Na abordagem do 100º aniversário do 7 de novembro de 1917, tudo se passa como se se tratasse – sobretudo para certos meios político-mediáticos, caucionados por certos universitários – de apresentar uma versão grosseiramente maniqueísta, tingida de encarniçamento anticomunisto, anti-bolchevique e anti-soviético.
Não apenas Outubro não teria sido senão um "golpe" bolchevique interrompendo um amável curso democrático iniciado pela revolução russa de fevereiro. Não apenas os bolcheviques não teriam tido nenhum papel importante em fevereiro de 1917, não apenas o imenso levantamento proletário e camponês que a preparou, marcou e deu seguimento em 7 de novembro de 1917, não teria tido um caráter autenticamente democrático, popular e socialista, não apenas as suas consequências se teriam revelado unicamente catastróficas para a Rússia e para a humanidade, mas todo este processo se teria desenrolado – bem como a ulterior construção da URSS – num contexto puramente russo e quimicamente puro, praticamente livre de furiosas intervenções imperialistas, da defesa sangrenta e exacerbada dos privilégios pelas classes privilegiadas, do esmagamento brutal da revolução operária na Alemanha, seguido da ascensão do fascismo, nazismo, franquismo e dos militarismos, do Japão imperial à Europa Ocidental (Hungria, Itália, Espanha...)
Os signatários do presente texto ficam horrorizados ao ver profissionais do campo da História misturarem-se no ar viciado deste nosso tempo anticomunista, "pós-moderno" e anti-progressista, abordando, sem excessivos escrúpulos metodológicos, o tema hiperbolicamente qualificado de Outubro russo.
Os mesmos que evocam com comiseração a demasiado "ingénua" historiografia dos tempos recentes e que denunciam os "preconceitos" da conjuntura política que se seguiu a Estalinegrado, o 8 de maio de 1945 e o surgimento de um poderoso partido comunista em França, não se interrogam um segundo sequer sobre a atual configuração política na qual eles desenvolvem a sua reflexão "histórica" qualificada de crítica: ofensiva neoliberal; anexação para a esfera euro-atlântica dos antigos países socialistas; domínio de Berlim sobre a "construção europeia"; subida do Front National e viragem para a direita da sociedade francesa; destruição das conquistas sociais do Conselho Nacional da Resistência ligadas à ação dos ministros comunistas em 1945-47; ressurgimento dos impérios capitalistas disputando a hegemonia mundial, arremetida europeia, leia-se global, de diversas variedades de extremismo de direita e fundamentalismo religioso; degradação da relação de forças entre Trabalho e Capital e a nível mundial; diabolização da Federação Russa, que a NATO pressiona nas suas fronteiras de Vilnius a Kiev; multiplicação de guerras neocoloniais travestidas de "direito de ingerência humanitária" (África, Médio Oriente); criminalização das atividades comunistas em antigos países socialistas (Polônia, República Checa, Bulgária,...); negacionismo histórico caracterizado pelas autoridades japonesas sobre os genocídios cometidos na Coreia e na China; investida de grupos neonazis que proliferam na esteira dos poderes fascizantes, apoiados pela UE e a NATO (Ucrânia Hungria, as antigas repúblicas soviéticas do Báltico)...
Esta tentativa pseudo-histórica de "varrer" Outubro de 1917 da memória coletiva tem objetivamente lugar numa paisagem historiográfica dominada pela reação:
- Acrescida complacência com a colonização francesa (por ex. os "aspectos positivos da colonização" (sic) que círculos sarkosistas pretendem inscrever nos programas escolares),
- Difamação da Revolução francesa, nomeadamente a sua fase jacobina e de Robespierre,
- Tendência para reabilitar Vichy e depreciar a resistência patriótica (particularmente negando o papel proeminente que desempenharam os comunistas),
- Relatos desonestos da História nacional que tanto desvalorizam séculos de construção do estado-nação em benefício da historiografia euro-politicamente correta, como pretendem ressuscitar um "romance nacional" expurgado dos confrontos de classes e da contribuição dos comunistas para a Frente Popular, a Resistência, as reformas progressistas da Libertação, a recusa das guerras coloniais, a defesa da liberdade, da paz, da soberania nacional, da igualdade entre homens e mulheres e do progresso social,
- Odiosa amálgama entre o Terceiro Reich e a pátria de Estalinegrado, perpetrada nos programas e manuais escolares, sob o nome de "ascensão do totalitarismo",
Em suma, tudo se passa como se determinados círculos que monopolizam a edição, os media e boa parte da Universidade, estivessem menos preocupados em esclarecer sob um ângulo dialético, dinâmico, e eventualmente contraditório, os Dez Dias que abalaram o mundo do que retrospectivamente dar uma lição aos povos, especialmente à juventude, para os afastar para sempre das lutas da classe operária e revolucionárias...
