Todos querem solos saudáveis, mas poucos se preocupam com o que degrada o solo. A verdadeira causa da degradação é a forma como temos tratado o solo.Devemos entender que o solo tem de ser mantido vivo, para isto precisamos entender que a vida do solo precisa do mesmoque um ser humano: uma casa (uma boa estrutura do solo, para que os organismos possam viver lá), com uma boa cobertura (a cobertura do solo), um ambiente limpo (sem o uso de agrotóxicos), água (mas não muita), ar e alimentos. Os organismos, como nós, se alimentam de matéria orgânica. A matéria orgânica é também responsável pela cobertura do solo e em grande parte pela estrutura do solo. A estrutura, os torrões do solo, é responsável pela infiltração de água e aeração do solo.
O preparo excessivo do solo e o emprego de maquinário pesadodestroem a estrutura do solo, destroem a casa dos organismos do solo. Com boa qualidade do solo e matéria orgânica suficiente, você pode diminuir ou abolir o uso de fertilizantes químicos. E, mesmo se fertilizantes químicos são utilizados, mesmo assim a matéria orgânica é necessária para alimentar o solo. Fertilizantes químicos alimentam as plantas e não os solos. Se alimentarmos o solo, podemos alimentar o mundo.
Para garantir um solo saudável, os agricultores precisasm trabalhar com a biodiversidade, não há outro caminho. Em um solo saudável, com vida, os organismos exercem várias funções. Alguns deles fixam nitrogênio, outros decompõemos materiais orgânicos, alguns aeram o solo e assim por diante. Há um grupo de fungos do solo, denominado micorrizas. Este grupo de organismo é muito importante para a dinâmica do fósforo, um nutriente importante para as plantas, no solo. O fósforo é um elemento escasso na terra. Alguns autores apontam que em 30 anos poderemos ter escassez deste elemento para a fabricação de adubo. Eu chamo asmicorrizasde Facebook do solo. Elas detêm informações sobre o solo e estão constantemente envolvidas em trocas com as raízes das plantas e ajudam as plantas a utilizarem melhor o fósforo presente no solo. Precisamos cuidar dessas redes de organismos do solo, precisamos trata-los como parceiros de uma agricultura limpa, sem veneno, compouca ou nenhuma aração. Portanto, temos de cuidar não só de nossas redes acima do solo, mas das redes dosolo.
Solo com vida, com boa qualidade, dá autonomia aos agricultores, além de resiliência e produtividade no longo prazo. É por isso que o solo saudável é importante para os agricultores familiares. Mas as famílias agricultoras também são importantes para os solos, porque a formação e a manutenção de solos saudáveis exigemdedicação e trabalho – exatamente o que os agricultores familiares fazem.
Interessante observar que poucos agricultores utilizam a palavra solo, eles utilizam a palavraterra. Solo é um termo mais científico, enquanto terra implica em uma abordagem mais integradora, articulada a debates políticos e sociais em torno de questões como acesso, propriedade e controle. A luta por reforma agrária se dá em torno da questão da concentração da terra e não do solo! Muitos agricultores de todo o mundo dizema terra tem que funcionar; e eles sabem que têm de fazê-la funcionar. Para isto é preciso ter um solo vivo. Como eles trabalham com a natureza o tempo todo, eles sabem a diferença entre um solo vivo e um solo degradado. Eles percebem que uma planta que cresce em um solo saudável é mais saudável. Os agricultores familiares vivem da terra, mas também vivem na terra. Seus filhos herdarão o solo com a qualidade que elesdeixarem. O solo é quase parte da família. E você pode ouvir agricultores em todo o mundo dizendo que a terra é nossa mãe. Outroaspecto importante sobre a agricultura familiar é o papeldesempenhado pelas mulheres. As agricultoras familiares tendem a ter uma conexão mais forte com a terra, assim comosão mais conscientes sobre a importância da soberania e segurança alimentar do que os homens.
Um exemplo interessante de como melhorar a qualidade do solo pode ser dado. Em 1993, o Centro de Tecnologias Alternativas (CTA), uma ONG que atua na promoção da Agroecologia na Zona da Mata de Minas Gerais, em parceria com o sindicato da agricultura familiar de Araponga (MG) e com a alguns professores e estudantes da Universidade Federal de Viçosa (UFV) usaram métodos de diagnóstico rural participativo para identificar os principais problemas e necessidades relacionadas à agricultura do município. Os/as agricultores/as foram claros ao apontar que o maior problema estava ligado à perda de qualidade do solo, eles disseram que a terra estava enfraquecida. Para fortalecer a terra organizamos umacomissão chamadaTerra Forte, composta por técnicos e agricultores. Os agricultores apresentaram algumas soluções que incluiu o uso de adubação verde, a roçagem (e não capina) da vegetação espontânea (denominado por muitos de erva “daninhas”). A equipe técnica,por sua vez, propôsa implantação de sistemas agroflorestais (que consistem no consórcio de árvores com a cultura principal). E funcionou. Todas as técnicas utilizadas priorizaram o uso de recursos locais e a biodiversidade para recuperar a qualidade do solo.
