a lógica de oferta, só se mudou a forma de repasse de acordo com as áreas que mais pressionavam: a média e alta complexidade e a área da SAS [Secretaria de Atenção à Saúde] do Ministério. Então ficaram os blocos de: Gestão, Assistência Farmacêutica, Vigilância Sanitária, Atenção Básica e Média e Alta Complexidade. E depois criaram o bloco de investimento, no governo Lula, que não tinha muito uma defesa do SUS, porque vinha dos sindicatos e os sindicatos não defendem muito o SUS. Então a marca do Lula foi criar as Unidades de Pronto Atendimento, as famosas UPAs. A UPA significava construir uma coisa que vai aparecer, que é um contêiner e tal, mas muito município dizia: ‘eu não preciso de uma UPA, eu já tenho pronto-socorro, preciso de dinheiro pra ele’. Não, agora a política é a UPA. Se criar a UPA tem dinheiro, faz o projeto e tal, o Ministério ajuda e instala a UPA.

Aí, em 2012, foi aprovada a Emenda Constitucional 29, que se materializa na chamada Lei Complementar 141. Já havia um debate intenso para regulamentar a emenda, e a discussão não era só ter mais recurso, mas era a forma de distribuição dos recursos da União. Então, há o artigo 17 na lei 141, que diz como se devem dar as transferências na rede a partir de 2012. A transferência deve ser repassada pela União para os estados e municípios tendo como critério as necessidades em saúde, balizadas nas condições demográficas, epidemiológicas, socioeconômicas e espaciais. Porque, por exemplo, como fica o pessoal na Região Norte? Eles precisam se deslocar às vezes dez dias de barco para ter uma referência., e então, você tem que considerar esse critério na forma de transferência. A discussão deveria ser equidade e não somente produção, a questão espacial também era importante.

Só que na hora do ‘vamos ver’, com o movimento interno e a pressão do mercado, acabaram saindo nesse artigo, além desses critérios que eu falei, os critérios estabelecidos no artigo 35 da lei 8080. O artigo 35 fala em capacidade de oferta, fala em algumas questões demográficas e tal, mas fala de outras coisas também, inclusive coisas que não tinham sentido, como o plano quinquenal de cada ente federado. Não existe no Brasil plano quinquenal, o que existe é plano quadrienal, que são quatro anos. Na época havia um estudo do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] dizendo que parte dos critérios do artigo 35 não eram aplicáveis, outra parte, sim. E nunca foi regulamentado esse artigo 35. Já em 2012 formou-se um grupo na tripartite da qual eu participei para discutir como operacionalizar esse artigo 17. Em 2013 nós começamos a discutir nesse grupo, conduzido pelo Ministério, que então começou a querer discutir para dentro, com as diversas áreas programáticas. E as áreas não queriam abrir mão dos blocos, porque os blocos já eram a garantia de ‘reserva de mercado’, vamos chamar assim, de cada área para obter recurso. E as áreas começam a exigir que haja uma fragmentação por dentro dos blocos de financiamento. Então, a área da saúde mental cria a coisa dos CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], que é um avanço, só que requer incentivo financeiro, então isso é incorporado dentro da média e alta complexidade. Ao incorporar, o município na ponta tem que abrir uma conta separada para as coisas da saúde mental porque ele tem que prestar conta para essa área. Então, por dentro dos cinco blocos há 890 formas de repasse de recursos. O que, na prática, exige que lá na ponta os gestores abram conta para prestar contas para os órgãos de controle, que vêm ganhando espaço no país. O que é uma coisa positiva, mas também tem o lado negativo. Os órgãos de controle adoram essa fragmentação, porque vem tudo amarrado, controlado.

Mas o que a aprovação dessa portaria significa no contexto político atual?

