Você traduziu os textos das intelectuais e militantes estadunidenses que convocaram a Greve Internacional das Mulheres neste 8 de Março. Você pode nos explicar como este movimento se fortaleceu e encontrou eco nos outros países?
Na verdade há alguns anos a gente já vem acompanhando um trabalho de renovação intelectual no feminismo nos Estados Unidos, que vem sendo costurado, inclusive, não só por americanas, mas intelectuais que migraram para os Estados Unidos para trabalhar como pesquisadoras, professoras, e há alguns anos começamos a traduzir e a publicar algumas coisas dessas mulheres, em especial da Cinzia Arruzza, que é uma italiana que agora está na New School, em Nova Iorque. E nós vimos que tinha uma tendência, não muito conhecida, mas com alguma repercussão, de pensar um feminismo unitário que pudesse superar a fragmentação crônica na qual se encontrava o feminismo norte americano, muito em virtude da crise, da influência da hegemonia neoliberal no próprio movimento social, na fragmentação, que é resultante dessa hegemonia. Então, no começo desse ano, a Cinzia e outras mulheres publicaram um manifesto chamando para um 8 de Março internacional, muito inspirado no que tinha sido a greve das mulheres na Argentina e na Polônia, um movimento de massas mesmo, e também por conta das manifestações multitudinárias contra o Donald Trump [presidente dos EUA], que as mulheres protagonizaram no comecinho desse ano. Nós traduzimos imediatamente porque avaliamos que aquilo ali tinha um potencial, digamos assim. Aí quando o blog da Boitempo [editora] replicou o manifesto, a coisa tomou uma proporção bem maior mesmo. Traduzimos depois outro texto discutindo a polêmica de chamar o 8 de Março de greve. Isso é muito legal, porque é uma discussão que aqui no Brasil não foi tão polêmica, mas tem um significado porque esse é o primeiro oito de março, em muito tempo, que não é só um dia de luta específico de mulheres, mas com pautas que ganharam uma universalidade muito específica, muito particular, uma universalidade que não existia antes. Tratava-se muito o 8 de Março como uma data isolada, de manifestações, quase uma extensão daquela idéia de celebrar a mulher, flores para as mulheres. E nós já vínhamos reclamando disso há alguns anos. E esse ano isso mudou, o protagonismo das mulheres é muito grande internacionalmente, então há uma visibilidade muito maior pra esse dia, e as bandeiras são mais amplas.
Que acúmulos permitiram essa mudança de patamar agora?
Eu penso que são dois processos em paralelo, um deles mais ligado a um universo cultural, das ideias, e outro mais ligado à crise dos partidos, das organizações de esquerda frente aos ataques que estamos sofrendo, pelo menos, desde a crise 2008, mas poderia até expandir isso e pensar num ciclo mais amplo, histórico, de recuo, ou defensiva dos movimentos sociais no Brasil e no mundo. No caso brasileiro, tem uma nuance, que é o fato de o Partido dos Trabalhadores (PT) ter sido eleito governo. Em tese, isso significa uma vitória, um processo de acúmulo muito grande de expectativas num governo dos trabalhadores, mas, mesmo nesse caso, considerando o ciclo mais geral neoliberal, podemos inserir como um processo muito trágico, de muitas derrotas, mesmo no caso brasileiro. Então, há um processo de fragmentação muito grande das esquerdas e das ideologias, das bandeiras radicais, elas se perderam, elas flutuaram ao longo das últimas décadas, sem encontrar capacidade de capilarização massiva. Os protestos foram se tornando cada vez mais locais, fragmentados, ainda que você tenha ciclos de luta importantes, elas não conseguiram alcançar vitórias permanentes, profundas, no sentido da conquista de direitos e ampliação desses direitos sociais, tanto no Brasil como no resto do mundo. E, ao mesmo tempo, nas esquerdas, você tem uma crise de identidade muito grande, a crise dos velhos partidos, das grandes narrativas que esses partidos de esquerda do século 20 estruturavam. Essas narrativas não foram capazes de apresentar uma resposta contundente. Só que nós fomos surpreendidos, porque isso também não é uma coisa que se controla, nós fomos surpreendidos no último ciclo, no último