*Graduados em Relações Internacionais pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
Os primeiros movimentos maciços de ocupação de espaços públicos no Brasil podem ser vistos no período pós primeira guerra mundial. Visto a gama de trabalhadores vindos da Europa (Italianos principalmente), São Paulo viveu a partir da década de 1920 uma convulsão social de massa que buscava melhores condições de trabalho na indústria paulista. Após essa primeira experiência, torna-se representativo o uso das ruas na revolução de 30, nos anos predecessores e durante a ditadura militar, desembocando no final da década de 80 com o movimento de “Diretas Já”. Como se não bastasse, poucos anos depois, a deposição de Fernando Collor seria mais um motivo para a sociedade ocupar as ruas, reivindicando o impedimento do então presidente.
A rua é notoriamente o espaço de mobilização social na busca por reivindicações diversas. Essa forma de buscar os direitos sociais pode ser observada na França do século XIX. Paris era a capital do centro do mundo moderno, entretanto, a chegada dos franceses do interior à Paris revelava uma condição completamente adversa. A cidade luz de hoje não lembrava em nada a capital pobre e miserável das primeiras décadas pós revolução francesa. É nesse contexto que as ruas parisienses terão um outro papel: seriam a instância por excelência das Barricadas.
As Barricadas terão um papel fundamental na luta revolucionária da Paris do século XIX, e principalmente, como argumento ao projeto de modernização que tornará a Paris que conhecemos hoje. À época, as ruas parisienses eram estreitas e a estrutura urbana era caótica. O emaranhado de ruas e vielas favorecia o intento dos grupos armados os quais as forças militares não tinham alcance.
A mudança desse cenário ocorrerá com Haussmann. O arquiteto parisiense iria conceber o projeto de modernização da cidade que teve, prioritariamente, em sua base, um projeto político. Conforme descreve Walter Benjamim, “a verdadeira finalidade das obras de Haussmann era tornar a cidade segura em caso de guerra civil. Ele queria tornar impossível que no futuro se levantassem barricadas em Paris. Com essa intenção Luís Filipe já́ introduzira o calçamento com madeira. [...] Haussmann quer impedi-Ias de duas maneiras: a largura das avenidas deveria tornar impossível erguer barricadas e novas avenidas deveriam estabelecer um caminho mais curto entre as casernas e os bairros operários. Os contemporâneos batizam esse empreendimento de "embelissement stratégique" [embelezamento estratégico].”
Com Haussmann, as ruas são entendidas a partir de duas variáveis. A primeira delas é o caráter de luta que a mesma proporciona, sendo necessário torna-la ampla e com prédios altos, impossibilitando a formação das barricadas. A segunda, é o caráter modernizador que “abre caminho” para o capitalismo, elemento da própria modernidade, se tornando modelo para grande parte das capitais ocidentais.
Porém, o projeto político de modernização dos centros urbanos de Haussmann não estancou a utilização das ruas como meio de reivindicação das causas políticas da sociedade. Mais recentemente, o movimento Occupy, de setembro de 2011, mostrou que a busca pela igualdade de condições materiais ainda está inserida num contexto de ocupação em que a sociedade se faz valer do direito de ocupar como meio luta histórica. É nesse contexto, em que a ocupação de espaços públicos é legitimada pelo poder do povo enquanto resultado das mudanças políticas por ele não aceitas, que as ocupações realizadas nos prédios do Ministério da Cultura se inserem.
Há, no ato de ocupar, uma forma de reconquista do direito à cidade, à autonomia e a governança social; uma mudança da percepção do papel que as ruas e as mobilizações sociais exercem no histórico de lutas políticas no Brasil. De modo geral, segundo David Harvey, as táticas das ocupações consistem em “[...] tomar um espaço público central [...] e convertê-lo em um espaço político de iguais, um lugar de discussão aberta e debate sobre o que esse poder esta fazendo e as melhores formas de se opor ao seu alcance. Essa tática [...] mostra como o poder coletivo de corpos no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado”[1].
O que vemos nas ocupações de espaços e prédios públicos é uma virada histórica na sociedade brasileira, pois pela primeira vez a rua não basta para reivindicar melhores condições sociais e políticas. Pela primeira vez no Brasil, a sociedade percebe a necessidade de ocupar o patrimônio público, ordeira, pacífica e culturalmente[2], como forma de mostrar ao restante da sociedade que o poder está no povo e em suas ações frente a contraditória conjuntura política que se observa.
Este momento de ruptura assemelha-se aos movimentos de maio de 1968 ocorridos na Europa e nos EUA, principalmente, àqueles observados nas ruas de Paris. Novamente, Paris conduzirá a virada do papel dos movimentos sociais, pois as manifestações de maio de 1968 buscavam uma mudança profunda no modus vivendi da sociedade parisiense. Foi um movimento que envolveu estudantes, trabalhadores, filósofos, artistas, políticos etc, superando as barreiras étnicas, culturais, de classe, idade etc. Quando questionados sobre quais eram suas demandas, os estudantes à época respondiam: “tudo!”.[3] O papel transformador que se exprime mudará também a formulação filosófica do período. Não obstante, Foucault e Sartre estiveram – literalmente – nas ruas, e com relação ao primeiro, se alterará profundamente sua percepção sobre as relações de poder. A partir de maio de 68, Foucault cria o Grupo de Informações sobre as Prisões (GIP), que atuou junto aos presos e seus familiares, entre 1971-1972, na procura de pôr em xeque a prisão enquanto uma instituição intolerável. E por dois anos os cursos de Foucault no Collège de France exploraram o mesmo tema: a prisão (Teorias e instituições penais; A sociedade punitiva); e o mesmo em uma conferência no Brasil em 1973 na PUC-RJ (A verdade e as formas jurídicas); e também no livro de 1975: Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Ou seja, pode-se observar um paralelo entre a ação política e as pesquisas acadêmicas de Foucault. No limite um paralelo entre vida e obra[4].
