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Diário Liberdade
Terça, 14 Junho 2016 16:32 Última modificação em Domingo, 26 Junho 2016 01:01

Jorge Beinstein: "Tanto Clinton como Trump oscilarão entre o belicismo, cada vez mais enlouquecido, e a procura de acordos provisórios com seus rivais"

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País: Estados Unidos / Direitos nacionais e imperialismo / Fonte: Resistir

"Hemisfério Izquierdo" entrevista o economista argentino Jorge Beinstein.

HI: Quando Obama ganhou em 2008 construiu-se uma narrativa que quase assinalava o fim das pretensões hegemónicas e belicistas dos Estados Unidos, a ponto de que no ano 2009 deram-lhe o Nobel da Paz. Que balanço faria destes oito anos de gestão Obama? Modificaram-se em algo seus objectivos e sua estratégia em relação à gestão Bush?

JB:
Em relação à América Latina, a gestão de Obama começou com o golpe de estado nas Honduras e continuou com uma ofensiva geral tendente à recolonização da região. A seguir aos recuos imperiais, da perda de influência que caracterizou a presidência Bush (recordemos o fracasso do ALCA), a presidência Obama lançou uma vasta operação de conquista que se desdobrou de maneira complexa, flexível mas sistemática.

A nível global a estratégia belicista de Bush foi enriquecida com um vasto leque de intervenções imperialistas como o golpe de estado na Ucrânia, a destruição da Líbia e a guerra contra a Síria, incluída a criação e colocação em andamento do chamado "Estado Islâmico". Tudo isso num contexto de decadência económica, social e institucional dos Estados Unidos que se havia iniciado muito antes mas que se foi agravando durante a era Obama.

HI: Tudo indica que os EUA rumam para uma escolha entre Trump e Clinton. Para além da pirotecnia e das declarações altissonantes será de esperar alguma diferença entre ambos os candidatos em relação à estratégia dos Estados Unidos para com o mundo?

A LUMPEN-BURGUESIA

JB:
Em primeiro lugar considero que acima dos candidatos existe o que se costuma chamar "política de Estado", ou seja, as estratégia e decisões do poder real que no caso dos Estados Unidos é constituído por uma cúpula reduzida que articula, ou tentar articular, uma rede parasitária de interesses financeiros e militares que operam como uma massa instável de camarilhas mafiosas. É o que defino como lumpen-burguesia [1] imperial ou, conforme definiu Isa Conde: lumpen-imperialismo.

Em segundo lugar é necessário ter em conta que actualmente os Estados Unidos atravessam uma forte crise de representatividade da sua estrutura política que coincide com a degradação geral do sistema social. A vitória de Trump é a expressão do declínio do Partido Republicano, um energúmeno completamente inescrupuloso conseguiu deslocar os quadros tradicionais desse partido. A candidatura de Clinton, ao contrário do caso republicano, mostra os partidos políticos tradicionais a bloquearem toda possibilidade de renovação, como aconteceu no momento da candidatura de Obama que permitiu rejuvenescer o rosto do Partido Democrata.

Em terceiro lugar há que prestar atenção ao facto de que a economia norte-americana se encontra à beira da recessão após vários anos de crescimento anémico. Se a recessão chegar durante a presidência Trump ou Clinton agravar-se-ão as tendências entrópicas, o descontentamento social, a perda de legitimidade das instituições, etc. A referida recessão, altamente possível, faz parte de um processo recessivo global que actualmente abrange a Europa, Japão e boa parte da América Latina, a começar pelo Brasil e seguindo-se a Argentina.

