Os últimos acontecimentos no Brasil, no que diz respeito às ações do judiciário, levaram muitas pessoas a perceber que o Estado existente é um estado de exceção. De repente, aquilo que só valia para os empobrecidos, os negros, os índios, os esquecidos, os trabalhadores assalariados, passou a valer também para os inimigos tradicionais. Quebrou-se o código que funcionava como um acordo tácito: os ricos e os que carregam algum poder tinham tratamento diferenciado. E, de repente começou a brotar o bordão de que “a lei é para todos”, como se isso fosse uma verdade. Não é. O estado de exceção é uma realidade desde a sua formação. Ou alguém acha que lá na Europa, onde essa forma de organização nasceu, o Estado existia ou existe para proteger as gentes. Não. Nunca foi assim. Foi sempre para proteger os que estão no comando, a burguesia, os ricos. E os que estão no comando pertencem a uma determinada classe, que não é a dos trabalhadores. Se, como agora no Brasil, há uma disputa intraclasse, é sempre conjuntural. Logo as abóboras de acomodam e os acordos são refeitos.
Foi Marx quem desvelou essa verdade oculta ao estudar as determinações dessa forma de produção chamada capitalismo. O Estado burguês é o balcão de negócios da classe dominante, é o responsável por fazer acontecer o processo de acumulação de riqueza apenas para alguns, tais como as grandes transnacionais, como a Monsando, a Odebrecht, as petroleiras e outras. Ele existe para atender aos interesses da minoria que se encastela no poder e governa em nome de todos, sem que os interesses de todos sejam levados em conta. Só o que vale é o interesse da minoria que tem a propriedade privada dos meios de produção, os bancos, as terras, as máquinas, as indústrias, as grandes empresas.
Olhemos o Brasil. A quem representam os legisladores, os que fazem as leis? Representam interesses bem específicos: latifúndio, indústria, igreja. Apenas aqueles que produzem mercadorias, deixando claro que hoje inclusive a fé das gentes é uma mercadoria. A maioria fica de fora. Vez em quando ganha um afago, para aliviar a pressão. Mas, basta que se apresente algum risco aos lucros, e lá são tirados os direitos. Como agora, na reforma trabalhista, no congelamento dos gastos públicos, na reforma da previdência. “Tirem dos trabalhadores. Tirem dos mais empobrecidos. Tirem da maioria”. Essa é a regra. O Estado de exceção agindo, como é da sua natureza.
Qual a saída para isso? Melhorar o capitalismo? Humanizar? Clamar por compaixão? Não. Há que apostar na comunidade, na constituição comum dos bens. O capitalismo é um metabolismo insaciável, precisa se expandir a todo custo. Não pode parar. Por isso vai passando por cima das gentes. Não há misericórdia.
Marx apontou uma possibilidade: o comunismo. E o que é isso que as pessoas tanto temem? É o uso comum das riquezas, das terras, das fábricas. Cada um recebendo conforme suas necessidades, sem acumulação ou exploração. É uma sociedade em que todos participam, a sociedade do comum, numa convivência em que os que produzem a riqueza também podem usufruir dela. O comunismo é um momento em que até a batalha pela democracia deixa de ser necessária porque ela será capilar. E nesse modo de organização da vida não haverá Estado, porque essa forma é, naturalmente, uma forma de exceção.
Não é sem razão que Marx aponta a necessidade de um processo de transição, no qual ainda haverá Estado. É o que ele chama de ditadura do proletariado, ou Estado proletário. Esse momento histórico seria o momento em que o poder troca de mãos. Sai do controle de uma minoria – como é hoje – para o controle da maioria, os trabalhadores. Ainda será Estado, mas toda a lógica já começará a mudar. Isso pode ser observado no processo cubano, por exemplo. Ainda há um Estado, mas as decisões são todas construídas desde baixo, de maneira coletiva, comunitariamente. E a população conhece e acompanha, deliberando, os destinos da nação. Outro exemplo é a Venezuela, que também exercita esse processo de democracia participativa. Lá, ainda bem menos profundo que Cuba, porque está no começo e não aconteceu uma revolução. As coisas estão sendo construídas no embate cotidiano com a burguesia que tem apoio internacional. Ainda assim, as experiências de construção de uma comunidade do comum acontecem e pululam nos bairros das grandes cidades e nos cantões do país.