ano, por um processo mais ou menos sincrônico de lutas massivas de mulheres no mundo. É uma coisa bastante surpreendente, porque as próprias organizações de esquerda, os movimentos sociais, nunca deram ao feminismo um protagonismo, nunca acreditaram que o feminismo pudesse protagonizar estes ciclos de lutas. Então, quando as mulheres polonesas foram às ruas no ano passado, dezenas de milhares de mulheres contra a perda do direito reprodutivo, contra a criminalização do aborto, ninguém entendeu muito bem, até de certa forma passou meio despercebido isso por aqui. Mas foi um fenômeno realmente impressionante. E em seguida você teve um assassinato de uma jovem mulher na Argentina, que fez o país explodir em protestos. E isso , em seguida, se vinculou à reação das mulheres à eleição do Trump, agora, nos Estados Unidos, que se calcula ter sido um dos maiores protesto da história dos Estados Unidos em termos quantitativos. Então, é um processo muito especial. Há muita expectativa sobre o que vai ser este oito de março. Justamente porque é uma coisa meio incrível que as mulheres possam protagonizar, a partir das bandeiras feministas, um processo tão agudo de lutas, tão profundo. As próprias feministas estão receosas, há uma certa ansiedade, porque é um processo meio inacreditável inclusive para as mulheres. Eu acredito que justamente por isso, ele vai ser um divisor de águas, vai cumprir esse papel de repensar a luta das mulheres no conjunto das lutas sociais. Aquilo que era uma promessa, uma utopia do movimento feminista, que é poder projetar as mulheres como protagonistas das lutas sociais, finalmente ganhou uma oportunidade.
Você falou sobre essa tentativa de unificação das lutas protagonizada pelas intelectuais estadunidenses. O chamado que elas fazem é de um feminismo dos 99%. Isso significa na prática um corte classista maior do feminismo?
Sim, é exatamente isso. Na verdade, o 99% é o slogan do Occupy, quando eclodiram os protestos em 2010 e 2011, muito em virtude da crise. Foi o primeiro ciclo de lutas de maior impacto no país, e se tinha esse slogan: ‘nós somos os 99%’. E esse novo feminismo, digamos assim, que se tenta forjar a partir desse ciclo mais recente de lutas contra Trump e no próprio 8 de março, é um feminismo que tenta se vincular a essa ideia, a uma construção voltada contra o neoliberalismo. É uma construção não só pelo direito das mulheres, ao contrário, ela entende a luta dos direitos das mulheres como uma luta contra um sistema econômico, contra o modelo neoliberal, contra o impacto deste modelo, não só nos empregos e nos salários, mas também nos direitos mais amplos das mulheres, como o direito reprodutivo e o direito de organização. Há um debate que as mulheres estão colocando que é justamente essa questão da greve, falar de uma greve de mulheres é lutar pelo próprio direito de greve, que nos Estados Unidos é mais restrito até do que no Brasil. Nos Estados Unidos, a repressão, a criminalização da greve é altíssima. Isso é uma coisa interessante, se você lê a plataforma, tanto a internacional, como a plataforma dos Estados Unidos para a greve internacional de mulheres, você percebe que são documentos que tentam cristalizar dentro deles lutas que são mais amplas, que as mulheres protagonizam, mas que não são só lutas de mulheres. Isso é muito legal porque evita qualquer tipo de formalismo pra tratar o 8 de março, porque não se trata de lutar só por mulheres e não se trata de lutar em abstrato por uma sociedade que ninguém sabe qual será; trata-se de sujeitos específicos, mulheres, lutando por uma sociedade concreta para todos. Eu acho que isso é uma novidade nas esquerdas, essa capacidade de fundir o particular, o mais concreto, dar nome a quem luta, e, ao mesmo tempo, essa luta ser a luta para todos, para os 99%, para uma sociedade sem desigualdade, por direitos, por liberdade, isso é novo, e isso é muito bom.
Você citou dois eventos como parte do caldo dessa mobilização – as manifestações na Polônia e na Argentina. Essa reinterpretação do feminismo, com um forte repúdio ao neoliberalismo, também estava presente nesses países e em outros movimentos que ajudaram a confluir neste 8 de Março?