Como se fosse possível um simples "putsch" bolchevique ter podido mobilizar milhões de proletários e camponeses, varrer os exércitos brancos apoiados por dezoito corpos expedicionários estrangeiros, suscitar um extraordinário florescimento cultural, levantar o entusiasmo do movimento operário e dos povos dominados, derrotar a "invencível" Wehrmacht e, durante mais de sete décadas, pôr no cerne do problema geopolítico global a contradição socialismo/capitalismo, a descolonização e a igualdade entre homens e mulheres.
Difamando a seu bel prazer Outubro de 1917, suas causas, seu progresso e suas sequelas, procura-se também dar tons cor de rosa ou branquear ao máximo o terrível resultado da restauração global do capitalismo que sob o nome de "globalização liberal" resultou na liquidação da experiência multifacetada da Revolução bolchevique.
No entanto, os inquéritos de opinião atestam que feita sucessivamente a experiência de dois de sistemas sociais antagónicos, os povos do antigo campo socialista e mais fortemente ainda os da ex-URSS, continuam a honrar Lenine e todos os que permitiram a construção de uma sociedade alternativa em termos de ganhos sociais, paz civil, direito ao trabalho, acesso a cuidados de saúde e educação, respeito pelas minorias, desenvolvimento das culturas nacionais e das línguas, desenvolvimento científico, etc.
Não deverão os verdadeiros democratas escutar a palavra dos povos ao invés de esmagá-los sob o termo pejorativo de "Ostalgia"? Será assim tão constrangedor que povos que sucessivamente testaram os dois sistemas sociais, e que não esqueceram por essa razão os bloqueios do "socialismo real" nos anos 70/80, afirmem apesar disso, depois de ter experimentado a restauração capitalista, a "Integração europeia" supranacional e neoliberal, a desestabilização sangrenta de países inteiros (Jugoslávia, Ucrânia...), a ascensão de extremistas de direita, a pressão militar exercida pela NATO nas fronteiras da Rússia, que o socialismo era sem dúvida melhor, incluindo os seus defeitos, que a explosão de máfias e das desigualdade que lhe sucederam sob a altamente discutível designação de "democracia liberal"?
É por isto que os signatários deste texto, ainda que não tenham necessariamente todos os mesmos pontos de vista sobre a história russo-soviética, fazem ponto de honra em dizer com força que a Revolução de Outubro de 1917 deve deixar de ser lida apenas com o óculos "brancos", "termidorianos", contrarrevolucionários, ou mesmo claramente fascizantes daquelas e daqueles que em lugar de estudarem o movimento comunista, as lutas das classes dominadas e as revoluções populares - incluindo frequentemente a Revolução francesa e a Comuna de Paris – as combatem sem sequer ter a honestidade intelectual de evidenciar a sua orientação partidária.
Não se trata para nós de exigir uma hagiografia da Revolução russa, mas de permitir às gerações jovens abordar o estudo do passado dialeticamente, avaliar a sua complexidade a partir das dinâmicas das classes e das relações de forças internacionais da época, tendo em conta todos os seus aspectos; e acima de tudo, realizar este estudo sem palas anticomunistas nos olhos, sem preconceitos antissoviéticos e, finalmente, sem posições políticas contrarrevolucionárias.
Contra aqueles que tentam já apropriar-se da próxima comemoração de Outubro de 1917 na base de evidentes preconceitos antibolcheviques, reabramos o debate contraditório, voltemos aos factos e proceda-se à sua recontextualização. Numa palavra, evite-se fazer do 100º aniversário de Outubro uma forma de vingança póstuma para os "Brancos" e todos aqueles que, na nossa época, sonham com um mundo definitivamente adquirido para o capitalismo, a integração euro-atlântica, a regressão social, as guerras imperialistas e a fascisação política.
