Conversamos com uma das convidadas, Joana Sales, ativista feminista da UMAR-União de Mulheres Alternativa e Resposta e recentemente fundadora da Femafro-Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afro-descendentes.
Quais têm sido as preocupações da UMAR desde a sua fundação?
A UMAR nasceu no pós-25 de abril, como associação de mulheres que lutavam por causas sociais como a ocupação de casas para habitação própria (para moradoras de barracas) e construção de creches sociais, a alfabetização das mulheres e apoio aos direitos das mulheres trabalhadoras. Num primeiro momento os direitos das mulheres estavam em segundo plano mesmo nos partidos de esquerda. Na agenda política o mais importante era a democracia, a reforma agrária ou o processo de descolonização. A consciência feminista da UMAR nasceu vinculada ao movimento pela despenalização do aborto, uma luta que durou em Portugal trinta anos, até à lei de despenalização de 2007, faz agora dez anos. Desde os 90 que a UMAR tem uma agenda marcadamente feminista, que abrange causas como a violência de género, com as nossas casas de abrigo e o Observatório das Mulheres Assassinadas; o desenvolvimento de uma metodologia feminista própria de prevenção da violência de género nas escolas; a vinculação com a rede feminista internacional “Marcha Mundial das Mulheres”, também presente na Galiza; o desenvolvimento de projetos da União Europeia, como o “Mais mulheres na decisão política”; projetos na área do desenvolvimento local, de apoio a mulheres desempregadas ou de formação profissional. Também temos desenvolvido atividade noutros âmbitos: a mutilação genital feminina, o assédio no trabalho, o tráfico de mulheres, as mulheres imigrantes, o movimento LGBT+ ou a prostituição.
A UMAR também têm-se preocupado também pela reflexão, a documentação e a memória feminista.
A UMAR tem promovido seminários e outros eventos, o maior deles o Congresso Feminista em 2008, oitenta anos depois do congresso feminista de 1928, o último celebrado em Portugal então, depois do de 1924, na primeira vaga feminista, a das mulheres republicanas. Também se criou o Centro de Documentação Feminista na nossa sede e um fundo digital especializado nos estudos sobre as mulheres e os feminismos, alojado no portal lusófono “Casa Comum”, dirigido pela Fundação Mário Soares ( www.casacomum.org ), onde, para além do arquivo da UMAR, há documentação da história das resistências africanas e de Timor Leste. Na mesma linha da memória e documentação participamos num projeto europeu da história dos feminismos, o “Projeto FRAGEN”, que desembocou numa base de dados sobre os documentos mais importantes do feminismo europeu ( www.fragen.eu ). No seguimento chegamos ao projeto “Memória e Feminismos” (http://www.cdocfeminista.org/index.php/pt/projecto-memorias-e-feminismos-1 ), cuja ideia partiu de um sonho antigo da nossa presidente, Maria José Magalhães, professora na Universidade do Porto e especialista em histórias de vida. Através da recolha de histórias de mulheres, este projecto dá a conhecer os seus percursos emancipatórios. Até agora foram trabalhados e divulgados em livros e vídeos, testemunhos de mulheres de vários distritos do país incluindo as ilhas da Madeira e dos Açores. São mulheres de várias faixas etárias, de diversas origens étnicas, com variadas profissões, com especial foco naquelas que desempenharam profissões consideradas masculinas, mulheres da resistência antifascista, do campo, da cidade, sindicalistas… Todas mulheres comuns mas com um percurso emancipatório que é uma inspiração para todas. Já fizemos sessões públicas em que vimos raparigas de vinte anos emocionarem-se com os discursos empoderados de mulheres de oitenta.
Que ligações tem tido a UMAR com a Galiza?
As ligações mais informais vêm do início da UMAR, quando algumas companheiras, pela sua atividade política, tinham simpatias com companheiras do BNG. Por essas ligações, mais pessoais do que políticas, estiveram no nosso centro CCIF/UMAR em 2012, Marica Campo e Pilar Garcia Negro com uma sessão sobre Rosalia de Castro. Também tivemos ligação através da Marcha Mundial das Mulheres, participando nos encontros e marchas internacionais de Vigo em 2004 e 2008. Em 2005 houve uma ação europeia onde fizemos uma passagem de testemunho duma “manta da solidariedade” entre Portugal e a Galiza através do rio Minho. Já tivemos uma companheira galega na direção da UMAR, Lucia Teixeiro. Adicionalmente, fizemos várias atividades em colaboração com o Centro de Estudos Galegos da Universidade Nova de Lisboa durante o leitorado de Isaac Lourido: sessões com a Maria Reimóndez, a Monste Penas, da Universidade de Santiago, que nos falou de literatura infantojuvenil no estado espanhol e com a Luzia Oca que nos falou da comunidade cabo-verdiana de Burela. Estas iniciativas permitiram-nos conhecer melhor a Galiza e personalidades contemporâneas. Do ponto de vista pessoal, despertou-me para a questão galega, que não é muito falada em Portugal, e passei a acompanhar a imprensa alternativa, como o Diário Liberdade. Não sabia da situação de opressão da língua, uma língua que está na raiz do português, enorme, com expressão mundial, e que na Galiza está em risco de desaparecer, mesmo aqui ao lado. Fico indignada com a indiferença de Portugal e com a passividade das instituições. O feminismo da UMAR não é só uma questão homem-mulher, que já é imenso, é uma questão de liberdade e por isso defendemos a causa galega e qualquer outro movimento contra a opressão.
