Durante os protestos em maio de 2.000 nada enfureceu mais o establishment britânico – imprensa, políticos, tribunais, e opinião respeitável – do que a profanação da estátua de Winston Churchill na Praça do Parlamento. O sangue selvagem vermelho pintado com spray em torno da boca de Churchill, a lívida marca verde que sugeria um corte de cabelo mohawk, transformando o estoico pai da nação em palhaço, era inconcebível.
É difícil transmitir o valor simbólico e emocional deste homem para a classe dominante britânica e um número significativo, embora em declínio, de cidadãos. Aqueles cuja consciência nacional é moldada pelas memórias da Segunda Guerra Mundial, provavelmente o último momento de “grandeza” do império, salvo a vitória na Copa do Mundo de 1966, conhecem principalmente Churchill como o homem que esmagou a ameaça nazista. Dirigindo um governo de coalizão ele exortou o que tinha sido uma nação mal-liderada e esgotada para ousar e vencer. Ele salvou o estado britânico, orientando-o através de uma de suas piores crises. Churchill foi o último líder britânico verdadeiramente amado; ninguém se aproximou disso.
Churchill é, além de mito nacional, objeto de uma pequena indústria artesanal e fonte interminável de nostalgia. Livros comemorando sua sagacidade perversa, canecas enfeitadas com sua imagem, toalhas de chá citando o grande homem, intermináveis historiadores da corte – e quando se trata de Churchill, quase não há outro tipo de historiador – recapitulando suas glórias. Há um filme sobre ele agora, com Gary Oldman? Jogue-o na pilha com o último filme com Brian Cox, e aquele anterior com Brendan Gleeson, e outro antes dele com Albert Finney e o anterior com Michael Gambon. É uma indústria dos “tesouros nacionais”, e um mini-boom agora está em andamento, já que certos sentimentos que o Brexit colocou em circulação alimentam um retorno cultural ao Império.
Durante a preparação, percebi de novo que odeio Churchill e todos de seu tipo. Os odeio fortemente. Eles tiveram um poder infinito ao longo da história. ... O que um homem são diria ao ouvir sobre as atrocidades cometidas pelos japoneses contra prisioneiros de guerra britânicos e do ANZAC: “Nós os destruiremos, cada um deles, homens, mulheres e filhos. Não haverá uma esquerda japonesa na face da terra”? Essa ânsia de vingança me deixa com horror, devido à sua ferocidade simples e implacável.
Por essa iconoclastia, Burton foi impedido de trabalhar novamente na BBC, acusado de “agir de forma não profissional” e, evidentemente, considerado como traidor. No entanto, ele trouxe algo sobre Churchill que muitas vezes constrange a sensibilidade britânica, de tal modo que geralmente não se fala nisso: o gosto pelo massacre. Em todo canto, parece que Churchill baba sangue. Ele era um fanático da violência.
Churchill vinha da alta aristocracia; era filho do chanceler Lord Randolph Churchill, foi um menino destinado aos altos cargos. É importante notar que o jovem Churchill não era um reacionário total. Membro do Partido Conservador, ele se considerava liberal. Defendia o livre comércio, a democracia e algumas melhorias suaves para a classe trabalhadora – refletindo a ideologia Whiggy (White Guy Groupie), e um liberalismo que estava em declínio. A única exceção foi sua rejeição da ideia de Irish Home Rule – um governo autônomo irlandês.
Mas ser um liberal na época não era de modo algum incompatível com o imperialismo, o racismo, o antisemitismo, o apoio à eugenia e o desdém patriarcal pelo sufrágio universal. Como Candice Millard sugere em Herói do Império, onde conta a história da participação de Churchill na Guerra dos Boer (na África do Sul), ele foi um político criado e formado pelo Império Britânico. Atingiu a idade adulta com um senso avançado de sua grandeza potencial, como alguém que apreciava sua reputação de coragem diante da morte. O Império Britânico tinha milhões de pessoas dispostas a viajar a todo o mundo para dominar pessoas que não tinham a chance desse tipo de aventura. Era um império que dominava 450 milhões de pessoas, cujas revoltas e lutas ocorriam no sul da África, no Egito e na Irlanda. Millard escreve:
Para Churchill, tais conflitos distantes ofereciam uma oportunidade irresistível para a glória e o avanço pessoal. Quando entrou no exército britânico e finalmente se tornou um soldado, com a possibilidade real de morrer em combate, o entusiasmo de Churchill não vacilou. Pelo contrário, ele escreveu para sua mãe que aguardava a batalha por causa dos riscos que oferece.
