Consequência dessa falta de direcionamento, historicamente a inteligência brasileira foi voltada sempre para a repressão aos movimentos sociais e para a criação de um falso inimigo interno no Brasil, caracterizado pelo comunismo. Na ditadura empresarial militar de 1964, isso ficou muito claro quando o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) através de financiamento da Agência Central de Inteligência (CIA), germinou o medo de uma revolução comunista no Brasil.
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Essa falta de direcionamento da ABIN não existe por acaso, ela é parte de um projeto relacionado com o caráter dependente do capitalismo brasileiro que, ao se posicionar em uma relação periférica no ambiente das relações internacionais e do capitalismo, reflete em sua instituição de inteligência essa mesma posição, facilitando para que ela seja um instrumento de fácil manipulação do aparato de inteligência norte-americano. Agora, com o governo de Michel Temer, essa relação ficará um pouco mais aprofundada e este deverá ser o objeto de análise desse texto.
São de conhecimento público os sucessivos projetos do governo de Michel Temer e de seus aliados no sentido de flexibilizar as leis trabalhistas, privatizar o patrimônio público brasileiro e de promover um rigoroso ajuste fiscal que prejudicará a população brasileira. Se, devido ao caráter dependente acima mencionado, o trabalhador brasileiro, vítima da superexploração do trabalho, já não recebe o valor real de sua força de trabalho, é certo que a flexibilização das leis trabalhistas significa um processo claro de aprofundamento dessa relação de dependência. Da mesma forma, a privatização das empresas brasileiras que serão entregues ao capital estrangeiro e o ajuste fiscal para fortalecimento do rentismo que são apresentadas como soluções para a crise significam na verdade uma grave intensificação da dependência do capitalismo brasileiro, e já podemos enxergar uma série de greves, protestos e manifestações contra essas medidas, seja por parte de movimentos sociais ou partidos políticos, descontentes também com o impeachment da presidente Dilma Roussef. Mas como isso se relaciona com a inteligência?
A revista ISTOÉ, em sua matéria intitulada “Como funciona o Serviço Secreto Brasileiro” revela que a ABIN tem monitorado uma série de movimentos grevistas no Brasil, chegando inclusive a entregar um relatório à ex-presidente Dilma (enquanto ela ainda estava na condição de presidente) sobre o enfraquecimento da greve no setor público federal, o que orientou a presidente Dilma a direcionar os até então Ministros Guido Mantega, da Fazenda, e Miriam Belchior, do Planejamento, a não negociar com os grevistas. Uma das primeiras ações noticiadas de Michel Temer enquanto presidente foi remilitarizar a ABIN, ação divulgada pelo jornalista Lucas Figueiredo, do jornal The Intercept. Certamente, a militarização da ABIN e restituição do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) foi uma antecipação do atual presidente diante da conjuntura com a qual ele se encontraria na aplicação de seu projeto supracitado, que observou a importância de ter o aparato de inteligência brasileiro a seu favor diante da repressão e criminalização dos movimentos sociais.
Mas esse não foi o único movimento do presidente em relação a ABIN. Ao restituir o GSI, ele colocou no comando o general Sérgio Etchegoyen, conhecido por ser o primeiro oficial de alta patente na ativa a criticar o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, tendo inclusive seu pai e seu tio citados por violações contra os direitos humanos. Michel Temer também criou uma Política Nacional de Inteligência (PNI), aprovada no Congresso Nacional e que busca reforçar a existência de uma Guerra ao Terror no Brasil, mas que na verdade servirá para criminalizar os movimentos sociais. A Política Nacional de Inteligência, em um primeiro momento, nos parece uma resposta àquela ideia de que a ABIN não tem uma doutrina de inteligência, mas não é.
Segundo reportagem do Defesa.net intitulada “Sérgio Etchegoyen diz que ABIN foi reforçada”, o PNI dá um foco para a área de inteligência estratégica voltada para a produção de dados sobre a conjuntura nacional e internacional para o assessoramento de decisões do Poder Executivo. Inclusive, esse foco na área de inteligência estratégica pode ser traduzido na troca de diretor geral da Agência feita pelo próprio Michel Temer, que retirou o diretor Wilson Roberto Trezza para colocar o até então Diretor de Inteligência Estratégica, Jáner Tesch, no comando da Agência. A aprovação de Tesch está condicionada ainda a uma aprovação do Senado Federal. Vale lembrar que a comissão de inteligência do Senado é composta em sua maioria (13 de 19) por membros do governo Temer, contando como presidente o senador Aloysio Nunes (PSDB) e como vice-presidente Valdir Raupp (PMDB). A verdade é que a Inteligência Estratégica terá um papel central na repressão, contenção e criminalização dos movimentos sociais no Brasil, sobretudo nesse período de agravamento da luta de classes.
