Bolsonaro responde agora pela prática de dois supostos [1] crimes: incitação ao estupro e injúria, praticados contra a Deputada Federal Maria do Rosário Nunes (PT), ex-ministra dos Direitos Humanos.
Mas, de fato, há o que comemorar?
Inicialmente, a prática denominada de Gaslighting de um dos primeiros meios a divulgar a informação é flagrante e exige ser comentada. Trata-se do artigo publicado pela Folha de São Paulo. A matéria “Bolsonaro vira réu no STF, acusado de incitar estupro em briga com deputada” [2] é desprezível. Primeiro, há tentativa de amenizar a ofensa de Bolsonaro dizendo que ela teria sido fruto de uma briga com a Deputada. Segundo, a referência proposital ao estado emocional da parlamentar, no penúltimo parágrafo da notícia: “alterada”.
No cenário atual, em que enquanto você lê esse pequeno texto duas mulheres estão sendo estupradas no Brasil [3], a inserção de elementos como estes numa notícia publicada num dos jornais mais lidos do país não pode ser considerada inocente. A palavra “alterada” é, nesse sentido, relevadora e põe fim à “isenção” da matéria veiculada. Estar “alterada” é estar “fora da razão” e, portanto, praticar atos passíveis de contestação imediata, justificando, em última instância, a atitude de Bolsonaro perante a congressista Maria do Rosário.
Agora voltemos nossa atenção ao STF. Em mais de cem anos de funcionamento, foi apenas em 2000 que uma mulher passou a integrar a Suprema Corte, Ellen Gracie Northfleet. Hoje, em 2016, a atual composição do STF conta com apenas 2 mulheres, Rosa Weber e Cármen Lúcia, e 9 homens. Como se vê, não reflete em nada a proporção entre pessoas do sexo masculino e feminino no Brasil.
O problema, todavia, não está apenas na estrutura da Corte. A história do STF está marcada por situações absurdas. Uma delas, senão a mais condenável, refere-se ao julgamento da revolucionária comunista Olga Benário que resultou em sua expulsão e consequente assassinato num campo nazista.
Mais recentemente, em 2013, o STF, especificamente o ministro Luís Roberto Barroso, a pedido do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, mandou arquivar uma denúncia contra o próprio deputado Jair Bolsonaro, então filiado ao PP. O inquérito referia-se à denúncia de racismo cometido contra Preta Gil.
Então, há o que comemorar?
Num cenário imediato e limitadíssimo, sim. Mas, sejamos realistas. O nível doentio do machismo que vivemos é tão grande que, diante de um fato notório, nesse caso a incitação de Bolsonaro a práticas homofóbicas, transfóbicas, lesbofóbicas e à violência sexual, precisamos comemorar o fato de uma instituição simplesmente acatar um pedido investigativo para colher uma denúncia de violência contra mulher.
O que significa Bolsonaro ser réu no STF? Quais os desdobramentos dessa situação?
Até aqui, de modo bastante simples, o que existia era apenas um processo que reúne um certo número de provas e cuja finalidade busca orientar o aceite de uma denúncia e o julgamento com consequente responsabilização do agente que cometeu o ato criminoso. É a partir de agora, com o aceite da denúncia, que a conduta de Jair Bolsonaro será juridicamente avaliada, abrindo-se duas hipóteses possíveis: ser absolvido ou condenado.
Nesse horizonte, o acolhimento da denúncia pela Corte Suprema é um avanço.
Mas, se mesmo as ações políticas não são unânimes quanto às condutas de Bolsonaro, havendo, infelizmente e para nossa decepção, pessoas que o apóiam, o que reflete a completa ignorância, preconceito e ausência de capacidade de análise crítica de setores da população, não há muito o que esperar de um Judiciário e especificamente do STF, cujo grau de conservadorismo ultrapassa qualquer limite razoável. Basta ver a recusa e o pronunciamento do ministro Marco Aurélio Mello.
O que é facilmente conclusivo a partir desse cenário é que a miséria do capitalismo se expressa em todos os cantos, inclusive no Direito, cabendo a um instrumento técnico-operativo, como a lei, sobrepor-se a fatos.
Mas a justiça do direito, que é a justiça da legalidade, não pode ser, em hipótese alguma, a nossa.
Por isso, na iminência de elementos que nos levam a crer que o julgamento irá absolver o congressista Jair Bolsonaro, o que nos resta propor é a continuação e intensificação das manifestações promovidas por grupos feministas e da esquerda nacional contra o parlamentar. Incluindo na pauta o próprio Judiciário e o STF.
É duro admitir que essa luta contra as declarações criminosas de Boslonaro limitam-se aos grupos da esquerda, o que demonstra o grau de mesquinhez da burguesia nacional, que se materializa nos movimentos da direita brasileira dos quais é fruto o irrelevante Movimento Brasil Livre (MBL).
A luta política ainda é essencial. Sem ela, muito provavelmente a decisão que surgir no seio do STF irá encontrar nos meandros legais um modo de inocentá-lo. A pressão deve vir das ruas, das organizações.
Para que possamos gritar “vitória” é preciso intensificar nossas vozes contra a misoginia de Bolsonaro, do Judiciário e do STF.
Até lá, sigo com minha dúvida, o que há para comemorar?
João Guilherme é militante do PCB. Estudante de Direito e pesquisador da PUC-SP. Coordenador do Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito. Integrante do GPTC/USP.
Notas
[1] No capitalismo uma decisão judicial, mesmo que contrária, dá lugar aos fatos. E, não sendo o julgador ou o interprete oficial, não podemos dizer que Bolsonaro é culpado até que a decisão judicial transite em julgado. Por isso o uso do termo “suposto”.
[2] Confira aqui: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/06/1783973-bolsonaro-vira-reu-no-stf-por-fala-sobre-estupro-de-deputada.shtml
[3] Uma mulher é estuprada no Brasil a cada 11 minutos, diz estudo http://pr.ricmais.com.br/seguranca/noticias/uma-mulher-e-estuprada-no-brasil-a-cada-11-minutos-diz-estudo/