Sim. Na verdade é importante tocar nesse ponto. Eu estou falando bastante dos Estados Unidos porque é um país importante, economicamente central, que está passando por muitas transformações, não só econômicas, mas políticas. É um país que está numa crise que se acelera muito, mas é muito importante lembrar que esse processo de luta de mulheres começou no que os cientistas sociais chamam de sul global, ele não começa no centro, ele ataca o centro, ele chega ao centro, mas você tem que localizar o sul. Tanto a Polônia, que é o sul da Europa, digamos assim, porque é um país periférico na Europa, como a Argentina, que é um país latino americano, mas podemos citar também, se quisermos recuar um pouco mais, a luta das mulheres indianas contra o estupro. Há uns três anos atrás houve um ciclo de protestos muito radicalizado na Índia contra o estupro de mulheres. As indianas, inclusive, construíram milícias para a defesa das mulheres, porque havia um problema muito sério de naturalização dos estupros na Índia. Então, se considerarmos esse ciclo do ponto de vista mais longo do que este ano, percebemos que ele começa, na verdade, na periferia do capitalismo. E de forma talvez não tão elaborada, tão óbvia, é anticapitalista e antineoliberal, porque põe o direito das mulheres, e ao colocar o direito das mulheres, a demanda por segurança, por direitos reprodutivos, contra a violência, ele interpela uma noção de Estado, interpela uma noção da função de poder público, que no neoliberalismo é completamente desconsiderada. Além da questão moral, da ideologia patriarcal que atua nas instituições contra as mulheres, há uma função econômica de não oferecer esses direitos, porque você enxuga a máquina, privatiza as funções de segurança, saúde, educação, uma série de funções públicas que cumprem um papel direto de assegurar a vida das mulheres. Então, são as duas coisas que caminham juntas, uma ideologia conservadora antifeminina, opressora, que trabalha em conjunto a um sistema econômico de espoliação dos direitos, e que ataca as mulheres de forma muito particular. Então, com certeza, esses movimentos, ainda que não tenham um documento antineoliberal e lutassem muito imediatamente por demandas de direitos, certamente compuseram a base para essa agenda antineoliberal que o 8 de Março conquistou este ano.
Esse protagonismo dos Estados Unidos, que as vezes é até motivo de desconfiança na periferia, tem a ver com essa renovação intelectual que você vinha descrevendo lá atrás, além das mobilizações massivas do início deste ano?
Isso é uma coisa difícil de interpretar. Eu ainda não sei, eu acho que tem que passar um tempo para avaliarmos quais são os elementos que compuseram esse processo nos Estados Unidos. Lógico, um deles é a eleição de Trump e a crise que se instaurou imediatamente nos movimentos sociais, inclusive aqueles que são controlados pela máquina do partido Democrata. Porque o Partido Democrata nos Estados Unidos tem capilaridade, tem capacidade de alcance em uma série de setores dos movimentos sociais e sindicatos, e a derrota da Hillary Clinton e o ascenso do Trump e tudo que ele representa criou uma crise e agitou muito essa rede de movimentos sociais, os mais radicais, mas também os menos radicais, mas, ainda assim, com um perfil mais liberal, democrático, mais progressista, digamos assim. Então isso é uma coisa. Outra coisa é que há uma renovação intelectual, e o que é interessante, bastante simbólico, é que ela não é norte americana puro sangue, digamos assim, ela é composta de imigrantes também, há muitas mulheres de famílias estrangeiras ou que se mudam para os Estados Unidos para trabalharem nas universidades americanas, e que estão envolvidas nesse processo. E também há o fato de que há uma luta que ganha um caráter internacionalista forte, que é da defesa dos direitos dos documentados e não documentados, dos imigrantes nos Estados Unidos. Então, essa ativação internacionalista é muito particular e especial, eu acho que dá um certo tom, um certo tempero para o que está acontecendo lá. E é interessante porque eu morei nos Estados Unidos há uns anos atrás, e na época que eu estava lá, se discutia muito a guerra na Síria, havia várias reuniões do que eles chamam de coalitions, que são frentes de lutas com o objetivo de apoio a processos internacionais, apoio contra a guerra na Síria, contra a ditadura do Assad, mas também contra a invasão dos Estados Unidos, em defesa da Palestina, havia muitas lutas de caráter internacional. Em Nova Iorque, por exemplo, havia também um