A ABIN é responsável por muitos programas importantes. O Centro de Pesquisas e Desenvolvimento para Segurança das Comunicações (CEPESC), descrito no site da própria agência como “uma unidade de pesquisa científica de tecnológica aplicada na segurança das comunicações”. Os programas CriptoGov e cGov por exemplo, têm funções centrais na criptografia das comunicações que possam obter material sensível de interesse do Estado brasileiro, ou mesmo o PCPv2, que é um dispositivo de criptografia portátil que permite armazenamento, destruição e transmissão segura de arquivos, estão sob a responsabilidade da ABIN. O PCADv2, dispositivo que protege o tráfico de dados em uma rede privada de computadores usado na infraestrutura de plataformas TCP/IP, e o TSG que serve para as telecomunicações do governo brasileiro também estão sob a tutela da ABIN.
Isso significa que a agência dispõe de todo um aparato técnico para atuar no sentido de obter informações estratégicas no ambiente interno do território brasileiro. Apesar do déficit de capacitação de seus profissionais na área de HUMINT (Human Intelligence), que pode ser exemplificado quando chegaram a ser flagrados por agentes da CIA em 2009 em atividade de contrainteligência, como divulgado pela reportagem “Agentes da ABIN foram detidos pela Polícia Federal em 2009” do jornal Diário do Poder, ou mesmo quando foram presos por policiais militares em 2013, flagrados espionando o até então candidato à presidência Eduardo Campos, segundo a revista Veja na reportagem “PM de Pernambuco prendeu 4 agentes da Abin que espionavam o governador Eduardo Campos”, reproduzida mais tarde no jornal O Globo. Vale mencionar também o vexame nacional divulgado pela Folha de São Paulo na reportagem “Vídeo de Batman, Robin e Mulher Gato ensina português na ABIN”, em que agentes travestidos dos personagens citados, formam um grupo de teatro e ensinam português na agência.
Mesmo assim, é importante lembrar que agentes da ABIN já foram flagrados em manifestações, como divulgado na matéria do jornal O Globo intitulada “ABIN vai investigar participação de agente em manifestação”, matéria que divulgou a prisão de um agente da ABIN no Rio de Janeiro chamado Igor Pouchain Matela em protesto de 2013 por desacatar os policiais militares que prenderam uma Carla Hirt em flagrante por atirar pedras na vidraça de uma loja. A própria Hirt se apresentou como agente da ABIN, apesar da declaração oficial que nega a integração dela aos quadros da agência. Isso significa não só que a agência tem papel central na captação de informações via SIGINT (Signals Intelligence), mas também que tem atuação direta em termos de espionagem nos protestos e manifestações que ocorrem no país.
A remilitarização significa não só uma intensificação desse processo, bem como o recrudescimento de uma repressão sistemática que poderá significar não só a tentativa de deslegitimar os protestos através de atos de vandalismo, mas também a fiscalização e prisão de uma série de manifestantes. O governo de Michel Temer, através do PNI e da remilitarização, já preparou o terreno ideológico para a criminalização dos movimentos sociais, e já preparou também o projeto estratégico que será direcionado nesse sentido. Falta apenas identificar as Covert Actions que serão produzidas pela ABIN durante os protestos.
Covert Actions, ou seja, ações encobertas, são atividades clandestinas realizadas pelos serviços de inteligência. Segundo o jornal O Globo, em matéria intitulada “Jornalista acusa CIA de colaborar com seus sequestradores na Síria” o jornalista da revista Times Anthony Lloyd aponta que a inteligência americana apoia o grupo do qual um de seus sequestradores fazia parte. Essa reportagem serve para ilustrar como o aparato informacional norte-americano penetra nos países do Oriente Médio e financia guerrilhas e grupos paramilitares na intenção de desestabilizar democracias e garantir a exploração do petróleo no local.
A jornalista Frances Stonor Saunders aponta em sua obra “A CIA e a Guerra Fria Cultural” que o governo norte-americano financiou autores de renome como Raymond Aron, Hannah Arendt, George Orwell e Jean Paul Sartre para que formassem um pensamento de esquerda dentro do capitalismo, e assim pudessem promover a ideia que dentro da democracia liberal existia um pluralismo político, contrapondo-se na época à União Soviética. Mas não precisamos ir muito longe. O documentário “O dia que durou 21 anos” revela como a CIA realizou uma série de operações no Brasil para a implantação da ditadura em 1964, desde financiamento de grupos de mídia até a escolha do presidente Castelo Branco.
Tudo isso são Covert Actions, ações encobertas que servem para desestabilizar a democracia de um país, deslegitimar uma causa, enfraquecer uma greve ou um protesto. A ABIN pode trabalhar isso nos protestos contra o governo de Michel Temer de muitas formas, seja através do vandalismo generalizado e mal direcionado (vidraças em vendas de pequenos empreendimentos ou depredando patrimônio público, por exemplo), através de ações mais ostensivas, como provocar a Polícia Militar, ou através de ações sutis, como espalhar contrainformação (informações falsas) para ludibriar os manifestantes.
