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Diário Liberdade
Quinta, 08 Dezembro 2016 20:08 Última modificação em Domingo, 11 Dezembro 2016 11:12

O recuo dos intelectuais Destaque

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/ Batalha de ideias / Fonte: Lavra Palavra

[Ellen Meiksins Wood, via Jacobin Magazine, traduzido por Gabriel Landi Fazzio] Ellen Meiksins Wood via um grande perigo na relutância dos intelectuais de hoje em criticar o capitalismo.

 “A morte de Ellen Wood em 14 de janeiro representa uma imensa perda para os socialistas em todos os cantos. Como contribuinte frequente do Socialist Register desde seu primeiro ensaio em 1980, coeditora especial do volume de 1995 Porquê Não Capitalismo, e membro do coletivo editorial do Register de 1996 a 2009, a profundidade de seu comprometimento com o socialismo, originalidade teórica e percepção acurada podem ser medidas desse excerto de seu ensaio sobre “Os usos e abusos da ‘sociedade civil”.


Vivemos em tempos curiosos. Justamente quando intelectuais da esquerda no ocidente têm a rara oportunidade de fazer algo útil, se não realmente histórico, eles – ou grandes porções deles – estão em pleno recuo. Justamente quando reformadores na União Soviética e no Leste Europeu buscam no capitalismo ocidental paradigmas de sucessos econômicos e políticos, muitos de nós parecer abdicar do papel tradicional da esquerda ocidental como crítica do capitalismo. Justamente quando mais do que nunca precisamos de um Karl Marx que revele o funcionamento interno do sistema capitalista, ou de um Friedrich Engels que exponha a feia realidade “no chão”, o que temos é um exército de “pós-marxistas” cuja principal função é, aparentemente, afastar conceitualmente o problema do capitalismo.

A despeito da diversidade corrente de tendências teóricas na esquerda e seus variados meios de dissolver conceitualmente o capitalismo, elas frequentemente compartilham um conceito especialmente útil: “sociedade civil”. Embora sejam construtivos seus usos em defesa das liberdades humanas contra a opressão estatal, ou em decifrar um terreno de práticas sociais, instituições e relações negligenciado pela “velha” esquerda marxista, “sociedade civil” está agora perigando se tornar um álibi para o capitalismo.

A concepção de Gramsci de “sociedade civil” pretendia ser, sem ambiguidade, uma arma contra o capitalismo, não uma acomodação a ele. A despeito do apelo à sua autoridade, que se tornou uma necessidade básica para o “novo revisionismo”, o conceito em sua utilização corrente não mais tem esse inequívoco intento anticapitalista. Ele adquiriu agora todo um novo rol de significados e consequências, algumas muito positivas para os projetos emancipatórios da esquerda, outras bastante distante disso.

Os dois impulsos contrários podem ser resumidos deste modo: o novo conceito de sociedade civil sinaliza que a esquerda aprendeu as lições do liberalismo sobre o perigo da opressão estatal, mas nós parecemos estar esquecendo as lições que outrora aprendemos da tradição socialista acerca da opressão da sociedade civil. Por um lado, os defensores da sociedade civil estão fortalecendo nossa defesa de instituições não-estatais e relações contrárias ao poder do estado; por outro lado, eles tendem a enfraquecer nossa resistência às coerções do capitalismo.

A “sociedade civil” [1] deu à propriedade privada e seus possuidores um comando sobre as pessoas e suas vidas cotidianas, um poder sem a quem responsabilizar, que muitos dos velhos estados tirânicos teriam invejado. Aquelas atividades e experiências que não são abrangidas pela estrutura de comando imediato da iniciativa capitalista, ou pelo poder político do capital, são reguladas pelos ditames do mercado, a necessidade de competição e lucratividade.

Mesmo quando o mercado não é, como comumente ocorre nas sociedades capitalistas avançadas, meramente um instrumento de poder para conglomerados gigantes e corporações multinacionais, ele ainda é uma força coercitiva, capaz de sujeitar todos os valores, atividades e relações humanas a seus imperativos. Nenhum déspota antigo poderia ter esperado penetrar as vidas pessoais de seus súditos – suas escolhas, preferências e relacionamentos – nos mais abrangentes e menores detalhes, não apenas no local de trabalho mas em cada canto de suas vidas.

Coerção, em outras palavras, tem sido não apenas uma desordem da “sociedade civil”, mas um de seus princípios constitutivos. A realidade histórica tende a minar as distinções simples requeridas pelas teorias correntes que nos pedem para tratar a sociedade civil como, ao menos em princípio, a esfera da liberdade e da ação voluntária, a antítese do princípio coercitivo irredutível que pertence intrinsecamente ao estado.