coletivo de solidariedade com o Haiti, havia muitos imigrantes haitianos em Nova Iorque e eles faziam reuniões quase que semanais para discutir a situação do Haiti. Então, é uma coisa que eu me surpreendi na época, até fiquei pensando que era uma coisa exótica, porque não vi muita discussão dos trabalhadores americanos, da situação da classe trabalhadora nos Estados Unidos, mas muita discussão do que se passa fora do país. Então, acho que, de certa forma, isso era uma maneira de os movimentos sociais reagirem à repressão forte e também à crise que os sindicatos viviam e vivem ainda, nos Estados Unidos. Ao marasmo que esses sindicatos foram ficando porque são muito controlados, muito influenciados pelo neoliberalismo, pouco combativos. Então é muito interessante, quando veio uma reação por baixo nessa crise, ela adquiriu contornos internacionalistas, de todos os temas que você possa imaginar havia alguma frente de luta em algum lugar discutindo problemas políticos em outros países. Aqui no Brasil houve os protestos de junho e eles queriam saber o que era, e iam para praça e participavam dos protestos junto com os brasileiros, defendendo a democracia no Brasil. Era uma coisa bem interessante mesmo, um caldo cultural. Lógico, isso nos grandes centros. E acho que isso ajudou a essa projeção da greve. E aqui no Brasil, acho interessante que neste 8 de março tem uma coisa parecida com isso, que é essa quantidade enorme de blogs, páginas, coletivos que se articulam para organizar alguma coisa para o oito de março. Todos os estados, as cidades têm coletivos de mulheres. Eu descobri uma página na internet chamada Mamu, que é Mapa de mulheres, que relaciona quase todos os coletivos de mulheres do Brasil. E você vê como é rica a rede feminista aqui, não se resume aos partidos e sindicatos.
A convocação para a greve das mulheres aqui no Brasil tem como tema central a resistência às reforma da Previdência e trabalhista. A plataforma internacional da greve tem seis pontos: o fim da violência de gênero, justiça reprodutiva, direitos trabalhistas, assistência social completa, um feminismo antirracista e anti-imperialista e justiça ambiental. De que forma se deu essa tradução da plataforma internacional aqui no Brasil de maneira a enfatizar as medidas regressivas colocadas pelo governo Temer?
No Brasil o processo é um pouco diferente porque o 8 de Março não vem de um ascenso, como nos Estados Unidos. O Brasil se colou nesse chamado internacional. Pode ser que os atos sejam maiores que os dos anos anteriores, pode ser que sejam menores e se restrinjam aos movimentos feministas da esquerda. Olhando só para as redes sociais, parece que vai ser grande, mas isso é uma miragem. Eu acho que os grandes sindicatos, as grandes centrais sindicais perderam a oportunidade de usar essa data como ela merecia. Tanto que a CUT chamou um ato para o dia 15, a uma semana de distância. Na prática, isso desarticula, o 8 de março volta a ser aquele ato meio isolado e o peso das manifestações contra a reforma foram jogados para o dia 15. Isso foi em parte revertido, porque as plataformas do 8 de Março assumiram a reforma da Previdência como uma bandeira, e aí a própria CUT e as outras centrais tiveram que recuar e há dois dias saiu uma nota da CUT apoiando esse 8 de Março internacionalista, mas a dois, três dias do ato não há tempo hábil para que isso se mobilize, para que se coloque peso. O MST soltou uma nota dizendo que vai paralisar 30 mil mulheres, a Marcha Mundial de Mulheres aderiu. O 8 de março foi se tornando um dia de luta mais amplo do que normalmente ele é concebido. E assumiu a questão da reforma da Previdência como uma pauta porque é não só uma bandeira, um ataque de toda a classe trabalhadora, mas atinge especialmente as mulheres. Justamente porque essa reforma não reconhece o trabalho chamado reprodutivo, que é todo o trabalho doméstico, tudo aquilo que é realizado fora do local de trabalho, mas que é trabalho e que está monopolizado pelas mulheres na sociedade. E sugere uma coisa que vinha da pauta internacional. Foi muito tardia essa tradução da pauta internacional para o contexto brasileiro, ela ocorreu, mas não sei se a tempo hábil. Em parte porque as grandes centrais concebem um feminismo muito separado das lutas econômicas. E isso é uma coisa que se não vai ser resolvida nesse 8 de março, acho que não vai mesmo, não tem tempo, certamente virou um problema, o problema está colocado e as organizações sindicais, os partidos de esquerda não vão poder fugir deste problema, desta agenda.