Tinhas conhecimento do reintegracionismo?
O primeiro conhecimento que eu tive da Galiza foi numa viagem que fiz com os meus pais, tinha eu treze anos. Na altura li numa parede na Corunha “Galiza com Portugal” e achei aquilo muito estranho. Ninguém no mundo quer ser português! Ouvi falar de reintegracionismo só quando conheci o Isaac Lourido. Lembro que quando fizemos a sessão com a Maria Reimóndez eu fiz um comentário que os fez rir: “A Galiza é o único sítio em que um português é bem tratado”. Nessa viagem em miúda, estive numa loja a tentar falar em “portunhol”, quando o comerciante me respondeu para falar em português. Isso só acontece na Galiza. Julgava eu que ninguém no mundo queria saber do português para nada. Apercebi-me assim de uma tensão existente, mas não conseguia desvendar o que estava por detrás. Agora com a internet é mais fácil ter a informação dos porquês do movimento reintegracionista.
Neste último ano criaste com outras companheiras a associação Femafro- Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afro-descendentes em Portugal, que também esá presente no encontro.
A razão da imediata adesão à Femafro advém da minha história pessoal, da minha identidade. Sinto-me parte duma família portuguesa atípica tanto por opções políticas, com mulheres com uma trajetória de emancipação, como por origens. Da parte de minha mãe são portugueses de diferentes zonas do país e da parte de meu pai tenho origens em Portugal, em Moçambique e em Goa (Índia). Os meus avós vieram de Moçambique nos anos 1940 e cá ficaram. E Portugal para mim é já ele um mosaico. Eu tenho um aspecto mestiço e sempre cresci com as pessoas a perguntarem-me donde é que eu era. Para mim a “mistura” da minha família é natural e só à medida que fui crescendo é que me apercebi de que eu não era a norma e que sentia a pressão de me ter de definir, aquele repetido… “mas afinal tu és de onde?”. Sentia a inquietação das pessoas à espera de que me definisse pela resposta que elas queriam ouvir, o que me parece absurdo. Há algum tempo que comecei a perguntar-me o que é que sentiriam outras pessoas na minha situação. Há associações de imigrantes, mas eu não sou imigrante. Tenho a cor, mas nunca vivi em África. Os movimentos antirracistas focam-se muito, e bem, na questão dos documentos ou dos bairros sociais, mas não é a minha identidade. Também pesquisei por movimentos no Brasil ou nos Estados Unidos, mas os movimentos afro lá são diferentes. Eu sou uma pessoa enraizada, de Lisboa. Aderi à Femafro por ter uma orientação feminista e uma noção da afrodescendência mais lata.
E a lusofonia?
Não gosto muito do termo pela evocação do imaginário nacionalista português, dos lusitanos e de Viriato. Porém, também sou muito crítica com o facto de os partidos de esquerda portugueses darem pouca atenção à questão da política da língua. O discurso sobre a língua em Portugal costuma ser muito conservador e não me identifico com ele. O reintegracionismo, pelo contrário, tem uma visão da língua abrangente, cosmopolita, internacionalista, com a que me identifico. A minha lusofonia é um imaginário conceptual e linguístico colorido. Essa foi a memória que me transmitiu a minha avó do seu Moçambique. Na minha família tenho primos de quatro grupos étnicos, chineses, indianos de Goa, africanos e brancos, de diferentes religiões, e gostamos do elogio da mestiçagem. No nosso jantar de Natal ouvem-se várias línguas. Quando comecei a conhecer as famílias portuguesas achei estranho serem tão iguais. O meu microcosmos, esta diversidade e esta abertura, é a minha fantasia, a minha maneira de ver o mundo. Gostava de que a lusofonia fosse este espaço de grandes trocas em harmonia. Não sei se é a maneira africana de estar que me transmitiu a família do meu pai, ver a cada ser humano igual. Como acontecia em Moçambique na família da minha avó paterna, em que era sempre colocada mais uma cadeira e um prato à mesa à hora do almoço para que, se alguém aparecesse naquela altura à porta, a/o pudesses convidar e dizer-lhe: “Epá!, era mesmo de ti que eu estava à espera!”.