Covardemente apeados do governo, demonizados e perseguidos pela estrutura de poder no Brasil, esses setores estão revelando acentuada e curiosa compaixão com os seus ex-aliados e hoje algozes, quais sejam, os segmentos da grande burguesia doméstica, sócia menor e subalterna ao capital estrangeiro. Particularmente, com as empreiteiras e o agronegócio.
Atentos às ações do Judiciário brasileiro – um dos núcleos da dominação oligárquico-burguesa multinacional no país, núcleo que sistematicamente têm contribuído para retirar credibilidade e reduzir os negócios das mencionadas frações da burguesia interna –, não são poucos os agentes políticos e jornalísticos que frisam os riscos envolvidos em tais ações.
Fundamentalmente, tem sido chamada a atenção para a potencial destruição da construção civil e da pecuária de corte, dois relevantes setores capitalistas sob controle da burguesia doméstica. Com efeito, para a possível internacionalização desses setores e a intervenção subterrânea do imperialismo, especialmente estadunidense.
Essa preocupação, em parte, é compartilhada pelo autor dessas linhas. De fato, seguindo o curso das ações judiciais e as implicações econômicas e políticas daí decorrentes, é bastante plausível que se tratem de tensões e ataques internos no seio do conglomerado burguês que domina a Nação, em favor das multinacionais.
Como já debatido em outra oportunidade, o incremento da internacionalização do parque produtivo no país traz como um dos problemas maiores a questão do controle e do uso dos excedentes. A descapitalização e o empobrecimento nacional.
A desnacionalização dos setores produtivos e financeiros sempre incorre, notadamente em um país periférico como o Brasil, na transferência de riquezas para o exterior, reduzindo a capacidade nacional de tomada de decisão sobre seus recursos e investimentos.
Mas, cumpre registrar que a burguesia doméstica é acumpliciada com o capital estrangeiro. Egoísta, autocrática, entreguista, que demonstra o mais absoluto desprezo pelo Povo brasileiro e pelos destinos do País. Ela não merece qualquer compaixão.
A perspectiva que defendo não é motivada por um sentimento irracional de “vingança”, em função da aberta participação da burguesia local na violação da Constituição, da soberania popular do voto e no integral desmonte em curso dos direitos sociais e dos instrumentos de soberania nacional.
Deve-se, isso sim, a uma reflexão sobre a natureza dessa burguesia doméstica e às limitações do capitalismo periférico e dependente do Brasil. Sem dó, nem compaixão, a burguesia brasileira não merece qualquer solidariedade. Nenhuma aposta política positiva.
Em vez de defender uma burguesia vende pátria como a brasileira, vale apontar opções radicalmente distintas, de natureza nacional-popular e socialista. Senão, vejamos.
A inexistência de uma burguesia nacional e a contribuição teórica de Vânia Bambirra
Os termos do debate levado a cabo, hoje, por setores políticos e jornalísticos progressistas, em boa medida sintonizados com o petismo, dão a entender que existe no Brasil algo que se possa chamar de burguesia nacional.
Isto é, uma fração burguesa caracterizada não apenas por ter o capital sediado no País, como pretensamente detentora de um laivo de interesse nacional. Ora, o golpe civil-militar de 1964 já resolveu esse enigma. A burguesia doméstica (longe de ser “nacional”) escolheu tomar o Povo como inimigo, superespoliá-lo e se submeter aos desígnios do capital multinacional.
Uma sócia menor e subordinada, testa de ferro dos gringos. No início dos anos 1960, intelectuais e demais atores sociais e políticos percebiam, intuitivamente, em meio ao turbilhão das lutas de classes, essa natureza dócil da burguesia interna ao capital estrangeiro. A sua falta de compromisso com a construção nacional.
Após o golpe de 1964, não faltaram análises sociológicas, políticas, históricas e econômicas que abordassem, com propriedade, a essa questão. Falar em burguesia nacional, em nossos dias, ultrapassa os limites de qualquer observação atenta ao perfil do capitalismo brasileiro e aos comportamentos daquelas elites tupiniquins. É mera crença cômoda.
A eventual transferência de ativos e patrimônio produtivo da burguesia interna, no atual cenário, como já aludido, afetará negativamente os excedentes brasileiros.
Porém, em relação aos burgueses caseiros, esses agirão como os industriais já fizeram a partir dos anos 1990: vão alienar os seus negócios e viver de especulação financeira e imobiliária. O parasitismo puro e cristalino. Nenhum embate com o imperialismo. O Brasil que se dane.
