Ainda antes de lançar as Teses sobre Feuerbach e dar contornos mais acabados em 1845 para a concepção materialista da história, Karl Marx em um dos textos publicados nos anais franco-alemães, Sobre a Questão Judaica, dizia que “toda emancipação é uma recondução do mundo humano ao próprio homem”. A partir desse ponto de vista, podemos analisar o período que antecede a crise de 2008 é marcado pela mais aguda separação entre o homem e a sua vida, a mais completa reificação, coisificação do mundo, a mais agressiva negação capitalista de toda emancipação.
O grau da ofensiva no plano ideológico do capital contra a classe trabalhadora é praticamente sem paralelos. De certa forma, nos fazem lembrar o título de uma das mais importantes e controversas obras de György Lukács: foram décadas da “Destruição da Razão”. O filósofo húngaro escrevia no começo da década de 1950 sobre a história do irracionalismo na Alemanha, de Schiller à Hitler, mas terminou sua obra com um chamado de atenção que dizia que o eixo filosófico e ideológico do irracionalismo passaria da Alemanha derrotada aos Estados Unidos fortalecido com os resultados da Guerra. Assim dizia:
"Se tivermos em conta que, desde o término da Segunda Guerra Mundial, a hegemonia da reação imperialista mundial tem sido passada cada vez mais para as mãos dos Estados Unidos, o qual vem nesse sentido a substituir a Alemanha, seria necessário, na realidade, escrever uma história da filosofia naquele país para colocar a manifestação, com a mesma precisão com que temos feito com respeito a Alemanha; de onde provém, do ponto de vista social e no plano espiritual, as atuais ideologias do “século americano”, onde seria preciso buscar as raízes sociais e espirituais destas ideologias atualmente em voga (LUKÁCS, 1959, p. 618 – tradução nossa)"
Já no começo dos anos 1950, também o filósofo alemão Theodor Adorno torna pública suas reflexões sobre os Estados Unidos, escritas também no período da guerra: a obra Minima Moralia.
Nela, Adorno busca desenvolver em forma de aforismo a crítica que vai da vida cotidiana aos valores mais profundos e ideológicos da sociedade americana. Eis aqui um certo paradoxo: em algum sentido, ainda que seja bastante crítico da obra de Lukács [1] , Adorno contraditoriamente parece desenvolver por outras vias, no plano americano, algo da pista que Lukács havia indicado ao final de seu livro (reproduzido acima). Nessas reflexões de Adorno, abordam-se distintos traços do americanismo e a reificação da vida, mas ainda não como a expressão do “irracionalismo” no sentido lukacsiano, da análise da tradição filosófica do país – já que nos EUA, conforme o próprio Adorno apontava, a tradição filosófica estava muito mais influenciada pelo pragmatismo, o positivismo e o estrutural-funcionalismo.
Mas no sentido que propõe Lukács para pensar o pós-guerra e as raízes sociais e teóricas do “século americano”, a reflexão de Adorno é densa e implacável contra as formas de manifestação das contradições do capital, que estava imbuído ainda de certa dose de entusiasmo burguês e incentivado pelos anseios da afirmação do sistema na "guerra fria”. Acontece que tanto nas indicações de Lukács, quanto no desenvolvimento de Adorno, o “americanismo” que estão criticando, o que seria o centro filosófico e material do irracionalismo no período do pós-guerra, é ainda de um capitalismo advindo do “boom” econômico que pode ocorrer, por um lado, pela destruição das forças produtivas na guerra e, por outro lado, da evolução tecnológica e produtiva, tendo sua marca simbólica o “toyotismo japonês”.
Para exemplificar o raciocínio adorniano, podemos retomar uma das passagens de sua obra de 1951, quando joga com as palavras num dos aforismos que nomeia como “Entre sem bater”, no qual expressando como essa reificação invade o cotidiano diz:
“A tecnificação torna entrementes os gestos precisos e rudes, e com isso os homens. Ela expulsa dos movimentos toda hesitação, toda ponderação, toda urbanidade. Decisivas são as exigências irreconciliáveis e como que a-históricas das coisas. Desaprende-se a fechar uma porta com suavidade e cuidado e mesmo assim com firmeza. Quando são portas de carros e geladeiras, é preciso batê-las (ADORNO, 2008, p. 36)”
Ou seja, do ponto de vista da irracionalidade ideológica e material, o capitalismo do pós-guerra possuía a marca de buscar nos países imperialistas aumentar as taxas de mais-valia relativa (a exploração capitalista pela maquinaria), ou seja, aumentar muito a produtividade do trabalho e, por um momento, combinar com uma faceta do “estado de bem-estar social”. Eram os tempos de “american way of life”, em que a reificação e tecnificação da vida combinavam-se com uma ode histérica do estilo de vida americano. O capitalismo ainda buscava se apresentar como “superior” na disputa da Guerra Fria, e o fazia baseando-se no último fôlego que teve após a destruição da guerra.
