Ao assumir a presidência, o presidente Xi Jinping propôs o que é agora a Iniciativa Cinturão e Estrada, uma rede ampla de novos projetos de infraestrutura que partem da China para Ásia e Eurásia, Oriente Médio e União Europeia. Xi propôs a ICE numa reunião no Cazaquistão em 2013. Depois, em 2015, com pouco mais de dois anos de governo, uma ampla estratégia nacional industrial, aprovada por Xi Jinping, "Made in China: 2025" substituiria o documento anterior sobre o mesmo tema, que fora formulado com o Banco Mundial e os EUA, com Robert Zoellick.
Uma das qualidades que aprendi a apreciar de tanto observar ao vivo, em primeira mão, ao longo de numerosas visitas e discussões por toda a China desde 2008, é a impressionante determinação com que operam as instituições chinesas e o povo chinês. Quando se estabelece o consenso em torno de alguma estratégia nacional, os chineses fazem acontecer o que tenham decidido, com determinação quase cruel. Houve erros, na pressa para arrancar o país, do estado de uma das economias camponesas mais miseráveis, para convertê-lo no maior produtor industrial do mundo. Nem sempre o controle de qualidade foi prioridade. Porém, passo a passo desde a virada para o "Socialismo com Características Chinesas" de Deng Xiaoping, em 1979, a China impôs-se como, literalmente, a oficina do mundo. Até agora, produziu sob licença de multinacionais ocidentais – carros VW ou Buick GM, iPhones ou MacBooks e incontáveis outros produtos para multinacionais ocidentais.
"Rejuvenescer a manufatura chinesa"
Agora, a China está mudando isso. Mais ou menos como fez o Japão depois de 1952 e depois a Coreia do Sul, seguindo o exemplo japonês, e, mais importante, a Alemanha depois de 1871, a China parte para o que os chineses descrevem como "rejuvenescer a manufatura chinesa." Traduzido, significa que, em vez de ser a oficina de montagem de componentes para gigantes estrangeiros como a empresa Apple, a China desenvolverá seus próprios Apple, ou BMW ou G5. Já iniciaram uma nova fase no desenvolvimento de sua própria indústria líder mundial. Agora, como se lê em "China 2025" (ing.), a indústria nacional, com o apoio das instituições do governo, está passando por uma "transformação, do 'Made in China' para o 'Criado na China', da Velocidade China para a 'Qualidade China' e de produtos chineses, para marcas chinesas."
O conceito básico geral para "China 2025" foi modelado a partir da estratégia alemã "Indústria 4.0", que muitos chamam de a "4ª Revolução Industrial". Ela visa a utilizar avanços tecnológicos em tecnologias chaves, como inteligência artificial, a internet das coisas, máquinas que aprendem, sistemas de nuvens, cibersegurança, robótica adaptativa, para assim introduzir mudanças radicais nos processos negociais das organizações. A China fez, desses conceitos, prioridade estratégica do país, no futuro desenvolvimento econômico.
Não é pouca coisa. E é precisamente o motivo pelo qual os conselheiros de Trump, com seus atos de guerra comercial, estão tentando atacar exatamente nas vulnerabilidades e links chaves com tecnologias ocidentais, como, por exemplo, os laços que ligam a China a gigantes das telecomunicações, como Huawei ou ZTE Telecommunications – empresas ainda dependentes dos chips e de outras tecnologias norte-americanas sensíveis.
'EUA pós-industriais'
A partir dos anos 1970s, uma estratégica escolhida por várias grandes empresas multinacionais norte-americanas foi transferir suas fábricas para outros países, à procura do trabalho barato e redução de outros custos. Think-tanks e a 'mídia' elogiavam e promoviam a ideia estúpida segundo a qual o ocidente teria entrado numa "era pós-industrial", um nirvana tão desejado no qual, em vez de empregos 'sujos' na indústria do aço, fabricando automóveis e assemelhados, o futuro estaria numa economia de "serviços". Na realidade, todos esses promoveram a terceirização da base manufatureira dos EUA.