Se no Brasil não há agora um acúmulo tão forte como nos Estados Unidos, nós temos visto também aqui uma ascensão do debate de gênero, muito marcada também em reação a episódios lamentáveis de violência, como o caso do estupro coletivo aqui no Rio de Janeiro no ano passado. Isso também não é um caldo que deságua agora?
Na verdade, há acúmulo, a questão não é a falta de acúmulo, há muito acúmulo, inclusive, um acúmulo de tragédias. A questão é como isso se converte em organização consciente. E eu acho que as feministas vão fazer muita coisa nesse sentido, mas elas não podem caminhar sozinhas. Essa é a questão. As feministas dos coletivos organizados são motores disso, você pode citar, por exemplo, um pouquinho mais atrás, a Marcha das Vadias, que começou a colocar a questão do corpo. As lutas contra o Eduardo Cunha [então presidente da Câmara dos Deputados] na época do PL [5069/2013], que piorava a criminalização do aborto na Câmara. Então há muitas lutas feministas que foram se acumulando no Brasil, elas são importantes. A questão é que elas sozinhas não são suficientes pra derrotar o neoliberalismo, esse governo e os ataques aos direitos femininos. Isso é uma dimensão. E há outra dimensão problemática, que é como alcançar as mulheres brasileiras que não têm contato com o feminismo, e nem com a esquerda. As donas de casa, as trabalhadoras informais, que não têm sindicato. Há outras ainda que poderia mencionar, a questão das mulheres trans, que até há bem pouco tempo atrás havia uma polêmica no próprio movimento feminista se essas mulheres deveriam ser consideradas mulheres e comporem o movimento feminista ou se deveriam fazer um movimento próprio. Eu acho que esse 8 de Março, essa tensão pela construção de um campo comum de lutas, faz a gente avançar, mas é um processo contraditório.
Que outros desafios o feminismo tem hoje no Brasil? O que o movimento ainda não alcança?
Os dois exemplos mais gritantes que eu sempre penso são as mulheres trans e as prostitutas, as trabalhadoras do sexo. Nós publicamos no blog Junho uma entrevista com uma trabalhadora do sexo francesa, falando do caso francês. E ela fala justamente isso, que a esquerda tem uma dificuldade de enxergar as prostitutas como trabalhadoras, e ao não fazer isso, ao não ver a prostituição como um trabalho sexual, nega a essas mulheres um lugar dentro do movimento. Por exemplo, quando começou o chamado à greve internacional, eu tenho contato com algumas mulheres que militam no movimento das prostitutas, elas ficaram muito desconfiadas, imediatamente elas começaram a dizer: “isso aí é pra nós? Nós estamos incluídas?” E na primeira chamada, aquela que a Ângela Davis assina, elas falam também do trabalho sexual. Esse primeiro chamado é um documento político de primeira, é realmente preocupado em ser de fato um movimento dos 99%, não só no sentido de quantidade, mas de qualidade mesmo, de inclusão das diferenças. E eu acho que são questões extremamente contraditórias e difíceis da gente avançar. Eu incluiria também as mulheres indígenas, as mulheres religiosas, as mulheres periféricas, você tem realidades que vão compondo um mosaico de feminismos possíveis. A questão não é construir um programa geral, homogêneo, isso não vai ser possível, mas a questão é como se estabelece um campo onde essas mulheres possam dialogar e avançar num objetivo comum, que é o enfrentamento com a sociedade capitalista que a gente vive.
Esse diálogo, por exemplo, com a questão racial, já está um pouco mais efetivo aqui no Brasil?
