Por mais simplista que possa parecer, a resposta tem uma base muito complexa de reflexões que se fundamentam na situação concreta da classe trabalhadora e que não podem ser ignoradas; reflexões que permanecem atuais e latentes, uma vez que a religião ainda exerce papel fundamental na vida das trabalhadoras e dos trabalhadores. No livro em que polemiza com Eugen Dühring, Engels oferece uma reflexão muito mais aprofundada da questão, que aqui trago a partir dessa longa citação:
“Ora, toda religião nada mais é que o reflexo fantástico, na mente dos seres humanos, daquelas potências exteriores que dominam sua existência cotidiana, um reflexo no qual as potências terrenas assumem a forma de potências sobrenaturais. Nos primórdios da história, quem primeiro experimente esse reflexo são as potências da natureza e, no desenvolvimento ulterior, elas passam, entre os diferentes povos, pelas mais multifacetadas e variegadas personificações. Esse primeiro processo foi retraçado, ao menos no tocante aos povos indo-europeus, pela mitologia comparativa, até sua origem nos Vedas indianos, sendo que sua evolução foi comprovada detalhadamente entre os hindus, persas, gregos, romanos, germanos e, na medida em que há material suficiente, também entre os celtas, lituanos e eslavos. Porém, logo passam a atuar, ao lado das potências naturais, potências sociais – potências tão estranhas e de começo tão inexplicáveis para os seres humanos que os dominavam com a mesma aparente necessidade natural das próprias potências da natureza.
Os vultos fantásticos, nos quais se refletiam de começo apenas as forças misteriosas da natureza, adquirem desse modo atributos sociais, tornando-se representantes de potências históricas. Num estágio ainda posterior do desenvolvimento, todos os atributos naturais e sociais dos muitos deuses são transferidos para um só Deus onipotente, que, por sua vez, é apenas o reflexo do ser humano abstrato. Desse modo, surgiu o monoteísmo, que historicamente foi o último produto da posterior filosofia grega vulgar e já encontrou sua corporificação pronta e acaba no Deus nacional judeu exclusivo, Javé. Nesse formato cômodo, prático e adaptável a tudo, a religião pode seguir existindo como forma imediata, isto é, afetiva de relação entre os seres humanos e as potências naturais e sociais que os dominam enquanto estiverem sob o domínio de tais potências.
Porém, vimos várias vezes que, na sociedade burguesa atual, as pessoas são dominadas pelas relações econômicas criadas por elas mesmas, pelos meios de produção produzidos por elas mesmas, como se fossem uma potência estranha. Portanto, o fundamento factual do ato religioso perdura e, junto com ele, o próprio reflexo religioso. E, mesmo que a economia burguesa inaugure uma certa noção dos nexos causais dessa dominação estranha, isso não muda nada no fato em si.
A economia burguesa não tem como impedir as crises em termos gerais nem proteger o capitalista individual de perdas, dívidas perdidas e bancarrota ou o trabalhador individual do desemprego e da miséria. Ainda vale o adágio: o homem põe, Deus (isto é, a dominação estranha exercida pelo modo de produção capitalista) dispõe. O simples conhecimento, mesmo que ele fosse mais amplo e mais profundo do que o da economia burguesa, não basta para submeter as potências sociais à dominação da sociedade.
Para isso, faz-se necessário, antes de tudo, uma ação social. E, quando essa ação tiver sido efetuada, quando, mediante a tomada de posse e o manejo planejado da totalidade dos meios de produção, a sociedade tiver libertado a si e a todos os seus membros da servidão em que são mantidos no presente por esse meio de produção produzido por eles mesmos, mas com que se defrontam como potência estranha superpoderosa, ou seja, quando o homem não apenas puser, mas também dispuser, só então desaparecerá a última potência estranha que agora ainda tem como reflexo a religião, e desse modo desaparecerá também o próprio reflexo religioso, pela simples razão de não haver mais o que refletir” (ENGELS, 2015, p. 349-50-51).
Engels (2015) reconhece que, na sociedade burguesa, não é em si a religião que exerce papel central na alienação da classe trabalhadora, como também não são a educação ou mesmo a mídia as responsáveis por isso. Os seres humanos, sob a égide do modo de produção capitalista, vivenciam o modo de vida burguês de modo estranhado, uma vez que a dinâmica do capital implica que quanto mais produzem, mais pobres os trabalhadores ficam e, portanto, mais se veem afastados dos produtos de seus próprios trabalhos.