Antes dessa crítica de Adorno, ainda na década de 1930, Antonio Gramsci também versava sobre o problema do Americanismo e fordismo, em um de seus Cadernos do Cárcere. Interessante que justamente a crítica da Gramsci é introdutória dessa reflexão, pois estabelece a conexão entre a hegemonia na fábrica fordista e as formas mais cotidianas da dominação, a hegemonia no lar, nos costumes e até na sexualidade do trabalhador, conforme escreve:
“Deve-se observar como os industriais (especialmente Ford) se interessam pelas relações sexuais de seus empregados e, em geral, pela organização de suas famílias; a aparência de "puritanismo" assumida por este interesse (como no caso do proibicionismo) não deve levar a avaliações erradas; a verdade é que não se pode desenvolver o novo tipo de homem exigido pela racionalização da produção e do trabalho enquanto o instinto sexual não for adequadamente regulamentado, não for também racionalizado (GRAMSCI, 2001 p.252)”
Já no início da exposição de Gramsci nos Cadernos do Cárcere (CC22) o autor propõe-se a demonstrar o aprofundamento da racionalização da produção de modo a otimizar a produtividade da força de trabalho e a extração de mais-valor. Comparando-se com a nova fase no pós-Segunda Guerra, essa racionalização que foi sendo construída através da força, Gramsci sintetizou genialmente dizendo que essa "hegemonia nasce da fábrica e necessita apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia" (CC, 22, p.248).
Retomando, portanto, podemos dizer que no pós-guerra ganhava, além dessa determinação (a força) os contornos dos mais diversos mecanismos de “persuasão”, que vão desde altos salários, "benefícios sociais", ofensiva ideológica e política, além de habilidosa propaganda, centrando toda a vida dos operários na produção. Se quiser utilizar os termos de Gramsci, seria passar da conceituação “pura” de americanismo fordista para uma noção de “Estado integral” [2] .
O fato é que as crises, como as guerras e as revoluções, desnudam as verdadeiras relações e fazem tremer a arcaica estabilidade. As desventuras do irracionalismo pontuado por Lukács da vida americana, desenvolvida por Adorno em seus aforismos contra a minima moralia, não eram já as formas arcaicas verdadeiras da vida e do metabolismo capitalista, mas eram formas de transição à verdadeira “noite de trinta anos” do neoliberalismo, tendo sua raiz a crise de 1973. Como em todos os momentos decisivos do século XX e da época imperialista do capitalismo, ao não se oferecer uma alternativa proletária à decadência capitalista (que tem uma marca forte na tentativa derrotada de resistência em 1968), a crise econômica não levou ao debilitamento geral do capitalismo, mas a barbarização, exploração, opressão e “ideologização” (burguesa) cada vez mais extremas.
Foi nessa nova etapa aberta com as derrotas dos levantes operários e da juventude no final dos 1970 e anos 1980 e consumada com a restauração capitalista no leste europeu, período marcado simbolicamente com a queda do muro de Berlim, que encontramos as verdadeiras bases para mais que uma “destruição da razão”, mas uma perda do sentido histórico, consagrada ideologicamente na célebre apologia do “fim da história” de Fukuyama.
A ofensiva ideológica burguesa dos anos de neoliberalismo, com toda sua força nos anos 1990, era uma ofensiva reacionária no sentido forte e amplo da palavra. O imperialismo americano não pode com a crise dos 1970 obter uma reconstituição de um novo padrão de acumulação e uma vigorosa reconstrução de sua hegemonia: pelo contrário, víamos a postergação das consequências da crise em uma hiperfinanceirização e uma sobreacumulação de capitais que apenas serviram como máscara para o declínio da hegemonia norte-americana.
Nesse sentido, as ideias a serem colocadas na mesa nos anos 1990 não era da afirmação de um ideal burguês, da fortaleza do capitalismo, da reconstituição da família e seus sagrados princípios, do triunfo das benesses do capitalismo; a ofensiva só tinha um sentido negativo em relação a “utopia” comunista, ao marxismo, à classe trabalhadora e a perspectiva da revolução social. Não podia afirmar nada, apenas negar. Se no século XIX Hegel falava em “fim da história” por ter atingido a Razão seus limites no Estado racional com suas leis racionais, agora o fim da história dos anos 1990 era o fim da vontade, dos anseios, da alternativa...do sentido. Era, para jogar com as palavras, o “a destruição da paixão”.
