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Diário Liberdade
Quarta, 28 Dezembro 2016 13:17 Última modificação em Sexta, 06 Janeiro 2017 09:37

2017: o que o capitalismo tem a oferecer?, com Edemilson Paraná Destaque

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/ Reportagens / Fonte: Diário Liberdade

Conversamos com o sociólogo Edemilson Paraná* sobre os possíveis cenários do capitalismo global no ano que se inaugura. O entrevistado é autor do livro A finança digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional (2016), fruto de sua pesquisa de mestrado na Universidade de Brasília, e também publica intervenções sobre economia e política em sítios como Blog da Boitempo e Congresso em Foco. Atualmente continua seus estudos analisando a chamada ascensão chinesa na geopolítica e economia internacional.

Diário Liberdade - A eleição de Trump lançou muitas dúvidas sobre o futuro do capitalismo global. De fato, estaríamos diante de um terremoto em termos geopolíticos e econômicos, ou tudo não passa de especulações?

Paraná - Vejo a eleição de Trump mais como consequência do que como causa das transformações que os EUA e o mundo vem passando nos últimos anos. Colocando de forma bastante resumida, a verdade é que o mundo ainda não saiu devidamente da crise de 2008. E começa a ficar cada mais evidente que essa saída será mais dramática do que se imaginou. O Brexit, a eleição de Trump, a ascensão da extrema direita em várias partes do mundo, a grave crise política e econômica que vivemos Brasil... Esse é certamente um dos elos mais significativos a unir todos esses eventos perturbadores, e que apenas aparentemente não guardam relação entre si. Naturalmente, isso se expressa de diferentes formas nos distintos países, culturas, histórias e conjunturas particulares, mas este – o prolongamento da crise e seus desdobramentos – é um fio condutor importante.

Diário Liberdade - Crise financeira, crise econômica, crise fiscal... alguns já usam o termo estagnação secular. Que tipo de governança o capitalismo global pode oferecer em 2017? E que tipo de reações políticas veremos?

Paraná - O resgate trilhionário, logo após a crise, feito pelos Estados de bancos e instituições financeiras que, em grande parte, foram os causadores do problema, não veio acompanhado de uma reforma ou reconfiguração do sistema financeiro internacional, que segue operando – em sua relação com Estado e sociedade – de forma, basicamente, análoga ao que era antes. A explosão do endividamento soberano que estes resgates produziram, equivocadamente respondidos com a adoção de políticas de austeridade em diferentes partes do globo, e que tem feito agravar consideravelmente o problema, está diretamente vinculado ao atoleiro econômico em que se enfiou a Europa do Euro e os países capitalistas centrais atualmente. A ordem do dia passou a ser, então, cortar o que resta de bem-estar, direitos trabalhistas, compensações, salários, etc., para seguir girando essa roda viva de ganho financeiro especulativo, como se não houvesse amanhã. O efeito disso é uma queda acentuada na demanda global. Seguindo essa toada, a China – que vinha sendo a âncora do crescimento mundial até então – desacelera e busca reconfigurar seu padrão de acumulação.

Em consequência, à América Latina resta o infortúnio de uma situação desfavorável, em que o preço de seus produtos primários não encontra mais a dimensão que teve há alguns anos, diminuindo as margens para políticas redistributivas sem um enfrentamento de classes aberto – e é justamente o acirramento desse conflito que produz as tensões que temos presenciado por aqui. E assim se fecha o círculo modorrento da economia globalizada atualmente, a tal da “estagnação secular”. Agora some a isso transformações de médio prazo, que vem ocorrendo nas últimas décadas, como a configuração de uma liberdade quase irrestrita para a circulação de capital especulativo, a transnacionalização, deslocalização e reestruturação produtiva e, junto destas, transformações tecnológicas disruptivas, a reconfiguração do papel dos Estados na condução da política econômica, a enorme concentração de capital por meio de fusões e aquisições, a imensidão da evasão fiscal e do operativo dos paraísos fiscais, e pronto... você tem um belo barril de pólvora de recessão, desigualdade e concentração de renda e poder que não aponta em quase nada para um futuro muito aprazível.