Uma vez incapazes de resolver as próprias contradições, torna-se compreensível que os trabalhadores abdiquem da própria racionalidade – já que nela não encontram as resoluções para os próprios problemas – para buscar na espiritualidade um conforto, dadas todas as adversidades a que são submetidos em função da dinâmica traiçoeira do capital. Portanto, somente quando o modo de produção capitalista for superado, as trabalhadoras e os trabalhadores intervirem direta e conscientemente na forma como produzem e reproduzem sua vida em sociedade é que o abandono de um pensamento que transcenda a realidade concreta se tornará possível, porque será então desnecessário.
Mas e a realidade concreta?
Dados do IBGE, do Datafolha e do Instituto PEW apontam que no Brasil existe uma grande queda de adeptos do catolicismo e o concomitante crescimento de adeptos das religiões evangélicas – pentecostais ou não –, de modo que boa parte dos adeptos da primeira vem migrando para essa última. O estudo do Datafolha aponta ainda para um grande desconhecimento e preconceito a respeito da religião muçulmana, judaica, bem como em relação ao budismo e outras religiões ligadas ao oriente que sofrem com a influência da ideologia burguesa que desumaniza e desespecifica aquilo que é externo ao ocidente, tornando-o sinônimo da barbárie.
Ainda que não me aprofunde em tais dados, trago-os para explicitar que a religião é uma necessidade latente das trabalhadoras e dos trabalhadores; necessidade que evidentemente cresce com a intensificação das crises que acometem o capitalismo, dada sua dinâmica imanente. Seria um erro que negássemos isso e que não conseguíssemos, como comunistas, intervir nessa realidade trazendo para nosso lado as trabalhadoras e trabalhadores que poderiam enxergar entre a sociedade socialista e a religião uma correspondência, o que não apresentaria, sob qualquer perspectiva, uma contradição.
Sob outra perspectiva, faz-se ressaltar que a bancada evangélica no Congresso, que apresenta cerca de 16% do total de nomes, demonstra-se demasiadamente conservadora, aprovando projetos que prejudicam negras e negros, as mulheres, bem como a comunidade LGBT. Ademais, não cabe esquecer, a bancada evangélica no Congresso teve participação na aprovação das reformas trabalhistas, bem como na PEC 55, de modo a prejudicarem concretamente os próprios fiéis, majoritariamente advindos dos setores mais pobres da sociedade e que sentirão fortemente os efeitos causados pelos ataques da burguesia à classe trabalhadora como um todo.
Se nós, comunistas, adeptos ou não de uma religião, não soubermos apontar essas contradições com o devido tato que a realidade sensível nos exige, evidentemente marcharemos rumo a mais derrotas no futuro, porque, ao não entendermos as demandas da classe – algo que só acontecerá se construirmos um Partido Comunista efetivamente inserido nas massas e legítimo do atendimento e adesão de suas pautas ao nosso programa – jamais conseguiremos atingir o número de adeptos de uma sociedade socialista concretamente emancipada que já tivemos outrora.
Hoje tanto se fala em liberdade religiosa, mas conseguimos nós mesmos esquecer que ela só existe – formalmente – em função da ação dos comunistas no século XX, quando tínhamos a inserção de militantes nossos no Parlamento Burguês. Se em vez de ouvirmos as trabalhadoras e trabalhadores para percebermos que os motivos pelos quais eles aderem às religiões têm, direta ou indiretamente, relação com uma sociedade em que reina a propriedade privada dos meios de produção e reprodução, ficarmos discutindo com as trabalhadoras e os trabalhadores sobre a superioridade do ateísmo, com o qual nos defrontamos em função de nossa pretensa capacidade de resolução dos problemas concretos com base em análises concretas – perderemos não só a oportunidade de aprendermos sobre a classe mais do que podemos absorver dos livros que tratam dela, como também de formar socialistas que, por mais idealistas que sejam em suas crenças particulares, sonham como nós com a concreta emancipação humana que só pode ser alcançada no socialismo.
Enquanto acreditarmos que existe sentido em desfazermos a felicidade das nossas famílias nas ceias de natal, por nos acreditarmos superiores e mais racionais por não acreditarmos em “algo tão besta” como um ser ou energia superior, seguiremos sendo taxados de bestas e chatos que, em vez de sermos escutados e entendidos a respeito da justeza de nossa luta, semearemos com veneno uma outra crença justa que já é suficientemente regada para os motivos errados. Escutemos mais a classe trabalhadora: ela tem muito mais a nos ensinar além dos salmos e rezas!
Germano Rama Molardi é militante do PCB em Santa Maria – RS.