Na cidade, as mazelas não atingiam os ricos capitalistas; no campo, a nobreza seguia ostentando o poder sobre as terras e, consequentemente, sobre o trabalho das famílias campesinas, que representavam 80% da população e eram obrigadas, por ordens do czar, a enviar seus filhos para morte no fronte de batalha da Primeira Guerra Mundial.
Czar era o título conferido aos imperadores da Rússia, uma espécie de rei, cujo poder se alicerçava na riqueza de seus amigos latifundiários, industriais e banqueiros, riqueza originada da exploração de milhões de trabalhadores e trabalhadoras.
imagemSe comparado a outros países da Europa capitalista, a Rússia era um reinado atrasado, ainda feudal. Somente em algumas poucas cidades um operariado se formava, sobretudo pela entrada de capitais estrangeiros.
12 anos antes, em 1905, acontecimentos abalaram as estruturas daquela sociedade decadente. Em janeiro, dezenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras marcharam pelas ruas de São Petersburgo em direção ao Palácio de Inverno, residência do czar. Usavam símbolos religiosos. Não queriam guerra. Queriam que o imperador olhasse para eles, que ajudasse a sanar a difícil situação na qual estavam mergulhados. Mas o czar, indiferente à crucificação que pesava sobre a maioria da população, recebeu o povo à bala. O episódio, que ficou conhecido como Domingo Sangrento, foi o estopim para uma revolução popular.
Greves se espalharam rapidamente, soldados se rebelaram contra as ordens que vinham de cima. Nasceram os sovietes, os conselhos de operários, soldados e camponeses, que passaram a organizar, através da democracia direta, parte da produção, da imprensa e de outros setores da vida social. Com os sovietes, a classe trabalhadora descobriu, na prática, que não precisava de patrões.
A crise aperta e Nicolau II, o czar, dá a entender que vai recuar, prometendo reformas democráticas. Uma cilada! Quase nenhuma promessa é cumprida e a repressão ataca com força máxima as organizações da classe trabalhadora. Prisões, mortes e difamações. A maré da luta dos de baixo reflui, como se precisasse ganhar novo fôlego. Alguns conseguem escapar para o exílio. Mais uma importante lição de 1905: é preciso destruir o poder das forças opressoras antes que este destrua o Poder Popular.
imagemOs anos seguem e, em fevereiro de 1917, a luta de classes se acirra mais uma vez. Uma mobilização no Dia Internacional das Mulheres confere novo impulso às forças populares. Ressurgem os sovietes. A memória de 1905 corre viva nas veias do povo! O czar abdica do trono e o poder se divide em dois: de um lado, a duma, uma espécie de congresso nacional, um governo provisório, que reúne membros das classes proprietárias e de organizações de trabalhadores que acreditam na necessidade de uma etapa de desenvolvimento capitalista antes da luta pelo socialismo propriamente dita; de outro, os sovietes, apoiados pelo Partido Bolchevique e pela ala esquerda de algumas daquelas organizações inseridas no governo provisório. Os bolcheviques puxam a palavra de ordem “Todo poder aos sovietes!”, acreditam na capacidade da classe trabalhadora conduzir uma revolução socialista, e acompanham o povo nas ruas com os gritos de “Pão, paz e terra!”
Os meses passam e o governo provisório não atende às reivindicações das ruas. Seu descrédito ante as massas populares cresce ainda mais. Em sentido inverso, a confiança nos bolcheviques aumenta, fazendo com que suas ideias se tornem hegemonia nos sovietes. Em meio à extrema precarização da vida, os de cima não conseguiam mais governar como antes e os de baixo não queriam mais retornar à difícil vida que levavam.
Um setor do governo provisório, comandado pelo general czarista Kornilov, ensaia um golpe contra o próprio governo. Entre o ruim e o pior, os bolcheviques mobilizam os trabalhadores para o combate contra Kornilov, sem gerar ilusões quanto as intenções do governo provisório: “Não o apoiamos, e sim desmascaramos sua debilidade.” Kornilov é derrotado e as massas populares aderem ao bolchevismo definitivamente.
O campesinato se levanta. O Partido Bolchevique defende a entrega imediata das terras aos agricultores e trabalha para que o movimento no campo se una à luta dos operários na cidade. O vínculo com e entre a classe trabalhadora se estreita ainda mais.
imagemÉ chegado o momento de organizar a insurreição, é preciso destruir o poder que destrói. O socialismo abre passagem, sem pedir licença, e um 2° congresso nacional dos sovietes é convocado. Na madrugada do dia 25 de outubro, segundo o calendário juliano russo, o governo provisório é derrubado e os sovietes, mais os bolcheviques, tomam o poder. Os países capitalistas beligerantes voltam suas armas contra a Rússia revolucionária e se inicia um período de guerra civil que durará até 1921. A classe trabalhadora internacional se solidariza com a classe trabalhadora russa, enquanto as classes ricas destilam seu ódio apoiando e patrocinando ações terroristas e difamando a Revolução de todas as formas possíveis e imagináveis.
1917 marca o início do ciclo de revoluções socialistas, com forte impacto na trajetória social do mundo ainda hoje. O Muro de Berlim caiu em 1989 – mas caiu do lado errado. Hoje, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas não existe mais, mas essa heroica experiência, sem precedentes na história humana, serviu para mostrar que, além de necessária, uma outra forma de organizar a vida é possível de ser construída.
Os soviéticos interviram decisivamente para uma série incontável de conquistas populares. Países da África se libertaram do julgo colonial com seu apoio, o nazifascismo foi derrotado com a resistência e ofensiva de seu povo, as mulheres avançaram de forma nunca antes vista para superação das desigualdades de gênero. Até a banda capitalista do planeta teve que fazer inéditas concessões à classe trabalhadora em seus territórios, com medo desta seguir o repertório vermelho. Para citar alguns exemplos.
Os revolucionários e revolucionárias daquele tempo ousaram vencer, constituindo com isso o mais abominável dos pecados para quem desfruta da vida na parte de cima da pirâmide social. Como toda obra humana, muitos erros e até crimes foram cometidos. Crimes que, na sociedade capitalista, naturaliza-se e se estimula como valor e princípio, diga-se de passagem.
Que os desvios não escapem à uma imprescindível e permanente autocrítica, nem muito menos sirvam de justificativa para abandono do ideal de libertação. Até porque a humanidade, 100 anos depois de hoje, dependerá inteiramente do que fazemos agora com a memória da generosidade soviética de 100 anos atrás.
*Texto originalmente publicado em Informativo Redentorista, Vice-Província de Fortaleza.
**Thales Emmanuel é militante da Organização Popular (OPA) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).