Nesse jogo, os Estados Unidos têm uma situação relativamente mais favorável porque têm a moeda global e ainda coordenam o sistema monetário e financeiro internacional, para além, naturalmente, de ainda serem a maior economia e a maior potencia bélica do planeta, daí suas margens de manobra serem consideravelmente maiores. No entanto, estão amarrados a esse mesmo atoleiro. Não há muito para onde fugir.

Há quem diga que uma nova grande crise vem aí e que, dessa vez, os Estados estarão menos aptos a respondê-la. Há ainda economistas bastante sérios que vão além, dizendo que o capitalismo atualmente não tem mais uma saída para estes problemas que eu elenquei. Não sei se estou completamente de acordo com isso, mas há aí um bom ponto. Quais seriam as saídas reais? Uma guerra global? Isso poderia aniquilar o planeta. Uma nova revolução tecnológica? O que tem surgido até aqui – a chamada quarta revolução industrial, que integra distintas formas de tecnologias como biotecnologia, robótica, nanotecnologia, informática, novos materiais, etc. – não aponta para algo expressivo o suficiente para resolver essa enorme crise de acumulação. A expansão da China? O mundo aguentaria, face aos desafios ambientais que teremos todos de equacionar, uma elevação tal do padrão de consumo no sudeste asiático – onde vive a maior parte da população mundial? Se haverá ou não uma saída eficaz, é difícil dizer, porque história está sempre em aberto. Mas esse prospecto merece, sim, atenção.

Esse processo atual de desmanche da economia mundial tem produzindo desdobramentos preocupantes (mas também interessantes). A história acelerou. O centro político de outrora parece estar perdendo lugar, as instituições multilaterais mostram cada vez mais sua fraqueza e inépcia, mas, ainda assim, pouco indica que uma transformação sistêmica, de grande monta, vem aí. Veja o caso da ideologia neoliberal. É um fracasso retumbante, a olhos vistos, mas ainda assim segue sendo aplicado de modo implacável em vários lugares. Parece que estamos no tal interregno de que dizia Gramsci, em que o velho morreu, mas o novo está um tanto longe de dar as caras. Então as coisas devem seguir mais ou menos nesse ritmo de cortes e ataques acentuados contra os mais pobres, maiorias sociais e minorias políticas, com um consequente acirramento do conflito social e aprofundamento das tensões geopolíticas. A reação da revolta popular virá, mas, com uma esquerda enfraquecida a nível mundial e incapaz, até aqui, de oferecer respostas à altura, o cenário se torna um pouco mais preocupante. Contra as tendências regressivas e obscurantistas que tem surgido, a grande tarefa de uma esquerda conectada com o seu tempo é canalizar de modo renovado, progressivo e produtivo essa insatisfação. Não será nada fácil.

Diário Liberdade - A atual troca de farpas entre Trump e a China, envolvendo a delicada questão de Taiwan, por exemplo, simboliza um novo nível de tensão entre essas duas economias que configuraram os contornos da última fase de mundialização do capital?

Paraná - Acho muito cedo para dizer. Penso que há muito de blefe na atuação performática de Trump. O grau de interdependência que vem se configurando nas últimas quatro décadas entre essas duas economias é muito grande. É uma relação de cooperação-competitiva ou competição-cooperativa. É difícil, dado o grau de integração que se alcançou, uma reconfiguração brusca, e a curto prazo, desse arranjo. Uma escalada, nesse nível, das tensões faria pouco sentido para ambos os países. Não interessa ao mainstream estadunidense, seu sistema financeiro, suas empresas. Pelo menos não agora. Então o mais provável é que essa balança penda mais para o lado da competição do que da cooperação, mas nada que vá muito além disso por ora. A China, por sua vez, manifesta sua tradicional preferência por movimentos e ações estratégicas de médio e longo prazo. Sua prioridade é alcançar autonomia tecnológica e financeira e, claro, junto disso, militar. Mas o tem feito de maneira cuidadosa, gradual e pragmática, ainda que firme. Os EUA, naturalmente, sabem disso, e vem buscando responder à sua maneira. A administração Obama respondia ao seu modo, reforçando o globalismo liberal dirigido por Washington – o TPP, por exemplo. Trump buscará fazê-lo de outra forma. Para isso, terá de lidar com os grandes e complexos interesses dentro de seu próprio país. Tudo somado, é difícil cravar a real dimensão das mudanças que virão neste aspecto.

Diário Liberdade - O que quer a China hoje?