Nos últimos anos os EUA acentuaram o seu perfil militarista, empurrando a NATO contra a Rússia, tentando criar um cerco agressivo contra a China, multiplicando suas intervenções directas e indirectas em numerosos países. Isso não lhe serviu para resolver a sua crise e sim, ao contrário, agravou-a. Se continuar a avançar pelo caminho belicista traçado por Bill Clinton, Bush (filho) e Obama cedo ou tarde chegará a um ponto de inflexão extremamente grave. Isso não exclui o facto de que a elite dominante norte-americana em certo momento poderia tentar chegar a algum tipo de acordo de coexistência com a Rússia e a China, ainda que pareça difícil que o tente (mas não impossível). Além disso não é fácil prever quanto tempo poderia durar esse apaziguamento. O problema central é que a sobrevivência da casta parasitária estado-unidense é impossível sem a extensão do saqueio imperialista sobre o resto do mundo e que ao mesmo tempo esse esforço saqueador, político-militar-financeiro, agrava a sua desordem interna.

Considero que tanto Clinton como Trump oscilarão entre o belicismo, cada vez mais ensandecido, e a busca de acordo provisórios com seus rivais. Cada um deles o fará de acordo com o seu estilo. Trump aos gritos e Clinton com bons modos.

HI: Depois da chamada "primavera árabe" [2] iniciou-se uma espécie de guerra permanente no Médio Oriente com foco na Síria mas que afecta toda a região. Quais são as chaves para entender esta guerra? Que interesses perseguem os EUA neste conflito e como podermos interpretar a reaparição da Rússia como "global player" neste contexto?

OS AUTO-ATENTADOS DO 11/SET

JB:
A guerra contra a Síria é a continuidade da ofensiva militar estado-unidense no Médio Oriente e na Ásia Central que começou com os auto-atentados do 11 de Setembro de 2001 [3] e as invasões do Afeganistão e Iraque e da tentativa fracassada de liquidar o Irão.

Fracassou a estratégia norte-americana para apoderar-se dessa vasta região e assim tomar o controle de 70% dos recursos petrolíferos do planeta e a seguir estrangular a Rússia e a China. Nesse sentido a tentativa de liquidar a Síria, transformá-la numa não-sociedade (como fizeram com a Líbia), num "vespeiro" desestabilizador (como a chamaram seus estrategas) pode ser entendida como uma tentativa desesperada, altamente irracional, para se contrapor à sucessão de fracassos que vão desde a interminável guerra no Afeganistão (eles acreditavam que ia ser fácil uma "limpeza" desse território) até a sua incapacidade para destruir um Irão que ampliou sua influência na zona. Os estrategas do Império estavam certamente convencidos de que a caotização da Síria, somada à conquista com êxito da Ucrânia, agravaria o cerco em torno da Rússia e Irão o que lhe teria permitido desenvolver uma ofensiva esmagadora nessa zona. Mas depararam-se com um exército sírio com um grande potencial de combate e forte apoio popular, com a intervenção russa e a do Irão. Sobretudo a intervenção da Rússia com uma capacidade militar e uma audácia política inesperadas.

Esse foi o enésimo erro, a enésima subestimação da Rússia por parte dos Estados Unidos, demonstração da decadência intelectual dos seus dirigentes. Eles acreditavam que, a partir de Yeltsin, a Rússia sofreria uma deslocação irreversível, prolongamento da derrocada soviética. Pelo contrário, verificou-se uma reacção da identidade russa recompondo seu Estado, o centro histórico da referida identidade apoiado em raízes culturais muito profundas, na sua economia e naturalmente do seu complexo industrial-científico-militar. Isso favorecido pelo aumento do preço do petróleo e do gás (baluarte do comércio externo russo), pela aliança estratégica com a China e pelo atolamento estado-unidense na Ásia Central.

UCRÂNIA, O FILHO IDIOTA DOS PADRINHOS OCIDENTAIS

Os estrategas norte-americanos também se equivocaram ao acreditarem que com o golpe de estado na Ucrânia atrairiam a Rússia para um pântano de guerra prolongada (como havia ocorrido com a URSS no Afeganistão), mas os russos responderam de maneira inteligente esquivando-se à provocação e ajudando a converter a Ucrânia numa espécie de filho idiota dos seus padrinhos ocidentais, submersa numa interminável guerra étnica.