Essa semana, o jornal Diário Liberdade divulgou uma notícia que aponta a existência de um interesse do governo norte-americano na instalação de uma base militar na fronteira da Argentina com Brasil e Paraguai. Na matéria, intitulada “Estados Unidos pretendem instalar uma base militar na fronteira da Argentina com o Brasil e o Paraguai”, foi divulgada a criação de uma organização argentina chamada “Multissetorial pela Soberania do Território Nacional e Regional”, fundada no intuito de lutar contra o domínio imperialista na região e que denuncia também o histórico de instalação de bases militares na região, que se manifesta através de bases tradicionais, de postos de ajuda humanitária ou de centros de pesquisa científica. Uma das funções da ABIN é produzir material de inteligência e atuar no sentido de evitar esse tipo de ameaça ao território brasileiro e qualquer coisa que possa ferir a soberania nacional do Estado, vide a Operação Ágata.
A CIA é responsável e financiadora direta de uma agência chamada In-Q-Tel, chefiada por Jeann Valmeri, uma agência voltada para a captação de profissionais da área de tecnologia da informação e para o investimento em agências dessa mesma área, no intuito de fornecer à CIA o que houver de mais capacitado e desenvolvido em termos de aparato informacional. A ABIN, através do Programa Nacional de Proteção ao Conhecimento Sensível (PNPC), também é responsável por fazer esse tipo de prevenção e salvaguardar o Estado brasileiro de quaisquer interferências de Estados e empresas estrangeiras na produção científica brasileira. Essas constatações revelam que a ABIN tem uma série de papéis importantes também no âmbito de proteção do Estado brasileiro frente a nações estratégicas, mas que esses papéis podem estar comprometidos devido ao caráter e o direcionamento do governo Temer. Não há interesse do governo Temer em proteger o Estado brasileiro, mas sim em entregá-lo às potências capitalistas.
Descobrimos essa semana, em matéria divulgada pelo site Investing.com, intitulada “Chineses querem implantar projeto siderúrgico no Maranhão, com investimento de US$3 bi, diz ministério” a declaração do Ministro de Relações Exteriores escolhido por Michel Temer, José Serra (PSDB), de que investidores chineses querem aplicar ao menos 3 bilhões de dólares em um projeto de produção siderúrgico para ser construído no Maranhão. O mesmo José Serra que é autor do Projeto de Lei número 131, que "desobriga" a Petrobrás a ser a operadora única e ter participação mínima de 30% na exploração da camada do pré-sal. O projeto também contou com um substitutivo de Romero Jucá (PMDB), que revoga a participação obrigatória da Petrobras no modelo partilha de produção de petróleo, em voga na exploração da camada pré-sal.
Não podemos negligenciar também a denúncia feita pelo Wikileaks que acusa o presidente Michel Temer de em 2006, enquanto deputado federal, ter trabalhado como informante da Agência Central de Inteligência (CIA), denúncia que se baseia em uma série de telegramas divulgados pelo site, em que o cônsul-geral norte-americano Christopher J. McMullen recebe informações estratégicas de Michel Temer. A conclusão é de que não restam dúvidas de que o papel desse governo ilegítimo é abrir as portas do Brasil para o capital estrangeiro sob toda a tutela possível do Estado brasileiro e que a atividade de inteligência terá um papel central em todo esse processo. Os movimentos sociais terão que recuar para a clandestinidade e terão de aprender a ser eficientes diante desse quadro, bem como combativos diante de todas as medidas que serão implantadas pelo governo.
Se é verdade que a esquerda brasileira viveu em uma morosidade causada pelo apassivamento da luta de classes do governo petista, chegou a hora de lidar com o choque de realidade e voltar-se para um projeto nacional e de atuar na clandestinidade. Qualquer amadorismo por parte dos movimentos sociais e partidos políticos será entendido como uma vulnerabilidade a ser explorada pela Inteligência brasileira. Isso significa que o militante precisará estar atento não só a todas as notícias divulgadas pela mídia tradicional, mas também ter a capacidade de captar de forma seletiva todas as informações que possam ser consideradas estratégicas para o movimento de rua e também fortalecer os meios de mídia independente, como blogs e jornais que sejam voltados para a militância.
Produzir no seio de todo esse processo um trabalho de contra-hegemonia que possa garantir ao movimento alguma legitimidade diante de todo esse processo, inclusive no sentido de neutralizar com antecedência as ações da ABIN voltadas para esse direcionamento. Identificar nos momentos de construção dos atos todas as informações que sejam consideradas sensíveis e buscar o melhor método de trabalhar com elas e na divulgação. Buscar nos atos formar grupos de pessoas conhecidas e andar próximo a elas, evitando a facilidade (mas não a possibilidade) de uma infiltração. Buscar também proteger o rosto e não divulgar de nenhuma maneira nas redes sociais fotos com o rosto protegido ou qualquer tipo de coisa que possa facilitar à inteligência identificar você. Parar de filmar os atos ou de tirar fotos demais das pessoas que dele participam pra divulgar na internet, facilitando o processo de reconhecimento das agências de inteligências também é importante. E sobretudo, entender que a luta envolve de fato uma questão nacional e deve ser pautada também contra o ajuste, contra as privatizações e contra todas as medidas que o governo atual deseja implantar contra a classe trabalhadora brasileira, porque as sementes da transformação estão nas mãos da classe trabalhadora organizada, e apenas através da luta essas sementes serão plantadas para colhermos um novo mundo.