Paraná - A China já tem o segundo maior orçamento bélico do planeta e caminha para ser a maior economia (já o é em paridade pelo poder de compra). Em sentido mais alargado, o país quer, então, recuperar o esplendor de outrora (ser admirado e respeitado pelo resto do mundo), nunca mais estar vulnerável a ponto de sofrer algo como o que chamam de “o grande século de humilhações” a que foi submetido sob o julgo das potências ocidentais e, sobretudo, garantir alguma condição de vida para sua população, com manutenção da estabilidade e integridade social, étnica, territorial e política – o que não é qualquer coisa para uma país com suas características. Então, de modo a colocar isso em prática, a prioridade estratégica do “Império do meio” é alcançar autonomia tecnológica, soberania econômica e financeira e, claro, junto disso, bélica. Os desafios postos a isso são enormes: a situação econômica global, a escassez de terras e recursos naturais, os problemas ambientais, a alta alavancagem, certa ineficiência em alguns setores, gestão de uma população 1,3 bilhão de pessoas e do poder político no país, que se torna cada vez mais complexo, contraditório e multifacetado, entre outras. Mas a China tem um histórico de inovação, experimentalismo, gradualismo e resiliência que é surpreendente. O salto tecnológico, produtivo, econômico que obteve nas últimas quatro décadas não tem precedentes na história da humanidade.

O país passa agora por transformações importantes. Transformações políticas, econômicas, culturais, demográficas. A mais relevante delas é a paulatina reconfiguração do seu modelo de desenvolvimento e gestão da economia. Isso significa, vagamente, como os próprios chineses apontam, caminhar em busca de uma “sociedade harmoniosa” e uma nação “moderadamente próspera”, vinculada a um “estado de bem-estar com características chinesas”. Pondo em outros termos, deixar aos poucos de ser uma economia baseada centralmente na exportação de produtos baratos com enormes ganhos de escala e baixos salários para, adicionalmente, produzir, de modo autônomo, tecnologia própria, com uma cadeia de inovações, marcas e produtos próprios, que estejam mais acima nas cadeias globais de valor, algo que já vêm colocando em prática. Junto disso, ter um sistema financeiro mais profundo e complexo, em que a liberdade para a circulação de capital privado jogue um papel maior, e suas instituições financeiras e sua moeda, junto de suas empresas, tenham maior penetração e influência global. Tudo somado, a China tem ampliado as margens para a atuação privada e, aos poucos, diminuído o poder discricionário de coordenação econômica do Estado em várias áreas. O que configura, especialmente na visão de certos setores da burocracia, alguns riscos.

A integridade e estabilidade de seu território é uma grande preocupação. Então a política externa tem, pragmaticamente, se baseado em uma esfera mais regional de interesse, sem intervenção ativa em conflitos em outras partes. Em termos de atuação econômica, o avanço de sua presença na Ásia se dá por meio da exportação de capitais e configuração de uma cadeia produtiva regional. Na África e América Latina tem se dado basicamente em torno da obtenção de terras, matérias primas e recursos naturais (uma grande necessidade chinesa) e no apoio a grandes projetos de infraestrutura – por onde entra também o seu braço financeiro. Os BRICS reforçam esses interesses, mas o destaque é para o megaprojeto One Belt, One Road – a chamada Nova Rota da Seda, que envolve mais de 20 países da Ásia à Europa, e bilhões em investimentos, algo que pode ser um importante veículo para exportação de capital e projeção do poder chinês.

Internamente, a estabilidade e manutenção do poder político do partido é a prioridade. Diferentes interesses econômicos começam a se expressar, as largas margens de autonomia relativa do Estado frente à “burguesia” – industrial e financeira – diminui aos poucos e os salários e o padrão de consumo da população vêm aumentando. Junto disso, claro, a desigualdade, a concentração de renda e as tensões sociais no campo e na cidade, cada vez mais recorrentes, como as greves, por exemplo. Algumas tensões importantes vêm sendo observadas também no interior do partido e, desde a nomeação de Xi Jiping para o comando da nação, parecem estar sendo resolvidos de modo mais duro e enérgico, por meio de grandes esforços de “combate à corrupção”.