E tornaram a equivocar-se quando acreditaram que a Síria seria uma espécie de Líbia-bis, que a Rússia não se atreveria a intervir, que os bandos de mercenários "islâmicos" (?) se apossariam completamente desse país. A Rússia interveio e os que não foram capazes de intervir contra a Rússia foram os ocidentais. O que está agora a ocorrer é que a aliança estratégica entre Rússia e China emerge como o maior desafio à supremacia ocidental.

HI: Passando à América Latina, quais foram os eixos da estratégia dos Estados Unidos para com o nosso continente durante estes mais de 15 anos de progressismo? Estamos perante uma perda de hegemonia ou diante de uma mudança de estratégia?

GUERRA DE QUARTA GERAÇÃO

JB:
Podemos falar das duas estratégias sucessivas mais recentes. A primeira delas tentou conduzir a região rumo à integração económica e em consequência geopolítica com os Estados Unidos. Foi o prolongamento (finalmente anacrónico) das manobras desenvolvidas a partir do chamado Consenso de Washington. Mas a América Latina havia mudado, caíam os regimes neoliberais e emergiam as experiências progressistas. O fracasso da imposição do ALCA [Acordo de Livre Comércio das Américas] foi um golpe muito duro para a diplomacia imperial. A partir da presidência de Obama os Estados Unidos implementaram uma nova estratégia de reconquista que desenvolveu toda a arte da Guerra de Quarta Geração, desde os golpes suaves com êxito nas Honduras, no Paraguai, na Argentina e no Brasil até o cocktail intervencionista contra a Venezuela e outras operações de controle. Para isso utilizam entre outras coisas as lumpen-burguesias locais e seus prolongamentos sociais internos.

HI: Considerando três elementos recentes que estão a reconfigurar o cenário – as negociações de paz na Colômbia, o descongelamento das relações Cuba-EUA e a profunda crise que os governos progressistas estão a atravessar – o que podemos esperar das políticas dos Estados Unidos em relação à região? Quais seriam hoje seus principais objectivos?

JB:
Os governos progressistas chegaram ao seu limite histórico. Pretendiam reformar o capitalismo colonial tornando-o produtivo, autónomo e socialmente inclusivo sem liquidar os fundamentos do sistema. Mas esses fundamentos económicos, mediáticos, culturais puderam reproduzir-se para finalmente arremeter e em vários casos derrubar esses governos. Desde já o qualificativo "progressista" é ambíguo e por vezes confuso, abrange desde experiências neoliberais rosadas como a de Bachelet no Chile até outras com pretensões "socialistas" como na Venezuela ou na Bolívia. Os Estados Unidos aproveitaram as debilidades do progressismo agravadas pelo desenvolvimento da crise global para avançar na sua estratégia de reconquista da região.

Os diálogos de paz na Colômbia fazem parte da estratégia imperial. Não puderam derrotar militarmente a insurgência, tentam então destruí-la mediante um complexo emaranhado que inclui pressões e concessões, agressões descaradas e gestos amistosos, tudo isso destinado a aprisioná-la numa rede gelatinosa que a iria arrastando a um beco sem saída.

A partir do golpe suave na Argentina os Estados Unidos apontaram a três objectivos prioritários. O primeiro acaba de ser conseguido: a reconquista do Brasil. Nos próximos meses tentarão liquidar os obstáculos venezuelano e colombiano.

Finalmente, o descongelamento das relações dos Estados Unidos com Cuba procura realizar um grande abraço-de-urso que submerja a ilha numa onda empresarial-mediática destinada a conseguir uma "mudança de regime". Mas esses jogo não é jogado por um só protagonista, o Império, e sim vários, especialmente Cuba que tenta aproveitar o referido degelo para fortalecer a sua economia em plena transição entre modelos e que obviamente tenta preservar sua autonomia.