Churchill conseguiu provar-se um homem dos padrões imperiais, lutando na Índia e no Sudão, ajudando os espanhóis a reprimir os lutadores pela liberdade de Cuba e, após uma breve carreira parlamentar na África do Sul, lutando na Segunda Guerra dos Boers. Esta experiência preparou-o para buscar soluções semelhantes em problemas domésticos. Quando se uniu ao governo liberal de 1906, defendeu medidas agressivamente autoritárias para controlar a desobediência social. A promoção de Churchill no governo, quatro anos depois, ocorreu em um momento de turbulência política crescente no Reino Unido: a luta irlandesa pelo Home Rule, sufragismo, etc. Churchill se opôs a todos com violência.
Há muita ênfase, na hagiografia de Churchill, para refutar a ideia de que ele ordenou o ataque das tropas contra mineiros em greve no País de Gales, algo pelo qual é desprezado na região até hoje. O que de fato aconteceu foi que Churchill enviou batalhões de polícia de Londres e manteve tropas em reserva em Cardiff, caso a polícia não conseguisse fazer o trabalho. Nunca houve dúvida de que Churchill estava ao lado dos patrões, e preparou-se para mobilizar toda a força do estado britânico para resolver as questões. Durante uma disputa com anarquistas armados em Stepney, foi dele a decisão incomum de assumir o comando operacional da polícia durante o cerco; e, finalmente, optou por matar o inimigo ao permitir que eles fossem queimados em uma casa onde estavam presos.
No entanto, esse papel foi de curta duração. Churchill foi nomeado para uma posição militar sênior, que o colocou no comando político da Marinha Real. Um tecnófilo, ele a empurrou para a modernização, o combate aéreo e, mais tarde, os tanques. Mas nada em sua experiência poderia prepará-lo mais para a glória na Primeira Guerra Mundial: “Meu Deus!”, exclamou em 1915. “Isso é história viva. Tudo o que estamos fazendo e dizendo é emocionante – será lido por mil gerações, pense nisso!”.
A natureza guerreira de Churchill pode ter sido culpada pelo desastre militar em Gallipoli em 1915. Num esforço para tomar o Estreito Dardanelos e manter a Turquia fora da guerra, ele foi responsável por uma operação que enviou britânicos, franceses, neozelandeses e australianos – principalmente voluntários, mal treinados – para a derrota na Península de Gallipoli. A debacle que se seguiu destruiu essas unidades e resultou no rebaixamento de Churchill, que deixou o governo e se juntou ao Exército para comandar um batalhão.
Se suas credenciais de classe dominante fossem menos estimáveis, ele teria sido afastado devido àquele fracasso. Em vez disso, retornou ao parlamento em 1916 e mais uma vez subiu nas fileiras do governo – ministro de munições, secretário de guerra, e depois secretário do Ar.
Ele foi um feroz defensor da intervenção para reprimir a Revolução Russa, e escreveu furiosamente sobre o perigo dos “Judeus Internacionais” (comunistas) e sua “sinistra confederação”, contra os quais ele invocou o “judeu nacional” (o sionismo), muito mais aceitável – e isso foi interpretado de maneira mistificada por biógrafos como Martin Gilbert, como prova de seu filossemitismo.
Além de ser motivado por uma dicotomia profundamente antissemita – “bom judeu-mau judeu” – os fundamentos colonialistas do apoio de Churchill ao sionismo foram mais tarde esclarecidos quando se dirigiu à Comissão Real da Palestina, sobre a autodeterminação palestina. Recorrendo ao bestilógico em suas imagens, ele comparou o autogoverno a um cão correndo em seu próprio canil – e ele não reconhecia esse direito. “Eu não admito”, continuou, “que um grande erro tenha sido cometido com os índios da América, ou os negros da Austrália... pelo fato da forte disputa, uma raça de grau mais alto... tenha entrado e tomado seu lugar”.
Como um tático imperial, Churchill recomendou combater a insurgência contra o Mandato Britânico no Iraque com o uso de gás. Na verdade, ele fora pioneiro no uso de armas extremamente mortais na Rússia, contra os bolcheviques. É importante reconhecer que, com o seu apoio ao combate aéreo, ele justificou isso como uma alternativa “humana” e de alta tecnologia a métodos mais brutais. “Sou fortemente a favor do uso de gás envenenado contra tribos não civilizadas”, escreveu e explicou: “O efeito moral deve ser tão bom que a perda de vidas deve ser reduzida ao mínimo”.