No texto “A questão judaica”, de Karl Marx, é possível observar o rico debate que ele levanta sobre a questão do Estado. Ele mostra como, no capitalismo, o Estado aparece como algo exterior à nós, como se fosse alguma coisa distinta da sociedade civil, ou como se fosse ele o ente que organiza a sociedade civil.
Mas, para Marx essa divisão entre Estado e Sociedade Civil é mistificada, não é real. Segundo ele, a sociedade civil e o Estado não são coisas distintas. Pelo contrário. O estado é expressão das contradições políticas que estão postas pela sociedade civil. É toda a rede de comunicação – que envolve escola, igreja, família e mídia - que cria a ideia de que é o estado quem comanda ou que deve comandar.
Mais uma vez voltamos a Cuba. Lá, é possível perceber com bastante clareza que o estado não é o balcão de negócios da burguesia e tampouco é um aparelho que define como a sociedade deve atuar. O processo é ao contrário. É a sociedade civil organizada que define como o estado tem de atuar, fazendo com que as prioridades da maioria sejam as prioridades do Estado. Por isso não há menino de rua, nem moradores de rua, nem guerra de gangues, nem violências desatadas. Há saúde, educação e moradia para todos. É a população que decide aonde vão os recursos. Apesar de ser um país pobre e cercado pelo imperialismo, esses são direitos dos quais os cubanos não abrem mão. É isso que Marx fala sobre o estado proletário, nele não há cisão, não há dicotomia entre a sociedade civil e estado. É o “mandar obedecendo” tão conhecido pelos povos originários.
Esse é o caminho que Marx aponta para a superação da exploração das gentes e da propriedade privada. Primeiro, uma transição do estado capitalista para o estado proletário. E, depois, o comunismo, esse momento superior no qual o estado passa a ser desnecessário.
Ah, mas como que as pessoas vão fazer sem um estado para organizar tudo? Ora, as pessoas vão organizar. Como vai ser? Bom, não há respostas prontas. Essa é uma estrada para ser aberta, pavimentada e embelezada. Cada povo haverá de encontrar, a partir de suas próprias especificidades, a maneira de organizar a vida. Isso não é um sonho. Tem sido real ao longo da história em muitas comunidades e em várias épocas. Propostas como o sumac kausai (o bem viver), ou o sumac qamaña (o viver bem), dos povos originários mostram que é possível constituir uma nova forma de organizar a vida, que não esteja fundada na exploração do trabalho alheio, muito menos na propriedade privada. É o retorno do comum, da vida boa para todos e não apenas para alguns.
Como é possível que se busque preservar uma sociedade na qual três ou quatro homens sejam donos de mais da metade das riquezas geradas pelos trabalhadores? Como pode ser considerada diabólica uma proposta que pretenda tornar comum a riqueza, que acabe com a fome, que torne desnecessária a fuga, a morte e o desespero?
O comunismo só é diabólico para esses e essas que acumulam a riqueza gerada pelos bilhões de trabalhadores. São eles os que têm medo. E como têm poder, eles divulgam esse medo como se tivesse de ser o medo de todos. Não tem! Os trabalhadores, os despossuídos, os migrantes, os empobrecidos não tem nada a perder a não ser os seus grilhões. É tempo de pensar sobre isso, entender a realidade e avançar para um tempo novo.
Insisto. Não há o que temer. Pode ser um salto no escuro, pode ser difícil, mas, certamente será melhor do que é. O capitalismo é uma ilusão. Ele só produz morte e dor para a maioria. É tempo de virar esse jogo. Nós podemos.