Nós estamos num quadro político muito complicado. Só que, por dentro do SUS, os gestores têm que se virar. Conass e Conasems não pararam de pedir que isso tudo fosse aglutinado ao longo desse tempo todo, e o Ministério sequer discutia com eles. Quando você aloca de forma equitativa, vai ter que tirar recurso de um estado, por exemplo, e passar para aquele que está precisando mais. E isso politicamente é inviável. E aí vai precisar de recurso novo para fazer a distribuição equitativa de recurso. Então, como nós temos problema de financiamento do SUS, não tem recurso novo. Aí entra o governo Temer e aprova a PEC 241, que virou a Emenda Constitucional 95. Então, a situação do sistema é grave porque não tem recurso. Tem a pressão do gestor na ponta de município e do estado, porque a crise está batendo em todos, tem queda de arrecadação nos estados e municípios. Os municípios sempre reclamaram que se sobrava dinheiro na média e alta eles não podiam pegar esse dinheiro e passar para a atenção básica e vice-versa, porque os orçamentos são formados por blocos que criam programa orçamentário e na lei orçamentária você não pode deslocar de um para o outro. Então, eles estão amarrados.

Este ministro, diante da falta de recursos, na sua correlação de forças políticas, foi levado pelos gestores e pela equipe dele no Ministério, sobretudo a secretaria executiva que veio do Conasems, a acabar com isso. O ministro, é claro, nem sabe de todos esses debates que eu falei. Ele, politicamente, faz isso numa situação de ausência de recursos, porque aí os estados e municípios não vão poder reclamar. Ele agora joga lá para baixo, na pressão e na disputa no município e no estado. Os órgãos de controle não gostaram disso , o Ministério da Fazenda e Planejamento nunca permitiu isso. O problema é que antes o Ministério da Saúde não tinha poder para ir direto ao presidente, porque os ministérios da Fazenda e do Planejamento sempre foram mais fortes. Só que agora, as áreas sociais estão todas a reboque da lógica da política de exceção que este governo está lançando. Então, o ministro, que nem da saúde é, teve o aval do Temer. É a contradição do processo. Toda essa minha fala é porque eu não posso dizer simplesmente se sou contra ou a favor. Nós temos que levar a contradição e expor as vantagens e desvantagens.

Que são quais?

Uma vantagem é que você agiliza e traz à tona a ideia de que a construção da política tem que se dar localmente e não induzida pelo governo federal, e traz maleabilidade para que os gestores possam fazer e executar melhor política de saúde. Mas, para isso, tem que amarrar com critérios de rateio que a lei impõe. Há todo um debate dos gestores de pressionar o Ministério. Eles estão sentados juntos para garantir que vai ter que construir nessa fase de transição esses critérios de rateio. Inclusive, eu estive no Conselho Nacional de Saúde colocando isso, que pode ser uma desvantagem se não amarrar com os critérios. A desvantagem seria que vai ficar solto lá na ponta e aí é claro que o mercado pressiona muito mais.

Essa foi uma das críticas colocadas também nesse processo, de que a nova forma de repasse de recursos vai abrir caminho para que o mercado de média e alta complexidade que presta serviço para o SUS possa pressionar por uma fatia maior dos recursos no nível municipal. Qual é sua análise sobre o risco disso vir a acontecer?

A gente tem que garantir agora os critérios de rateio. Por quê? Nos critérios de rateio é assim: você vai ter que mandar o recurso baseado em necessidades de saúde medidas por critérios demográficos, epidemiológicos, socioeconômicos e espaciais. Você precisa medir o desempenho, o que o município e o estado fizeram de saúde. Porque se você mandar e deixar que a disputa fique lá no mercado, a média e alta então vão se sobrepor, você tem que garantir não do ponto de vista do controlismo da área programática. Como se vai medir desempenho técnico? Você vai medir frente ao que se definiu como planejamento local, ao que está lá no plano de saúde, com metas, indicadores. Como é que eu vou medir? O resultado que você alcançou daquela meta. Aí a forma de transferência não vai ser por incentivo de cada área, mas pelo resultado geral da política. Essa é a reivindicação desde aquela época. Mas, para isso, precisa todo apoio à construção do planejamento, precisa que o conselho de saúde tenha esse papel. Agora a gente volta a impor essa discussão, mas vai precisar fazer pressão política, senão não garante. Quando eu estive no Conselho Nacional de Saúde, defendi que eles devem fazer essa ponderação. Eles estão começando a trabalhar nisso, mas agora vai depender da pressão política. Esses critérios têm que ser discutidos conjuntamente, porque se ficar somente a ideia de passar custeio e investimento e ponto, vai ser um problema.