Naturalmente o triunfalismo capitalista do neoliberalismo trouxe consequências profundas para a consciência de classe dos trabalhadores e afetou teórica e estrategicamente as organizações marxistas [3] . Escancarou-se ainda mais uma contradição sempre latente na realidade internacional: condições objetivas mais que concretas para uma transição ao socialismo e uma imensa debilidade subjetiva de tornar realidade essa transformação social.
Se o “espírito não pode viver sem a carne” é natural que essa ofensiva ideológica não poderia se manter indefinidamente, mas a tentativa das classes dominantes foi de postergar o máximo possível a organização da resistência dos trabalhadores. A primeira quebra da suposta estabilidade se deu já no final dos anos 1990, com a crise asiática e depois nas empresas “dot com”, a bolha da internet, que foi gestada no fetiche financeiro das empresas de alta tecnologia entre 1995 e 2000, e em março desse ano [2000] levou ao estouro da bolha e a crise ou mesmo bancarrota de importantes empresas. Parece que como um sintoma da crise que viria, já em 1999 se davam as manifestações de Seattle contra a Rodada do Milênio da OMC. A astúcia e a ironia da história é que voltava a aparecer (no plano global) as palavras de ordem anticapitalistas.
Os anos 2000, portanto, foram a combinação de, na aparência, um último suspiro na economia – com crescimento mundial baseado na recuperação parcial das taxas de lucro - e, na essência, a postergação da crise financeira e do enorme volume de capital fictício que havia sido controlada na bolha da internet, mas que estava gestando a avassaladora crise do setor imobiliário norteamericano. No entanto, até a chegada da crise já em 2007 e a “ruptura” de 2008, a economia mundial ainda seguia com seu parco equilíbrio instável em manifesto.
Ou seja, as soluções de ilusão econômica, artificialidade financeira, virtualidade monetária se escancaram como ilusões, artificialidades e virtualidades com o choque de realidade imposto pela crise. Esta é o reencontro entre o mundo real e o virtual, e a realidade capitalista, como apontamos, foi a da noite de trinta anos do neoliberalismo, da miséria ideológica, onde homens e mulheres encararam a vida como o incrível deserto do real.
Por isso o significado de 2008 foi decisivo para a história contemporânea, porque ainda sem uma débâcle catastrófica do conjunto da economia mundial à la anos 1930, teve uma importância material e foi um primeiro xeque em todo o “paradigma” ideológico anterior.
Hegel escreveu em seu prefácio aos Princípios da Filosofia do Direito que quando uma filosofia chega em um mundo já a anoitecer, é sinal que uma forma de vida envelheceu e não pode ser rejuvenescida, apenas reconhecida. Quando uma filosofia se torna pessimista, quando clama a “noite de 30 anos” neoliberal, é necessário uma reviravolta no coração do sistema para reembaralhar as cartas.
O anunciar dessa nova era não veio no cantar de um galo gaulês como indicava o jovem Marx, mas no grito de desespero dos economistas e acionistas da bolsa de valores, quando viram se anunciar a crise do banco de investimentos Lehman Brothers. A etapa da restauração burguesa e o neoliberalismo entravam definitivamente em crise.
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Notas:
[1] “A Destruição da Razão veio revelar-nos a destruição da razão do próprio Lukács. Com total desprezo pelo método dialético, o prestigiado mestre da filosofia dialética relacionava todas as correntes irracionalistas da filosofia recente com a reação e o fascismo, sem atentar, por outro lado, que, nas referidas correntes, em contraste com o que ocorre no idealismo acadêmico, o pensamento se erguia contra a coisificação da existência e da reflexão, cuja crítica fora precisamente obra sua. Para ele, Nietzsche e Freud convertiam-se, sem mais, em nazistas”. «Lukács y el Equívoco del Realismo». Para crítica lukacsiana a análise de adorno, ver “Lukács e a crítica da filosofia burguesa”, de José Paulo Netto e “A Destruição da Razão: 30 anos depois” de Nicolas Tertulian.
[2] Para uma boa introdução ao tema, ver capítulo 3 da obra O Marxismo de Gramsci, de Juan dal Maso.
[3] Buscaremos fazer uma reflexão à parte apenas sobre esse tema em próximos artigos dessa série.
Bibliografia:
ADORNO, Theodor. Minima Moralia. 2008. Rio de Janeiro: Azougue.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. 2001. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
LUKÁCS, György. Asalto a la Rázon. 1959. México: Fundo de Cultura Econômica