Diante de tudo isso, é importante observar que a importância do Estado e do partido na coordenação econômica – das empresas ao setor financeiro – ainda é enorme. Há controle de capitais, das correntes de financiamento (o sistema bancário é basicamente controlado pelo Estado) e dos preços macroeconômicos como câmbio, taxa de juros e salários. Todas essas mudanças são, claro, graduais e não são inexoráveis, podem caminhar, a depender dos desdobramentos dentro e fora do país, para outras direções. Trata-se de mudanças monumentais em um país monumental com uma população monumental. Movimentos muito bruscos de mudança poderiam gerar crises e instabilidades indesejáveis.

Diário Liberdade - Em A finança digitalizada você trata do entrelaçamento entre inovações tecnológicas e a ampliação da esfera financeira no capitalismo atual. Na sua opinião, sob quais formas essa relação vem se desenvolvendo hoje? Quais fenômenos relevantes você indicaria sobre o tema e que não tiveram tempo ou espaço de entrar no livro?

Paraná - Esses desdobramentos se dão em inúmeras direções que, lamentavelmente, não pude abordar à época por várias razões de tempo, espaço, escopo.

Rapidamente cabe notar que, aos poucos, ainda que de modo incipiente, e sob ideologia da “autorregulação”, a regulamentação começa a responder a esses desenvolvimentos por meio de normativas que, de modo interessante, versam, às vezes, sobre a dimensão do próprio funcionamento técnico desses mecanismos. Isso se deu também por conta da pressão de distintas classes de investidores que estavam sendo prejudicados ou não estavam sendo diretamente beneficiados por esses avanços em alta velocidade nas negociações. Isso é muito elucidativo não só das contradições e conflitos internos que permeiam o complexo da Finança Digitalizada, mas também porque atacam certo mito – que vem, em contornos distintos, da direita e da esquerda – da inevitabilidade ou incontrolabilidade desses mecanismos. Quer dizer, vai se desenhando uma briga entre os supostos controle e descontrole sistêmico, regulação e desregulamentação, em que cada ator tentar puxar o ponto ótimo dessa disjuntiva sócio-técnica e institucional para o seu lado. Depois de escrever o livro, venho percebendo a intensificação dessa lógica.

Outra coisa que vem avançando desde então é aposta ideológica nas tecnologias financeiras como uma forma de contornar os becos em que a economia global entrou, e reconfigurar, como um todo, a relação sistêmica entre bancos, governos e sociedades. Destaque para a celebração e o entusiasmo em torna das chamadas fintechs (as startups de tecnologia financeira e bancária), do Blockchain e das moedas digitais, como o Bitcoin. A ideia é que elas possibilitem uma gestão mais previsível, transparente e, sobretudo, sem a necessidade de intervenção do Estado e dos bancos centrais nos fluxos monetários e financeiros. Eu cheguei a tratar no livro desse “fetichismo tecnológico” – a crença no poder quase irrestrito de uma tecnologia neutra, autônoma e apartada de sua forma social de resolver problemas econômicos e políticos que são cultural e historicamente determinados –, mas, diante desses avanços, essa discussão certamente ganha contornos ainda mais interessantes.

Por fim, algo que caberia tratar de modo mais detido em um eventual desenvolvimento do trabalho é a relação entre essas tecnologias financeiras e mecanismos de gestão da Finança Digitalizada, que confiam sobremaneira na matematização e nos algoritmos, e outras tecnologias, mecanismos e formas de gestão e controle da vida biológica e social, como o sequenciamento do DNA e as biotecnologias e, de modo ainda mais claro, os sites de redes sociais e mecanismos de buscas e classificação de conteúdos na internet. Uma longa tradição de teóricos, filósofos e cientistas sociais tem apontado a vinculação entre padrão de acumulação de capital e a formas particulares de gestão e controle da vida social. Explorar, então, a relação entre a Finança Digitalizada e essas formas contemporâneas de controle, gestão e vigilância de modo mais detido certamente poderia nos ajudar a levar para mais além as reflexões sobre exploração, dominação e lutas políticas com potencial emancipatório na atual quadra histórica.

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*Edemilson Paraná é doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Foi pesquisador-bolsista no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no projeto Sistema Monetário e Financeiro Internacional (2015-16). Além de artigos publicados nas áreas economia política, sociologia e teoria social, é autor do livro “A finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional” (Ed. Insular, 2016).

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