A partir especialmente dos anos 1990s, com as negociações para que a China se integrasse ao "clube" das indústrias ocidentais e se integrasse à Organização Mundial do Comércio, a América corporativa e respectivos banqueiros voaram em bandos para a China, o país de maior população e um dos menores salários do mundo. Por mais de 30 anos, empresas norte-americanas de GE a Nike e Apple acumularam lucros descomunais a partir daquela produção vinda da China – fato que hoje, convenientemente, Washington insiste em esquecer.
A China usou aquele input estrangeiro para construir o maior Golias industrial do planeta. Mas, como dizem os chineses, é indispensável uma séria transformação, se a China aspira a ser "concorrente de nível mundial", não mais mero apertador de parafusos para multinacionais ocidentais ou japonesas. Como se lê no prefácio oficial de "China 2025" (ing.), "a manufatura chinesa enfrenta novos desafios. Com a crescente exaustão de recursos e do meio ambiente em geral, os custos do trabalho e da produção aumentando, e o crescimento dos investimentos e exportações cada vez mais lento, já não se pode pensar em sustentar um modelo intensivo em recursos e de forte crescimento, que dependa de expansão continuada. Temos de ajustar imediatamente a estrutura de desenvolvimento e elevar a qualidade do desenvolvimento. A manufatura é o motor que movimentará a nova economia chinesa."
Como o documento aponta corretamente, "Desde o início da civilização industrial em meados do século 18, provou-se repetidas vezes pela ascensão e declínio de potências mundiais que, sem manufatura forte, não há prosperidade nacional." A conclusão que os chineses extraem disso é que "Construir uma manufatura internacionalmente competitiva é a única via pela qual a China pode aumentar sua força, proteger a segurança do Estado e tornar-se potência mundial."
O documento do Conselho de Estado da China no qual essa política aparece delineada destaca corretamente para a grande transformação pela qual passou a manufatura global depois da crise financeira de 2008, com empresas ocidentais revolucionando a manufatura com desenvolvimentos que incluem impressoras 3D, computação em nuvem, big data, bioengenharia e novos materiais, manufatura inteligente, como plantas baseadas em sistemas ciberfísicos. Disso trata "China 2025", para, como se lê lá, "capturar o território da alta manufatura na nova paisagem concorrencial."
Os chineses falam francamente sobre suas atuais capacidades manufatureiras: "A manufatura chinesa é grande, mas não é forte. A capacidade para inovação independente é fraca; e é alta a dependência externa para tecnologias chaves e equipamento avançado. Sistemas de inovação para empresas têm ainda de ser aperfeiçoados. A qualidade do produto não é alta e a China tem poucas marcas com renome mundial. A eficiência no uso de recursos e energia permanece baixa, e a poluição ambiental é severa. A estrutura industrial e serviços para a indústria permanecem imaturos."
Assim Pequim descreve o desafio que o país enfrenta hoje. Não permanecerão para sempre como plataforma de montagem industrial quase colonial para empresas de fora. Estão agora construindo a versão deles, uma versão made in China, da China, para competir como competem as indústrias de categoria mundial. E foi isso que disparou todos os sinais de alarme no ocidente.
Os três passos
Definiram três passos claros: até 2025, até 2035 e à altura do centenário da criação da República Popular da China, em 2049. À altura de 2025, a China planeja já ser "grande potência manufatureira," dez anos depois da definição do plano "China 2025" (apresentado dia 7/7/2015). Até aí, o plano prevê que a China terá consolidado seu poder manufatureiro, aumentado a digitalização da produção, dominará as principais tecnologias e será competitiva em áreas como ferrovias de alta velocidade e outros setores nos quais a China já é líder global, sempre melhorando a qualidade dos produtos. Níveis de uso de energia e de geração de poluição alcançarão o padrão dos países industriais avançados.
O passo 2, até 2035, levará a manufatura chinesa a um "nível intermédio entre as potências manufatureiras mundiais, "com capacidade para inovar fortemente aprimorada para descobertas e avanços chaves e competitividade em geral significativamente aumentada".