Primeiros signatários:
Marie-Claude Berge , professeur d'histoire; Gwenaël Bidault , syndicaliste CGT (Sécurité sociale, 22) ; Jean-Pierre Bilski , professeur d'histoire (34) ; Pierre Boismenu , psychanalyste et philosophe : Danièle Bleitrach , sociologue (13) ; Christiane Combe , professeur de SVT retraité (19) ; Jean-Pierre Combe , ingénieur polytechnicien (19) ; René Coucke , psychanalyste (59) ; Jean-François Dejours , professeur de philosophie, syndicaliste (59) ; Jean-Marc del Percio , docteur en sciences politiques, ancien chargé d'enseignement à l'IEP de Lyon ; Aurélien Djament , mathématicien au CNRS, syndicaliste (44) ; Bruno Drweski , maître de Conférences HDR, Membre de l'ARAC ; Henriette Dubois , « Nelly » dans la Résistance, ancien agent de liaison des FTP de la zone Sud, chevalier de la Légion d'honneur ; Marianne Dunlop , professeur agrégé de russe ; Jean-Michel Faure , professeur émérite de sociologie, titulaire d'un doctorat 3ème cycle à l'EHSS sur l'Agriculture Russe ; Vincent Flament , militant de la solidarité internationale, 59 ; Joëlle Fontaine , professeur d'histoire retraitée ; Benoît Foucambert , professeur d'histoire, syndicaliste (81) ; Marc-Olivier Gavois , professeur d'histoire ; Jean-Christophe Grellety , professeur de philosophie (33) ; Jean-Pierre Guelfucci , militant syndical, fils de Résistant ; Gilda Guibert , professeur agrégé d'histoire (78) ; Jean-Pierre Hemmen , directeur de la revue théorique Etincelles, fils de Jean Hemmen, Fusillé de la Résistance, ancien militant de l'Internationale communiste et des Brigades internationales d'Espagne (80) ; Gisèle Jamet , professeur d'histoire ; Edmond Janssen , éditeur (75) ; Jean-Pierre Kahane , mathématicien ; François Kaldor , avocat honoraire ; Fadi Kassem , diplômé de Sciences po. Paris, professeur agrégé d'histoire (78) ; Jacques Kmieciak , journaliste (62) ; Léon Landini, ancien officier FTP-MOI, grand Mutilé de Guerre, Officier de la Légion d'honneur, Médaille de la Résistance, décoré par l'Union soviétique (92) ; Guy Laval , psychiatre (75) ; Ivan Lavallée , universitaire et chercheur en informatique ; Yves Letourneur , poète, philosophe ; Thérèse Lévené , enseignante-chercheure en sciences de l'éducation, université de Lille 1, vice-présidente du CNU 70, syndiquée au Snesup ; Olivier Long , universitaire et peintre ; Antoine Manessis , fils de Résistants, historien ; Annette Mateu-Casado , anc. documentaliste, fille de combattants antifascistes espagnols ; Aymeric Monville , éditeur de livres de philosophie et d'histoire (92) ; Dominique Mutel , agrégé d'anglais (62) ; Jean-Michel Pascal , ingénieur d'études (75) ; Anna Persichini, syndicaliste CGT (Métallurgie – 06) ; Guy Poussy , conseiller honoraire du Val-de-Marne ; Pierre Pranchère , ancien maquisard FTPF de Corrèze (dite la « Petite Russie »), ancien député ; Christophe Pouzat , neurobiologiste (94), Benoît Quennedey , historien (75) ; Marie-Noël Rio, écrivain (Allemagne) ; Hervé Sczepaniak , professeur de lettres ; Jean-Pierre Sienkiewicz, agrégé de physique, syndicaliste (24) ; Stéphane Sirot , historien du syndicalisme (59) ; Romain Telliez , historien. Université de Paris-Sorbonne ; André Tosel , professeur émérite de philosophie à l'Université de Nice ; Yves Vargas , philosophe, fils de Résistant ; Maxime Vivas , écrivain et journaliste.
Associam-se a este apelo-petição internacional:
Barbara Flamand , écrivain, Bruxelles; Domenico Losurdo , philosophe et historien, professeur émérite à l'Université d'Urbino (Italie) ; Anita Prestes , professeur à l'Université Fédérale de Rio de Janeiro; Miguel Urbano Rodrigues , anc. député portugais au Conseil de l'Europe, anc. militant antifasciste et anticolonialiste, historien du mouvement communiste.