Nos sistemas agroflorestais com café por exemplo, muitas espécies de árvores nativas foram utilizadas. As raízes das árvores exploram o solo em profundidades diferentes das raízes do café, promovendo a ciclagem de nutrientes, a partir das folhas que caem, estas também promovem a cobertura do solo. Muitas árvores são leguminosas e fixam nitrogênio, um nutriente importante para as plantas. As árvores também atraem inimigos naturais das potenciais pragas do café e polinizadores que contribuem para a produção do café. Ou seja, a biodiversidade presta inúmeros serviços (ou melhor dizendo bondades) à agricultura, entretanto, preferimos, inúmeras vezes, realizar parcerias com as empresas produtoras de insumos e não com a natureza. Daí, já sabemos, em um caso e outro, quem sai ganhando.
Contribuiu para o sucesso do CTA e parceiros o uso de métodos participativos. Estes permitiram a discussãodos problemas e o planejamento das ações em conjunto com as famílias agricultoras. O que também ajudou foi trabalhar com as ideias vindas das próprias famílias agricultoras. A única nova prática que propusemos foi a dos sistemasagroflorestais, o resto os agricultores já sabiam, ou pelo menos alguns deles se lembravamde como o trabalho era realizado no passado.Os serviços de extensão e universidades costumam dizer aos agricultores o que fazer e normalmente os recomendam a utilizar as denominadas técnicas“modernas”. A participação dos agricultores é importante. Eles compartilham seus conhecimentosvaliosos no manejo sustentável das terras. Estes conhecimentos foram construídos através de gerações e foram desprezados pela chamada “modernização” que priorizou o conhecimento dos técnicos.
O enfraquecimento das terras apontados pelos agricultores durante o diagnóstico foi consequência do usodurante anos de insumos químicos como fertilizantes e agrotóxicos, sem o cuidado com a vida do solo. O uso de insumos químicos faz parte dos pacotes tecnológicos da chamada “modernização da agricultura”, mais conhecido como “revolução verde”, mas que de verde não tem nada. Este pacote foi introduzidono Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1984. O governo militar apoiou a adoção dessas tecnologias com a criação de novas políticas, mudando currículos universitários, reorganizando os serviços de pesquisa e extensão. O pacote da Revolução Verdeincluiu o uso de agrotóxicos, de fertilizantes, a moto-mecanização, a irrigação e as sementes híbridas e, mais recentementeorganismos geneticamente modificados (OGMs). Tudo isso serviu de apoio à produção em monoculturas incentivadas pelos bancos que ofereceram aos agricultores crédito a juros baixos para investir nessas tecnologias.
Para incentivar a monocultura, muitos agrônomos argumentavam que se osagricultores trocassem a produção diversificada de culturas alimentares pela monocultura eles iriampotencializar o trabalho, ganhar mais dinheiro e com este dinheiro poderiam comprar a suacomida. Mas a produção de apenas uma cultura torna os agricultores totalmente dependentes do mercado. No caso do café, o preço oscila muito no mercado internacional de commodities. Com a queda do preço, os agricultores quase sempre optam por pagar suas dívidas e não por comprar alimentos. Além disto, o alimento adquirido no mercado é de qualidade muitas vezes duvidosa. Isto, dentre outros aspectos faz com que o uso de monocultura sejacontrárioà segurança e soberania alimentar das famílias agricultoras.
Alguns agricultores, no entanto, resistiramao pacote da revolução verde e continuaram,pelo menos em parte de suas terras,a cultivar à sua maneira. Isso se tornou uma forma de resistência cultural, porque envolvia o modo de vida das pessoas e expressava o respeito pelos esforços e investimentos de seus pais e avós. Esses agricultores mantiveram vivo o conhecimento tradicional sobre a saúde do solo, e isso depois alimentou uma nova forma de pensar. Com a redemocratização do Brasil, buscamos as melhores práticas e nos voltamos a esses agricultores, junto com os sindicatos da agricultura familiar, as comunidades eclesiais de bases (organizações ligadas as igrejas progressistas) e outros grupos, e vimos o início do movimento de Agroecologia no Brasil, no início denominado agricultura alternativa.
A agroecologia é entendida por nós enquanto ciências, movimento e prática. Enquanto ciências, a agroecologia estuda os sistemas agroalimentares, objetivando em especial a produção de alimentos saudáveis. A agroecologia envolve da produção de alimentos à mesa, por isto a agroecologia interessa a toda a sociedade. Para a produção de alimentos de qualidade é preciso ter solos de qualidade e este depende da biodiversidade. A biodiversidade por sua vez depende de solos de qualidade. O solo faz parte também do ciclo hidrológico. O solo é a caixa de água, não adianta cuidar das nascentes (funcionam como torneiras) e córregos e rios se não cuidamos do solo, onde a água infiltra e abastece os lençóis freáticos e as nascentes. Os usos e manejos do solo, da água e da biodiversidade dependem do conhecimento, das crenças e valores das famílias agricultoras e da sociedade como um todo, por isto dizemos que a agroecologia preza pela nossa relação com a natureza mediada pela nossa cultura.
O movimento da agroecologia cresceu e em 2012 a partir de uma reivindicação da Marcha das Margaridas, movimento das mulheres agricultoras, a nossa Presidenta Dilma lançou a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. A partir do lançamento a sociedade civil em parceria com o governo federal formulou o I e o II Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Esta foi uma iniciativa inovadora e que serviu de exemplo para o mundo e com a Política e os Planos estávamos avançando na construção da agroecologia. Por isto, dentre outras coisas, estamos ansiosos e trabalhando pela volta de nossa Presidenta, pois em ela nossos frutos não vingarão!
*Irene Cardoso é presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e professora de solos na Universidade Federal de Viçosa (UFV).