Eu acho que ele é maior porque as mulheres negras estão se impondo mais, e elas se impõem muito, inclusive, se impõem no sentido mais forte da palavra, estão fazendo a crítica do feminismo o tempo todo, e elas estão corretas em fazer isso. E ao fazer isso, elas vão corrigindo o feminismo, vão impondo ao conjunto dos movimentos feministas olhares mais amplos, mais bem informados, mais bem localizados, a palavra é: as mulheres negras forçam as mulheres brancas a olharem para os privilégios que as dividem. E isso só é possível não porque as mulheres brancas avançaram, mas porque as mulheres negras avançaram, elas se organizaram mais no último período, se empoderaram, têm os seus próprios veículos de divulgação, de informação, têm as suas intelectuais. Inclusive, isso pode gerar muitas vezes processos de polêmicas que são mais estéreis, que às vezes dividem, isso até pode acontecer, mas, no geral, esse é um processo muito positivo porque ele foi qualificando o feminismo. Por isso que a Angela Davis voltou a ser tão fortemente recuperada nos últimos anos, porque o trabalho dela sobre mulheres, raça e classe, é um trabalho que explora essas contradições entre as mulheres, as contradições que permeiam relações raciais e relações de gênero combinadas com problema de classe. Quando você lê o livro dela, você percebe como ela estava preocupada com o problema lá nos anos 70, que é um problema extremamente atual, a questão racial e de gênero não podem se combinar de maneira formal, tem que ser de maneira real, portanto, tem que ser conflito. Eu acho que no conflito gerado pela maior mobilização e auto-organização das mulheres negras, o feminismo avançou.
Se há um debate maior e uma adesão maior ao feminismo hoje, ao discurso da igualdade de gênero, é perceptível também uma visibilidade maior de um discurso conservador em reação a isso, a ponto inclusive de se discutir se as escolas podem ou não debater igualdade de gênero. Como analisar essa correlação de forças?
Quanto mais as mulheres se organizarem e avançarem, mais fortes vão ser as reações, não há como, elas não vão diminuir, as reações vão aumentar. Porque o campo no qual as mulheres lutam é um campo de disputa não só econômica, legislativa, mas é um campo de disputa cultural, de disputa moral, de visão de mundo. Nesse âmbito, as reações vão vir e elas vão se tornar mais fortes à medida que as mulheres avançarem. É por isso que as mulheres precisam tanto da solidariedade de classe e de uma solidariedade que se implante num projeto social alternativo, porque elas sozinhas só vão encontrar resistências, cada passo que elas derem adiante é um passo que a reação vai tentar dar adiante. Esse é um cabo de força infinito. Por isso que a única maneira de você ter um avanço substantivo e permanente das mulheres, é se a luta delas estiver inserida numa luta por um projeto alternativo de sociedade, não há como se diferente disso, essa é a tragédia. Se fosse suficiente para você lcançar conquistas feministas, organizar as mulheres, não era preciso que elas se aliassem à classe trabalhadora, aliás, como alguns feminismos afirmam, se a mulher sozinha lutar para conquistar uma ascensão social, um lugar na empresa, se ela for lá e lutar bastante, batalhar bastante, se dedicar com afinco, ela consegue. Só que isso é uma falsa realidade, pode funcionar para uma mulher ou outra, mas, no geral, isso é só exceção que confirma a regra. Porque no geral as mulheres não conseguem, e não vão conseguir. E também na sua luta não vão conseguir se elas não encontrarem aliados fortes, aliados que realmente acreditam no feminismo e se comprometam com a construção de uma sociedade na qual o feminismo possa ser uma realidade, na qual os direitos das mulheres possam se tornar uma realidade. Eu vejo o Bolsonaro, Kim Kataguiri, que é um misógino terrível, e outros representantes que o golpe parlamentar de 2016 forjou – desde junho de 2014, na verdade, essas cobras vieram se criando, mas elas se tornaram representantes político-partidários, o golpe projetou essas figuras lastimáveis – e essas figuras não vão embora enquanto as mulheres lutarem, ou porque as mulheres estão lutando, é exatamente o contrário, eles vão fazer a contra luta e isso vai ser um problema permanente para o feminismo e para os movimentos sociais daqui pra frente. Nós temos antagonistas políticos, se passou muito tempo achando que era suficiente só avançar em relação ao que já existia, um governo do PT eleito, etc., isso é uma ilusão. Nós temos antagonistas e nossos antagonistas têm representantes, são horríveis, são de péssimo nível, mas eles existem. Por isso que a gente precisa avançar na mobilização, na organização das lutas no cotidiano, mas também na elaboração teórica e intelectual sobre essas lutas. Porque há um campo cultural que não vencemos ainda, e talvez demore. A gente não venceu a construção de uma hegemonia feminista, digamos assim, dos direitos das mulheres, ela ainda está por se feita e precisamos avançar.