Quando alguns no governo britânico da Índia criticaram “o uso de gás contra os nativos”, ele considerou essas objeções “irracionais”. “O gás é uma arma mais misericordiosa do que bombas de alto poder e obriga o inimigo a aceitar uma decisão com menos perda de vida do que qualquer outra arma de guerra”. Essa lógica, como o historiador Sven Lindqvist lembra, tem sustentado algumas das novidades mais bárbaras da guerra. Mesmo o uso de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki foi justificado em parte como um meio para salvar vidas.
Churchill, como conservador liberal, deveria ter ficado alarmado com a ascensão do fascismo na Europa. No entanto, ele era fortemente otimista e acreditava que Mussolini era um bom governante para a Itália, e o fascismo era útil contra o comunismo. Seu nacionalismo, militarismo e apoio à ordem e à tradição social marcavam sua interpretação do movimento fascista emergente.
“Com o fascismo como tal... ele não teve objeções”, escreve o historiador Paul Addison. "Em fevereiro de 1933 ele elogiou Mussolini... como 'o maior legislador entre os homens'". Paul Mason acrescenta que Churchill agradeceu a Mussolini por ter "prestado um serviço ao mundo" em sua guerra contra o comunismo, sindicatos e a esquerda. Visitando a Itália em 1927, ele declarou: “Se eu fosse italiano, tenho certeza de que deveria ter estado de todo coração com você desde o início para terminar sua luta triunfante contra os apetites e paixões bestiais do leninismo”. Ele escreveu sobre suas “relações íntimas e fáceis com Mussolini, acrescentando que “no conflito entre fascismo e bolchevismo, não havia dúvidas sobre as condolências e convicções”.
Em 1935, Churchill expressou sua “admiração” por Hitler e “a coragem, a perseverança e a força vital que lhe permitiu... superar todas as... resistências em seu caminho”. Addison explica que, enquanto Churchill não aprovava a perseguição do nazismo aos judeus, foram as “ambições externas dos nazistas, e não sua política interna, que causaram o maior alarme de Churchill”.
Mas quais eram as ambições externas que o preocupavam? A invasão da Etiópia pela Itália não perturbou a Churchill. Estava longe, numa zona considerada legítima para a disputa colonial. Quanto ao Terceiro Reich, muitas das suas concepções estratégicas e territoriais inspiraram-se no Império Britânico. Na verdade, o fetiche mais sagrado, “a raça ariana”, foi inventado pelos britânicos, por seus filólogos e arqueólogos que trabalhavam no sudeste asiático. Hitler queria tomar os motivos do império e aplicá-los à Europa.
Isso pode implicar uma guerra de aniquilação contra o “bolchevismo judeu”, e é difícil acreditar que Churchill ou qualquer outra pessoa na classe dominante britânica teria tido algum problema com isso. Mas a expansão no continente europeu era outra questão. Em outras palavras, o fascismo só se tornou um problema quando Churchill reconheceu nele uma ameaça para o Império Britânico e a ordem européia de estados-nação dominante. Só então, e somente a esse respeito, o fascismo se tornou pior do que o comunismo.
Churchill tornou-se um proeminente advogado do rearmamento e um adversário da maioria do establishment militar e político britânico, que queria apoiar Hitler em sua guerra contra a Rússia. No entanto, ele continuou pensando que os nazistas poderiam ser isolados e que um eixo poderia ser criado com os fascismos italianos e espanhóis e, como tal, continuava a lisonjear Mussolini e se opunha a qualquer apoio à Espanha republicana, antifascista. Na Guerra Civil Espanhola, que foi, em muitos aspectos, um prelúdio para a Segunda Guerra Mundial, ele considerou a República como uma “frente comunista” e os fascistas apoiados por Hitler, um “movimento anti-vermelho” apropriado. Certamente, Churchill não poderia ter tido nenhuma objeção a Franco bombardear seus inimigos com gases venenosos, trazendo para território espanhol os métodos de combate usados no Marrocos, uma vez que eram métodos que ele próprio considerava humanos e condignos.
Em última análise, a agressão de Hitler forçou a classe dominante britânica a abandonar sua preferência majoritária pela colaboração com o Terceiro Reich (“apaziguamento”). A invasão da Polônia convenceu o governo de Neville Chamberlain a entrar na guerra. Mas o julgamento do governo sobre a guerra em breve resultou em uma crise, levando-o ao colapso e à sua substituição por uma coalizão liderada por Churchill.
Mesmo após sua nomeação, Churchill persistiu em buscar uma aliança, menos ambiciosa, com os regimes fascistas. A historiadora Joanna Bourke relata o pedido desesperado de Churchill a Mussolini em maio de 1940:
É tarde demais para impedir que um rio de sangue flua entre os povos britânico e italiano?... Os herdeiros comuns da civilização latina e cristã não devem ser voltados uns contra os outros em conflitos mortais. Olhe para isso, eu imploro em toda honra e respeito antes que o sinal de medo seja dado.