Então, no passo 3, à altura do centenário da Revolução, em 2049, a China espera "tornar-se líder entre as potências manufatureiras mundiais. Teremos capacidade para liderar a inovação e vantagens competitivas nas principais áreas da manufatura, e desenvolveremos tecnologia e sistemas industriais avançados."
E estão decididos a chegar lá. O que o documento em versão de 38 páginas para divulgação expõe é um complexo de agências de apoio e entidades de financiamento dedicado a viabilizar essa prioridade nacional. Por mais de 40 anos, as elites chinesas mandaram filhos e filhas estudarem nas melhores universidades de engenharia e ciências dos EUA e Europa. Agora, os pós-graduados e pós-doutorados em ciência, tecnologias da informação e engenharia estão retornando à China, onde encontram condições para real transformação industrial, melhores que qualquer coisa que os EUA ou a União Europeia tenham hoje a lhes oferecer.
O estado está criando o sistema de apoio para fazer-acontecer o plano "China 2025". Isso inclui apoio à prioridade dada à pesquisa e inovação mediante o Plano Nacional de Ciência e Tecnologia; construir "coalizões de inovação" entre estado, produção, educação, pesquisa e operações. Estão criando também as Bases para Pesquisa de Tecnologia Industrial, para pesquisa básica e treinamento em áreas chaves que acolherão "a próxima geração de tecnologias da informação, manufatura inteligente, manufatura aditiva, novos materiais e biomedicina."
Até 2020, haverá 15 dessas Bases para Pesquisa de Tecnologia Industrial, e 40, em todo o país, até 2025. Esses centros devem desenvolver componentes chaves para a transformação da indústria, como ferramentas digitalmente controladas, robôs industriais eAdditive Manufacturing (AM) equipment, [refere-se ao uso de impressora 3D para criar componentes industriais funcionais, inclusive protótipos, ferramentas e outros itens" (NTs).
Como diz o plano nacional, "À altura de 2025, grandes áreas manufatureiras serão já completamente digitalizadas. Custos de operação de demonstrações de projetos pilotos cairão 50%. O ciclo de produção será 50% mais breve e o descarte de produtos defeituosos cairá 50%." E toda essa transformação está ligada ao desenvolvimento da ambiciosa Iniciativa Cinturão e Estrada, ou Nova Rota da Seda.
Em resumo, a China fala sério sobre se autotransformar, de montadora a serviço de empresas ocidentais que reexportam de volta para os EUA ou Europa, para país exportador de produção nacional sua "made in China."
A geopolítica básica de Washington, já claramente admitida pelo falecido Zbigniew Brzezinski há vinte anos, quando os EUA reinavam sem desafiante, é impedir a ascensão de qualquer economia desafiante eurasiana. ZB escreveu "é imperativo que jamais surja qualquer desafiante eurasiano, capaz de dominar a Eurásia e, assim desafiar também os EUA."
Como Brzezinski escreveu em seu O Grande Tabuleiro de Xadrez, em 1997, "Uma potência que dominasse a Eurásia controlaria duas das três regiões mais avançadas e economicamente produtivas do mundo (...) controlar a Eurásia implicaria quase automaticamente subordinar a África, o que tornaria o Hemisfério Ocidental e a Oceania (Austrália) geopoliticamente periféricos em relação ao continente central do mundo. Cerca de 75% da população do planeta vive na Eurásia, e a maior parte da riqueza física do mundo também lá está, seja nas empresas seja no subsolo. A Eurásia abriga ¾ de todos os recursos conhecidos de energia do mundo."
A atual estratégia de Washington é atacar ao mesmo tempo (i) a crescente cooperação entre China, Rússia e Irã – resultado, ironicamente, da geopolítica inepta, absurda dos EUA na década passada; e (ii), mais especialmente, atacar esse grande "rejuvenescimento" da indústria de manufatura na China. O problema é que "China 2025" é o alicerce da estratégia chinesa para garantir a própria existência futura. Para Pequim, não é opção: é plano e projeto.