Trata-se de um antagonismo não apenas simbólico, no campo do discurso, mas também com consequências práticas?
Sim. Aqui em Campinas, aliás, uma das pautas fortes do nosso 8 de Março vai ser o feminicídio, porque no começo desse ano aconteceu aqui o assassinato de uma mulher, do filho e da família toda, e o assassino dela, que se matou depois, deixou uma carta falando que ela iria morrer porque ela era uma vadia, e assim como ela, todas as outras vadias merecem morrer para que os homens possam ter seu direito assegurado como pai. Esse é um documento político, é uma reação evidente às discussões que as mulheres vieram colocando nos últimos anos sobre os seus direitos; e em particular, uma reação contra a Lei Maria da Penha, que era a lei a qual essa mulher estava recorrendo, tinha ido à Delegacia da Mulher e conseguido um mandato de restrição, de distância contra o cara e ele fala na carta: “a lei vadia da penha”. Portanto, não é um antagonismo simbólico apenas, ele é real, só que tem níveis, não se chegou a um nível no qual tem machistas organizados espancando mulheres por sentido político, mas você tem um machismo que permeia a cidade toda e se expressa na violência. Em alguns casos, politizada, como é o caso desse cara. E é um antagonismo que vamos ter que enfrentar, não dá para achar que o 8 de Março conclui alguma coisa, ao contrário, ele é só mais um momento de uma luta que vai ficar mais aguda.
Esse oito de março revela um protagonismo das mulheres na luta política, entretanto, como você disse, as centrais se comprometeram tardiamente, e movimentos tão importantes como o da Polônia tiveram pouca visibilidade no Brasil. Diante desse quadro, quais são os principais desafios para que esse protagonismo se acentue para além dessa data?
Essa é uma luta que há alguns anos atrás, eu me lembro de quando estávamos no movimento estudantil, ninguém queria muito discutir isso, quando alguém ia para a secretaria de mulheres sentíamos que estava meio indo para a margem. E eu fico feliz porque eu acho que isso está mudando, muito pela pressão que as mulheres vieram fazendo nos partidos, nos sindicatos, nas organizações em geral. Tanto no Brasil como em outros países há uma abertura maior para discutir o protagonismo das mulheres, a igualdade de direitos, e certamente isso não surgiu do nada, isso surgiu com muita luta no subsolo dos movimentos sociais e da sociedade civil em geral, num processo, inclusive, de sofrer a opressão e começar a reagir a ela, não só a opressão simbólica e a violência física, mas a opressão do trabalho, as diferenças, as desigualdades que se expressam nos salários, que se expressam nas posições, que se expressam no status, enfim, uma série de questões que envolvem a construção de uma subjetividade feminina e a percepção de como essa subjetividade é subalternizada. Eu fico muito feliz que esse lugar do feminismo esteja finalmente sendo deslocado para o centro das preocupações políticas. Pode ser que daqui a um mês a gente volte a enfrentar os mesmos problemas de sempre, mas é um sinal de que a possibilidade e o fato de que existem as possibilidades já nos colocam muita esperança. E eu acredito que, para adiante, vai passar esse 8 de março e os desafios vão permanecer, tanto as mulheres organizadas, que estão se mobilizando para ir para a rua e para parar o seu local de trabalho, como para as esquerdas, em especial, e os movimentos sociais em geral. Acredito que o movimento social, o partido político, a organização que pretende dar respostas aos desafios que esta crise no Brasil e no mundo vem colocando, precisam olhar para o feminismo, aprender com o feminismo, com as lutas, com a persistência com que essas mulheres vieram colocando o problema dos seus direitos e agora conseguindo, inclusive, convencer uma parte da sociedade de que a luta pelos seus direitos é parte da luta por outra sociedade.