A política e os interesses da política britânicas são baseados na independência e na unidade da Espanha e estamos ansiosos para vê-la assumir o devido lugar como um grande poder mediterrâneo e como um dos principais membros da família da Europa e da cristandade.
Embora isso não tenha acontecido na Itália, Churchill chegou a uma aliança com Franco que prolongou a vida de seu regime.
É claro que, como muitos sugeriram, a Segunda Guerra Mundial não era apenas uma só guerra. Ernest Mandel argumentou que eram pelo menos cinco guerras: ao lado da guerra entre poderes imperialistas, havia também uma guerra popular anti-colonial envolvendo assuntos coloniais do sul da Ásia e África, a autodefesa da Rússia, a luta da China contra o imperialismo japonês e uma guerra antifascista popular. Havia lutas populares contra o fascismo na Grécia, Espanha, Jugoslávia, Polônia e França, enquanto na China, Vietnã, Índia e Indonésia a resistência era contra o imperialismo japonês. Mesmo na Grã-Bretanha, houve uma forte radicalização após 1940, e esforços concertados para transformar o esforço de guerra em uma guerra popular e antifascista.
Para Churchill, no entanto, era apenas uma guerra imperialista, e a dirigiu como tal. Foram os britânicos que primeiro bombardearam civis durante o conflito, atacando-os nos subúrbios de Berlim. A Grã-Bretanha não conseguiu derrotar o Terceiro Reich através de um enorme exército continental, afirmou, mas “deve destruir o regime nazista através de um ataque absolutamente exasperante e exterminador de bombardeiros muito pesados”. A grande maioria das bombas foi voltada para edifícios e áreas residenciais, em vez da infraestrutura estratégica. De acordo com o diretor da Air Intelligence, citado pelo historiador Richard Overy, as bombas foram direcionadas para “as casas, a cozinha, o aquecimento, a iluminação e a vida familiar daquela parte da população que, em qualquer país, é menos móvel e mais vulnerável a um ataque aéreo geral – a classe trabalhadora". Isso culminou, notoriamente, no bombeamento de Dresden.
Churchill foi o homem que lutou para reprimir os insurgentes em todos os lugares, o homem que considerou adequado bombardear “nativos” onde quer que eles recusassem o domínio britânico. A guerra total foi a culminação lógica.
Após a guerra, quando houve um debate entre os Aliados sobre o uso da dependência de Franco sobre o petróleo para persuadir o regime a moderar, Churchill ficou indignado com raiva, declarando que era “pouco menos do que revolver uma revolução na Espanha”. Você “começa com o petróleo, e acabará rapidamente com o sangue”. Os comunistas, disse,”se tornariam mestres da Espanha” e a “infecção se espalharia muito rapidamente pela Itália e pela França”. Derrotada a agressão nazista, o comunismo era de novo o principal inimigo, e ele daria o sinal disso no discurso onde forjou a expressão “cortina de ferro”, em março de 1946, que anunciou a Guerra Fria.
Quando a guerra acabou Churchill estava enfraquecido. Ele fora extremamente popular durante o conflito, e continuaria a ser muito respeitado por sua decisão de lutar, e sua implacável energia na luta. Mas havia forte demanda por grandes reformas sociais, e isso significou uma mudança entre os trabalhadores.
Churchill gozou de mais um período como primeiro ministro, a partir de 1951 e durante ele, manteve a maioria das reformas implementadas pelo Partido Trabalhista, mas foi principalmente brutal contra a revolta do Mau Mau, no Quênia, e a insurgência malaia. Na da Malásia, Churchill voltou a ser um “modernizador” bélico: a Grã-Bretanha foi o primeiro país a usar o agente laranja e herbicidas do mesmo tipo, e adotou com alegria a mesma política de bombardeio de saturação que os Estados Unidos aplicariam no Vietnã. E então, ficando decisivamente doente, Churchill se aposentou.
Tendo passado grande parte de sua vida repelindo ameaças “nativas” ao Império Britânico, ele ajudou a salvá-lo do Terceiro Reich. Mas as pessoas que julgou aptas para governar, na maioria dos casos conseguiram derrubar essa regra, em parte por causa da mobilização mundial contra Hitler.
Faz sentido que o estado britânico idolatre Churchill. Sua história é a história do império. Mas quem, sabendo o que é essa história, pode participar da reverência a ele?
Richard Seymour é o autor de vários livros, incluindo Corbyn: The Strange Rebirth of Radical Politics. Ele mantém o blog Lenin’s Tomb.