ESTADOS MAFIOSOS E SOCIEDADES CAÓTICAS

O objectivo final da estratégia imperial é converter a região num espaço desarticulado, com estados mafiosos e sociedades caóticas, o que é necessário para a realização de grandes saqueios financeiros e de recursos naturais.

HI: Aqui no Hemisferio Izquierdo nos propomos a contribuir para o debate sobre as perspectivas estratégicas na América Latina, considerando o cenário que nos colocas. Existe hoje um esboço estratégico claro para orientar a luta? Quais deveriam ser os eixos centrais de uma estratégia socialista hoje?

JB: 
Existem esboços, reflexões, práticas sociais promissoras, resistências de diverso tipo, grandes movimentos populares... Está a terminar a "era progressista" mas a sua substituição reaccionária não abre uma etapa de governabilidade direitista, elitista, e sim um horizonte caótico de saqueios, de regimes instáveis, hiper-corruptos. Que outra coisa podemos esperar dos novos "governos" do Brasil e da Argentina ou do que poderia chegar a ser um regime pós-chavista na Venezuela? De qualquer modo a onda progressista não foi uma experiência inútil, ela irrompeu na base do desgaste e em certos casos do desmoronamento neoliberal mas também graças à impotência popular para converter esses fenómenos em disparadores de revoluções populares que eliminassem pela raiz as estruturas coloniais e seus complementos mediáticos e institucionais. Não se produziram revoluções e sim processos de recomposição com inclusão social ao sistema mais ou menos reformado. Isso naturalmente permitiu a sobrevivência das elites mas também despertou a auto-estima de massas populares submersas. Multiplicaram-se as organizações de base, conquistaram-se direitos, melhorias sociais que os governos direitistas tentam agora ou tentarão eliminar. Sua actuação retrógrada gera, gerará, anticorpos, resistências, militâncias, ou seja, uma contra-cultura dos de baixo que graças ao atordoamento dos de cima tem a possibilidade de converter suas lutas, suas práticas variadas, numa conscientização profunda, na percepção das causas da tragédia. Existe um provérbio na Índia que diz que quanto mais alto subir o macaco mais fácil será ver-lhe o cú. Bem, o revanchismo, as tropelias, os roubos descarados das elites dominantes a dançarem no alto do poder permitem ver a sua verdadeira natureza, seus mecanismos de opressão. Em suma, a estrutura do capitalismo colonial, transnacionalizado, perceber claramente sua decadência, seu corpo repugnante.

Estas elites não são os motores de reconversões capitalistas e sim a expressão da degradação do sistema global. Isto significa que na América Latina a rebelião contra o sistema está na ordem do dia e que "a estratégia" é a da construção de avalanches populares, de movimentos insurgentes de amplo espectro social, respondendo às culturas específicas de cada povo, a sua identidades, suas memórias, suas potencialidades criativas. Certamente se cruzarão no caminho dirigentes manipuladores de diferentes categorias a tentarem domesticar as massas, a oferecerem alternativas aparentemente "possíveis". Haverá que passar-lhes por cima. O aprofundamento da crise deixará aberta a porta para as revoluções populares.

08/Junho/2016

[1] Ver Origem e apogeu das lumpen-burguesias latino-americanas
[2] Ver Não houve primaveras nem foram árabes
[3] Ver o vídeo   11 Septembre, Anatomy of a Great Deception (legendado em francês).

[*] Doutorado de Estado em Ciências Económicas (Universidade do Franche Comté, Besançon, França), especialista em prognósticos económicos. Foi consultor de organismos internacionais e de governos, dirigiu numerosos programas de investigação e foi titular de cátedras de economia internacional e prospectiva tanto na Europa como na América Latina. É professor titular das cátedras libres "Globalização e Crise" nas Universidades de Buenos Aires e Córdoba (Argentina) e de Havana (Cuba) e director do Centro de Prospectiva y Gestión de Sistemas (Cepros). Sua página web é http://beinstein.lahaine.org/

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