A MC é um assunto muito mais complexo do que a pressão mediática e de alguns lobbies querem fazer ver. Primeiro, é um “serviço” que se paga por isso estamos a discutir um assunto que entra dentro da agenda neoliberal que óbvia as questões relacionadas com a justiça e equidade para invocar a autonomia, o “livre consentimento” sem analisar as questões ligadas às desigualdades de classe social, gênero ou mesmo de localização geográfica.
A MC tornou um sistema de produção de bebês por encomenda que gera “mercados gestacionais” de caráter nacional e transnacional (a discussão sobre o tema opôs a alternativa altruísta à comercial. No entanto, no Reino Unido, com um modelo altruísta, deixou de haver oferta de barigas de aluguel, por isso a opção transnacional é o que parece prevalecer). Dado o volume de negócios atual e esperado, intermediários de todos os tipos submetem as mulheres gestantes a um regime de vigilância e disciplinamento contrário à noção de liberdade.
No sistema patriarcal-capitalista em que a divisão social do trabalho é uma constante e no qual as instituições de todos os tipos discriminam não podemos deixar de considerar as questões reprodutivas em relação às desigualdades de sexo-gênero. Uma das questões a assinalar é que esta prática aparece como uma “saída de trabalho”, apenas para as mulheres, que não precisa de qualificação; só submeter-se às regras do jogo das agências. Curiosamente o papel destas é invisibilizado frente ao papel do desejo do casal infértil e acho que não revelar a dimensão de negócio é uma armadilha.
A raça-etnicidade e a classe social são outros fatores a não deixar fora ao analisar este tema. Em países pobres serão as mulheres de cor as portadoras da carga genética dos casais com dinheiro, em particular, de muitos casais ocidentais brancos. Mulheres escuras que dão à luz criaturas loiras. Os ideais da pureza de raça, uma ideologia mais que despreziável, aparescem por trás do desejo do “filho próprio”.
Outro dado muito a considerar é que nas propostas que vamos conhecendo, a mulher contratada não poderá, se assim o decidir, abortar. Este aspecto, acho, dá no alvo porque não se está aqui a falar de ampliar a gama dos direitos reprodutivos mas sim de cernalos. A lógica subjacente é que já foi feito o investimento econômico no processo e por isso a mulher ficaria em dívida com o casal contratante e a agência.
A possível discapacidade, ou doenças, da criatura merece também atenção. Costuma-se fazer “culpada” desta circunstância às gestantes por não seguir as orientações médicas. O contrato neoliberal leva-se mal com as contingências do processo de gestação e parto em que as mulheres gestantes são submetidas a cesarianas para minimizar riscos. Isto leva a nos ter de perguntar sobre hipermedicalização e sobre violência obstétrica. Mais desconhecidos e onde há mais secretismo são os tratamentos psicológicos para a mãe uterina não gerar vínculos com bebê.
Face à visão compracente e idílica que se apresenta da maternidade comercial a declaração do Parlamento Europeu contra esta prática deixa clara a necessidade de pôr freio à mercantilização dos corpos femininos. No caso da maternidade comercial as analogias com o processo de produção, “fábricas de bebês”, são evidentes e a cousificación das mulheres gestantes não pode ser considerada como um avanço da liberdade, mas como um retrocesso para a escravidão.
O mercado deve ter limites, se não lhos impomos, o neoliberalismo acabará com o caráter inalienável da humanidade, ou seja, a dignidade das pessoas. Algo que é preciso proteger sem distinção de gênero, classe ou raça.
Paula Rios Curbeira
[Activista das Mulheres Nacionalistas Galegas]
Artigo publicado no Número 41 da Revista Luzes na seção debates intrépidos