Alguns críticos alertam para o risco de que isso signifique uma perda de recursos para áreas com menos poder de pressão política, como a vigilância sanitária, o que pode ser bastante grave especialmente num contexto de epidemias como a da febre amarela e a zika. Qual a sua avaliação sobre isso?

Eu não concordo com essa crítica de que agora acabou a vigilância sanitária, acabou a atenção básica. Ora, a atenção básica e a vigilância sanitária já vêm acabando há muito tempo. O SUS vem acabando há muito tempo por uma série de outros motivos. Essas críticas são programáticas. O bloco da vigilância era um dinheirinho tão pequeno. E não é que vá acabar o bloco da vigilância, porque na realidade a ideia que a gente tem que atacar é a de que é só juntar os blocos.Na ponta, o município já tem ações de vigilância que ele tem que dar conta. Ele não vai deixar de fazer aquilo. O que nós precisamos é fazer uma discussão para enfrentar esse debate. O problema é a ausência do financiamento da saúde, do SUS. Não tem recursos. Não vai ser a modalidade de repasse que vai impactar. Eu acho que essa crítica é bem de reserva de mercado da área deles, da atenção básica e tal. Nós temos que trabalhar para reforçar o SUS em outra lógica.

Os gestores do Conasems e Conass são enfáticos em dizer que já estão trabalhando na regulamentação dessa portaria onde tudo isso vai ser amarrado. Agora, o quadro político é muito complicado. Então na realidade, eu não sei até que ponto há margem para isso.

E isso tem um prazo definido?

Eles querem dar o prazo até 60 dias a partir da emissão da portaria. E eles já estão trabalhando. O Conasems fez uma oficina e me chamou para discutir, o Conass vai chamar em outra oficina, estão chamando técnicos, pessoas que estudam isso. Agora, é do embate político, nós estamos num quadro político complicado, então não dá para dizer que acabou. Essa é uma visão simplista, é preciso ponderar a contradição do processo. Essa discussão não pode estar associada simplesmente a criar a modalidade de custeio e capital. Do ponto de vista do Ministério e do governo, eles fizeram o jogo deles. Qual é o jogo? Joga lá para baixo, deixa os estados se enfrentarem com o mercado e ele tira a batata quente dele, porque não tem recurso. Mas a todo momento tem que se estar discutindo que tem que ter recurso novo para a saúde.

Um dos argumentos do ministério para defender a alteração é de que em 2016 os municípios deixaram de usar R$ 5,7 bilhões em recursos por conta do modelo anterior de repasse. Esse argumento é válido?

Nós fizemos estimativa para poder fazer a locação equitativa, e identificamos que teria que ter R$ 5 bilhões a mais. Com R$ 5 bilhões eu já melhoraria a forma de transferência, garantiria equidade e tal. Isso para os estados. Quando eu falei isso no Conselho Nacional de Saúde, o representante do Ministério da Secretaria de Orçamento, indicado por esse ministro, virou e disse. “R$ 5 bilhões é o dinheiro que os municípios deixaram no fundo e não usaram”. Então eles estão jogando agora que os municípios e estados é que são os culpados, eles que se virem porque o ministério está fazendo a sua parte. Então, é um pouco um meio de jogar a batata quente para lá. Se você perguntar isso para o Conasems, eles vão dizer que não, que o que ficou em caixa foi problema de dinheiro que veio atrasado, dada a insuficiência orçamentária, o problema do financiamento do SUS, e que eles não podem deslocar para cá e para lá. Então fica parado. Aí a discussão vai para um nível de uma tecnicalidade na execução orçamentária. A gente não pode cair nisso.

O que eu digo é o seguinte: tem que problematizar, porque isso que está sendo anunciado como uma grande questão não é a grande questão. A grande questão é a forma com que o ministério está privatizando por dentro, defendendo planos de saúde populares. Nós somos contra tudo isso. Aí joga isso do modelo de repasse como uma grande questão, e os opositores mais imediatos, que estavam no governo até ontem, fazem a crítica, dizendo que agora então virou um grande problema. Eu tenho receio que isso vá deslocando o debate da privatização por dentro que está se fazendo, com o modelo que o ministro anuncia sempre, nessa lógica dos planos acessíveis.

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