Essas teorias, é claro, reconhecem que a sociedade civil não é um reino da perfeita liberdade e democracia.  Ela é, por exemplo, marcada pela opressão na família, nas relações de gênero, no local de trabalho, por atitudes racistas, homofobia, e assim por diante. Mas essas opressões são tratadas como disfunções na sociedade civil. Em princípio, a coerção pertence ao estado enquanto a sociedade civil é onde a liberdade está enraizada, e a emancipação humana, de acordo com esses argumentos, consiste na autonomia da sociedade civil, sua expansão e enriquecimento, sua liberação do estado e sua proteção pela democracia formal.

O que tende a desaparecer de vista, novamente, são as relações de exploração e dominação que irredutivelmente constituem a sociedade civil, não apenas como alguma desordem estranha e corrigível, mas como a própria essência, a estrutura particular de dominação e coerção que é específica ao capitalismo como uma totalidade sistemática.

O que é alarmante nesses desenvolvimentos teóricos não é que eles violam algum preconceito doutrinário marxista no que diz respeito ao status privilegiado da classe. É óbvio, todo o objeto de tal exercício é pôr de escanteio a classe, dissolvê-la em categorias genéricas que lhe neguem qualquer status privilegiado, ou mesmo qualquer relevância política em absoluto. Mas esse não é o problema real.

O problema é que teorias que não diferenciam – e, sim, “privilegiam”, se isso significa atribuir prioridades causais ou explicativas – entre variadas instituições sociais e “identidades” não podem lidar criticamente com o capitalismo em absoluto. A consequência de tais procedimentos é varrer a questão como um todo para baixo do tapete.

E para onde quer que vá o capitalismo, para lá vai a ideia socialista. O socialista é a alternativa específica ao capitalismo. Sem capitalismo, não temos qualquer necessidade do socialismo; podemos nos contentar com conceitos bem difusos e indeterminados de democracia que não se oponham especificamente a qualquer sistema identificável de relações sociais, em verdade, nós nem reconhecemos qualquer sistema assim. O que nos resta então é uma pluralidade fragmentada de opressões e uma pluralidade fragmentada de lutas emancipatórias.

Aqui está outra ironia: o que clama ser um projeto mais universalista do que o socialismo tradicional é na verdade muito menos. Ao invés do projeto universalista do socialista e a política integrativa da luta contra a exploração de classe, nós temos uma pluralidade de lutas particulares essencialmente desconectadas.

Isso é coisa séria. O capitalismo é constituído pela exploração de classe, mas o capitalismo é mais do que apenas um sistema de opressão de classe. É um implacável processo totalizante que molda nossas vidas em cada aspecto concebível, e todos lugares, não apenas na relativa opulência do norte capitalista.

Entre outras coisas, e mesmo pondo de lado o puro poder do capital, ele sujeita toda a vida social aos requisitos abstratos do mercado, através da mercantilização da vida em todos seus aspectos. Isso ridiculariza nossas aspirações a autonomia, liberdade de escolha e autogoverno democrático. Para socialistas, é moral e politicamente inaceitável seguir uma linha de raciocínio que torna invisível tal sistema, ou o reduz a uma de muitas realidades fragmentadas, justamente em um momento em que o sistema é mais difundido, mais global do que nunca.

Essa substituição do socialismo por um conceito indeterminado de democracia, ou a dissolução de relações sociais diversas e diferentes no interior de categorias genéricas como “identidade” ou “diferença”, ou concepções frouxas da “sociedade civil”, representa uma rendição ao capitalismo e suas mistificações ideológicas.

Certamente tenhamos diversidade, diferença e pluralismo; mas não esse tipo de pluralismo indiferenciado e desestruturado. O que precisamos é de um pluralismo que de fato reconheça diversidade e diferença – e isso significa não apenas pluralidade ou multiplicidade.

Isso significa um pluralismo que também reconheça realidades históricas, que não negue a unidade sistêmica do capitalismo, que possa nos dizer a diferença entre relações constitutivas do capitalismo e outras desigualdades e opressões com diferentes relações com o capitalismo, um diferente lugar na lógica sistêmica do capitalismo e, por conseguinte, um diferente papel nas lutas contra ele.

O projeto socialista deveria ser enriquecido pelos recursos e visões dos novos movimentos sociais, não empobrecido recorrendo-se a eles como uma desculpa para desintegrar as lutas contra o capitalismo. Nós não devemos confundir o respeito pela pluralidade das experiências humanas e lutas sociais com uma completa dissolução da causalidade histórica, onde não há nada senão diversidade, diferença e contingência, sem estruturas unificadoras, sem processo lógico, sem capitalismo e, portanto, nenhuma negação a ele, nenhum projeto universal de emancipação humana.


[1] [Nota do tradutor] Em Marx, o que muitas vezes se traduz como “sociedade civil” é, numa tradução mais literal, “sociedade burguesa”.

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