A transformação social observada em maio de 1968 na França e nos EUA - com o Movimento Occupy -, ganham um novo caráter com as ocupações brasileiras, sendo esta ultima uma instância de evolução nos processos de ocupação do espaço público. Une a percepção da ocupação de prédios públicos com a necessidade de se alterar o modus vivendi brasileiro, principalmente na relação sociedade x classe política. Por mais que ainda não se observe esta prática como movimento massivo da sociedade, caminha-se para se alterar a realidade dos movimentos sociais e a luta destes na busca de profundas mudanças políticas.
Com a falta de espaços de participação popular na política brasileira e, com cada vez mais medidas políticas que não correspondem aos interesses da sociedade brasileira, não é de se espantar que a ocupação de prédios públicos como espaços de luta e resistência tornem-se cada vez mais comuns e justificáveis. A ocupação dos prédios do Ministério da Cultura[5] nos ensina que a sociedade brasileira não concebe mais os mesmos desmandos coronelísticos de séculos passados, fazendo valer do direito de participação para alterar as bases nas quais nossa sociedade está assentada, quais sejam, uma sociedade machista, patriarcal e espúria do ponto de vista político. Faz-se importante, ainda, evidenciar que as ocupações consistem em um processo de organização fluído e em constante metamorfose. Nesse sentido, as mais recentes encarnações das ocupações ocorrem por parte dos estudantes secundaristas com o objetivo de evitar o fechamento das Escolas. Tais ocupações espalharam-se desde Fortaleza até São Paulo (onde, como resultados exitosos, têm-se a abertura da CPI do Roubo da Merenda, bem como as Escolas permanecerem com as portas abertas)[6].
Novos tempos se abrem para a participação da sociedade na política brasileira. Hoje sabemos que o público também é nosso, e, portanto, torna-se legítimo ocupar! De fato, as palavras de David Harvey dão o tom acerca da significativa relevância das ocupações para o contemporâneo cenário político brasileiro: “O sistema não está só quebrado e exposto, mas também é incapaz de qualquer outra resposta que não a repressão”. [...] “Construir uma alternativa em suas ruínas é tanto uma oportunidade inescapável quanto uma obrigação que nenhum de nós pode ou vai querer evitar”[7].
[1] HARVEY, David (et al.). Occupy: movimentos de protestos que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012. p. 60-61.
[2] Entretanto, esse fato não impede a repressão policial por parte do Estado (no caso brasileiro, ainda fortemente pautada pela violência do período do regime ditatorial). Novamente recorrendo à Harvey, o mesmo afirma que, “Uma vez no controle do aparato estatal, [o capital] usa o monopólio da violência, que todo Estado soberano reivindica, para excluir o público do espaço publico e para atormentar, pôr sob vigilância e, se necessário, criminalizar e prender quem não aceitar amplamente suas ordens. É exímio nas práticas de tolerância repressiva que perpetuam a ilusão de liberdade de expressão, contanto que essa expressão não exponha implacavelmente a natureza verdadeira de seu projeto e o aparato repressivo sobre o qual repousa”. HARVEY, David (et al.). Occupy: movimentos de protestos que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012. p. 59.
[3] Nesse contexto, e fazendo uma ligação direta com o tempo presente, o autor e jornalista Pierre Rimbert nos lembra do atual Movimento francês, Nuit Debout:
“Na França, a oposição à reforma trabalhista e a ocupação de praças pelo movimento Nuit Debout convergiram na recusa de uma visão estreita da política: aniquilação das esperanças coletivas no buraco negro eleitoral, arranjo à margem da ordem social”. Acesso em: 03/06/16. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=2090 |
[4] Acesso em: 27. Mai. 2016. Disponível em: http://grupoestudosfoucault.blogspot.com.br/2014/03/foucault-acerca-do-grupo-deinformacao.html
[5] Bem como a ocupação do prédio da Secretaria da Presidência da República, em São Paulo. Acesso em: 03/06/2016. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/2016/06/01/urgente-mtst-ocupa-secretaria-da-presidencia-em-sao-paulo/
[6] O autor Sandro Barbosa de Oliveira foi perspicazmente à raiz da questão ao nos indagar: “o que o movimento de ocupações quis dizer para a sociedade? Um dos primeiros dizeres foi que os estudantes querem participar das decisões que afetam suas vidas. Então, querer participar é querer se autodeterminar, aspecto primário em qualquer democracia direta como proposta política que advém da participação direta e se contrapõe a democracia representativa, aquela em que se elegem representantes do “povo”, e ao seu participacionismo. Como a maioria dos brasileiros sabe, vivemos em tempos de crise da democracia representativa, o que implica repensar os modos de fazer política no país. A crise da democracia representativa é a crise de um sistema político inoperante para as classes trabalhadoras e populares, modo de regulação política que envolve partidos políticos, instituições eleitorais e instâncias administrativas de um Estado de viés patrimonialista sob um regime de acumulação de capital autoritário e segregador, que funciona para as classes dominantes – industriais, banqueiros, latifundiários e imobiliários. Portanto, o que os estudantes estão nos ensinando é que a participação se constrói de baixo para cima e não de cima para baixo como tem sido feita na moribunda democracia representativa”. OLIVEIRA, Sandro Barbosa de. As Ocupa-Ações Secundarista em SP: da autodefesa do espaço à escola autogerida. Acesso em: 03/06/16. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3173&tipo=acervo
[7] HARVEY, David (et al.). Occupy: movimentos de protestos que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2012. p. 64.