Desse modo, vale sublinhar aspectos da instigante análise desenvolvida pela economista Vânia Bambirra, no início dos anos 1970 (no livro “O capitalismo dependente latino-americano”). Nos quadros do empreendimento intelectual da Teoria Marxista da Dependência, Bambirra identificou dois tipos singulares de agrupamentos de países dependentes na América Latina.
Os de “tipo A”, integrado por sociedades que desenvolveram controles semiautônomos sobre o parque produtivo – produção primária e industrial –, até a metade do século XX, e os de “tipo B”, flagrantemente neocolonizados, Repúblicas das bananas. Nestas, boa parte dos meios de produção, agrários e industriais (quando indústria havia), estariam sob o domínio de companhias estrangeiras.
Países como o Brasil, a Argentina e o México seriam exemplares do “tipo A”. A concorrência desigual e a oligopolização das empresas multinacionais, após a 2ª grande guerra, tenderiam a desnacionalizar as indústrias locais. Mas, ainda assim, o complexo burguês de dominação seria mais diversificado e complexo.
Na conjuntura atual, o que está se processando no Brasil, para adotar os parâmetros da interpretação de Bambirra, é uma intensa conversão do sistema produtivo para perfis similares ao “tipo B” de dependência e subalternidade ao centro do capitalismo. Um neocolonialismo turbinado e aberto, sem maiores mediações de burguesia doméstica.
Mudar os esquemas de percepção e as saídas nacional-popular e socialista
Em relação aos interesses e aos comportamentos políticos e econômicos dos agentes do grande capital – doméstico e multinacional –, só há uma solução, sem tergiversação: o controle público dos meios de produção, pelas vias da estatização e do regime cooperativo de organização dos trabalhadores.
A socialização dos principais meios de produção nos serviços e na indústria, assim como a adoção da reforma agrária, são medidas imprescindíveis para o desenvolvimento social e econômico e à busca pela ruptura da dependência externa.
Socializar para transferir a capacidade de tomada de decisões estratégicas e o controle sobre os excedentes nacionais ao Poder Público e ao Povo brasileiro. Evidentemente, me refiro ao grande capital, não a padarias, biroscas, pequeno e médio comércio.
É sempre decisivo lembrar o seguinte: o grande capital, caseiro e multinacional, em diferentes ramos do setor produtivo e financeiro, é quase que totalmente financiado pelo Povo brasileiro, sob uma tripla condição:
a) Como consumidor, de preços majorados e manipulados por monopólios e oligopólios.
b) Como cidadão, que financia os investimentos e os lucros das grandes corporações, que não pagam impostos e obtém empréstimos bancários, privados e públicos, altamente subsidiados com o sacrifício dos trabalhadores.
c) Como trabalhadores, mal remunerados e, em grande medida, subempregados, abandonados à própria sorte, por grandes empresas nacionais e estrangeiras que importam tecnologias alheias às necessidades de absorção da força de trabalho.
Para ficar somente com o caso das empreiteiras, por óbvio, elas são sustentadas com grandes obras públicas, com o dinheiro da população. Obras que não possuem capacidade autônoma de reprodução dos investimentos e permanência da oferta de empregos.
O grande Celso Furtado, em copiosos trabalhos de assessoria técnica para a Cepal e diferentes governos da Venezuela (ver a obra “Ensaios Sobre a Venezuela”), entre as décadas de 1950 e 1970, indicava os problemas envolvidos com a prioridade concedida às grandes obras públicas.
Financiavam-se os lucros de uma ínfima minoria, as construtoras e empreiteiras, gastavam-se vultosos recursos com obras perdulárias e suntuosas, sem capacidade de autossustentação econômica, oferecendo empregos na construção civil por escasso intervalo de tempo. Um triste fenômeno muito conhecido no Brasil contemporâneo.
Na ótica do economista brasileiro, seria muito mais oportuno usar os mesmos recursos públicos em investimentos industriais, na criação de empresas estatais produtivas, com capacidade de reprodução econômica e manutenção e criação de empregos sólidos. Além de incentivar a educação e o engenho criativo nacional, por meio da ciência e tecnologia.
Esse é apenas um pequeno exemplo de possível alternativa disponível ao desmonte e à desnacionalização do parque produtivo brasileiro. Não existe qualquer barreira material a um tipo de iniciativa como essa. Apenas a mudança do software cognitivo.
Importa-nos exercitar o esforço de escapar da cômoda, dócil e colonizada aceitação de postulados semirreligiosos liberais, cotidianamente defendidos pela estrutura de poder no Brasil, via conglomerados de mídia e sistema político. Postulados que inibem a reflexão, os esforços de projeção de destino do país, embotando necessárias ações patrióticas e criativas.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.