A Turquia sempre foi tradicional "estado de fronteira" na Guerra Fria, e a importância que tem hoje para os EUA não é menor, com as relações entre EUA e Rússia em perene deterioração e com as velhas linhas pontilhadas na Europa Central, Bálcãs e Mar Negro já reaparecendo. (Na 3ª-feira, o principal comandante dos EUA na Europa, general Curtis Scaparrotti falou à Comissão das Forças Armadas da Câmara de Representantes em Washington, procurando conseguir que "brigadas blindadas e mecanizadas" sejam deslocadas para a Europa para conter a Rússia; no mesmo dia, o Senado dos EUA aprovou, por ampla maioria a inclusão do estado de Montenegro como novo membro da OTAN.)
O líder nacionalista turco Recep Erdogan tende com frequência a esquecer que seu país é membro da OTAN e que suas políticas externa e de segurança devem seguir cordatamente a linha dos EUA. A tentativa de golpe de Estado de julho passado deveria tê-lo empurrado nessa direção, mas, ao contrário, só o tornaram mais assertivo e mais resoluto na busca de políticas externas independentes. Até que cruzou a "linha vermelha": fez aliança com a Rússia e adotou política independente na Síria – nos dois casos enfraquecendo a estratégia regional dos EUA.
Com a prisão de Mehmet Hakan Atilla, vice-presidente de banking internacional do Halkbank (banco do Estado da Turquia) por investigadores do FBI em New York na 2ª-feira, o Império revidou contra Erdogan. O advogado distrital de New York está acusando Attila de participação "num esquema que já dura anos, para violar as leis das samções norte-americanas, ajudando Reza Zarrab, grande comerciante de ouro, a usar instituições financeiras dos EUA para transações financeiras proibidas, pelas quais milhões de dólares foram canalizados para o Irã". Zarrab, cidadão turco com raízes no Irã e no Azerbaijão, já está sob custódia numa prisão norte-americana. Tudo é muito, muito nebuloso.
Zarrab é acusado de ter servido como intermediário para Turquia e Irã, quando Washington mantinha o que esperava que fossem sanções absolutamente impenetráveis contra o programa nuclear iraniano. Mas também é acusado de implicação num escândalo de suborno de ministros do gabinete turco, inclusive do então primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan. Esse caso levou ao rompimento entre o pregador islamista Fetullah Gulen e Erdogan, que até ali haviam sido aliados. (Detalhes sobre esse escândalo que eclodiu em 2014, encontram-se aqui.)
Gulen por sua vez, parece ter laços com a CIA, o que provavelmente explica por que Washington mantém-se surda aos repetidos pedidos de Ankara para que Gulen seja extraditado por envolvimento na tentativa de golpe contra Erdogan em julho passado.
Seja como for, Ankara defendeu empenhadamente Attila e diz que a prisão dele em New York foi "movimento completamente político", planejado para atingir Erdogan. (Apenas duas semanas antes do referendo marcado para 16 de abril na Turquia, pelo qual Erdogan espera obter poderes para mudar o sistema presidencial do país.)
Seja como for, Ankara já reagiu contra os EUA, ao insinuar que diplomatas norte-americanos ativos na Turquia teriam mantido contatos ativos com os golpistas de julho. As autoridades turcas distribuíram detalhes hoje segundo os quais o consulado dos EUA em Istanbul continuou a ter contatos, mesmo vários dias depois do golpe de julho, com Adil Öksüz, principal suspeito na tentativa de golpe (o qual, por estranho que pareça, nunca foi preso e mantém-se tecnicamente como fugitivo). Bem visivelmente, a Turquia está a um passo de alegar que a CIA concebeu a tentativa de golpe contra Erdogan.
Feitas todas as contas, se o objetivo dos norte-americanos foi meter medo em Erdogan, ameaçando expor o próprio presidente e membros da família, que teriam acumulado imensa riqueza em propinas por ajudar o Irã a escapar das sanções dos EUA e vender petróleo no mercado mundial, Erdogan já conseguiu virar o jogo. O presidente turco está agora em posição da qual pode acusar diplomatas dos EUA de colaborarem com o golpista turco (fracassado e até hoje escondido em algum lugar supostamente na Turquia).
O plano dos EUA, para assustar Erdogan e obrigá-lo a se alinhar na relação com a Síria parece ter saído pela culatra. A se dar crédito a notícias sobre a conferência de imprensa de Tillerson em Ankara ,depois das conversações tudo faz crer que ele voltará para casa de mãos vazias. Aparentemente, os turcos falaram grosso. Agora, são as relações turco-norte-americanas que azedam mais a cada minuto. Um pesado nevoeiro de suspeitas mútuas desceu sobre as relações entre esses dois membros da OTAN, e tradicionais aliados.
Nesse quadro tão complexo, ainda resta saber como os EUA conseguirão prosseguir na planejada ofensiva em Raqqa, capital de facto do ISIS/Daech na Síria. O próximo movimento de Erdogan será observado muito de perto. Não se descarta a possibilidade de o Sultão ordenar que os militares norte-americanos evacuem a base de Incirlik, da qual parte quase todas as operações dos EUA no norte da Síria. Claro, a participação de diplomatas norte-americanos na tentativa de golpe na Turquia em julho é dinamite pura, suficiente para fazer voar pelos ares, a qualquer momento, todos os laços diplomáticos entre os dois países. Entrementes, Attila continua detido e sob interrogatório em New York, o que só faz tornar o desfecho, a cada dia, mais iminente