Yohann Koshy (YK): Como a China responde à crise financeira global?
Martin Jacques: Foi crise essencialmente ocidental, mas a China teve de responder, porque os mercados norte-americano e europeu, dos quais os chineses eram bastante dependentes, desabaram gravemente inicialmente. E respondeu com enorme programa de estímulos. Os chineses bombearam quantidades muito grandes de dinheiro para a economia, e a consequência foi que o crescimento chinês caiu levemente, mas permaneceu alto. Estava crescendo 9-10% durante o período e, de fato, cresceu a 12 e 13%.
Em período mais longo, o que aconteceu, basicamente, foi sério esforço para alterar o centro de gravidade da economia chinesa. Em 1978, a economia da China equivalia a 1/20 da economia dos EUA. As reformas ao longo das décadas posteriores estavam criando uma economia para exportação, dependente de mão de obra barata, efeito dos poderosos movimentos de migração do interior para as grandes cidades, com, é claro, forte input do estado.
Mas desde a crise financeira, a mudança foi empurrada na direção de uma economia crescentemente dependente da realidade interna, mais do que do consumo exterior, com dependência muito maior de pesquisa e desenvolvimento, e com crescimento mais lento. A nova norma para uma taxa de crescimento que está entre 6,5-7%, que a China manteve até hoje. Mas quando a economia cresce nessas taxas, dado o tamanho do país, o impacto global é ainda enorme: a China continua responsável, depois da crise financeira do ocidente, por algo entre 40-50% do crescimento global. Sem a economia chinesa, a economia global estaria em total confusão.
(YK): É possível que a China esteja seguindo a trilha da financialização, como as economias ocidentais? O Fundo Blackrock, o grande fundo hedge, recebeu recentemente autorização para começar a operar lá.
Martin Jacques: Bom... Minha opinião é que o anúncio feito pelo fundo Blackrock signifique qualquer coisa semelhante a isso. Acho que os chineses resistem com forte empenho contra seguir essa trilha. Claro que precisam de um setor financeiro forte. Precisarão desenvolver mercados de capital [mecanismos pelos quais é possível levar dinheiro para investimentos]. Mas a coisa é que a economia chinesa é muito diferente da economia dos EUA. Ainda tem tremenda capacidade de manufatura e enfatiza a importância de trabalho científico e técnico.
O estado é muito fundamental para o modo como opera a economia chinesa. Também se mostraram muito mais capazes de lidar com juros especiais, o que as economias ocidentais jamais conseguiram. O setor bancário tornou-se dominante dentro das sociedades ocidentais durante o período neoliberal a partir do final da década dos 1970s mediante o crash financeiro. Tanto quanto sei, há poucos sinais de que na China esteja acontecendo isso.
(YK): E quando Mark Carney diz que está preocupado com o sistema bancário sombra [ing. shadow banking] na China...
Martin Jacques: O principal problema na China é a dívida das empresas. O sistema bancário estatal, mas também em alguma medida o sistema bancário sombra, também aumentou o endividamento, por causa de seus esquemas de super empréstimos para esquemas, planos e investimentos que não tinham solidez e isso aumentou. Mas não é que, como se vê nos EUA ou Grã-Bretanha, que o estado esteja endividado... Quer dizer, é problema, sim, mas é problema interno, não é problema externo. O que aconteceu para as economias asiáticas menores durante a crise financeira asiática [nos anos 1990s] foi que tinham muitos ativos em moedas estrangeiras e, de repente, quando as respectivas moedas caíram, as respectivas dívidas cresceram vertiginosamente.
Além disso, a população chinesa não tem dívidas. Os chineses tendem a ter poupanças muito grandes – um dos fatores por trás da força financeira econômica da China… É preciso dizer também que a gestão econômica da economia chinesa foi/é operação realmente notável. Passaram 35 anos sem crise séria. Compare com o ocidente!!
(YK): Desenvolvimento chave desde o crash, a criação pela China do Novo Banco de Desenvolvimento e do Banco Asiático de Infraestrutura e Desenvolvimento, do qual participam a Grã-Bretanha e a Alemanha – para grande desprazer dos EUA. Por que estão criando essas alternativas ao Banco Mundial e ao FMI?
Martin Jacques: Depois de 2007-08, os chineses deram-se conta de que não podiam depender dos interesses da economia dos EUA e da economia global, alinhados. Tiveram de desenvolver suas próprias instituições. Os norte-americanos também enfiaram os pés nas reformas do FMI, porque queriam manter o controle sobre o FMI.
Nessa situação, não se tratava de querer instituições como o FMI e o Banco Mundial que são instituições essencialmente ocidentais, cuja função principal serve às economias ocidentais. O que falta é alguma coisa com visão de mundo muito mais expansiva e inclusiva… Por isso aconteceram o Banco de Desenvolvimento de Investimento e Infraestrutura, o Novo Banco de Desenvolvimento (o banco dos BRICS), e assistiremos ainda desenvolvimento muito mais amplo com a Iniciativa Cinturão e Estrada [programa massivo de infraestrutura que visa a aumentar a conectividade entre Europa, Oriente Médio, Ásia e Australásia]. O veículo para a transformação global para o próximo período será essa Iniciativa Cinturão & Estrada.
(YK): Entendo por que o investimento chinês foi acolhido como bem-vindo pelos governos. Contudo, no Equador, há comunidades indígenas que protestam contra as mineradoras chinesas predadoras. Em Gâmbia, pescadores locais são deslocados em massa pelas empresas chinesas. Num plano moral e político, como a China deve lidar com essas lutas? Porque não há desenvolvimento sem conflito.
Martin Jacques: Você tem razão: sempre há conflito no desenvolvimento. A China, com velocidade vertiginosa, desenvolveu sua presença em muitos países em desenvolvimento.
Por um lado, isso levou a demanda crescente por produtores de commodities [nos países mais pobres] – de petróleo a minério, ferro, por exemplo – e isso teve efeito poderoso nas respectivas economias.
Por outro lado, a China é também extremamente competitiva em muitas indústrias e isso pode ter efeitos negativos. Há incontáveis exemplos nos quais a China, na ponta da manufatura, no mundo em desenvolvimento, deslocou empresas que não alcançam escala e nível de investimento que superem os chineses.
Mas em termos do relacionamento com África e sudeste da Ásia, as empresas chinesas têm sido fator de peso no desenvolvimento dos primeiros passos de capacidade manufatureira considerável, por exemplo na Etiópia, que por todos os ângulos que se examinem, jamais teve antes qualquer capacidade de manufatura. Acho que o relacionamento da China com a África tem sido basicamente muito positivo. Não estou dizendo que não haja problemas. Por exemplo, há muito ressentimento quanto ao fato de empresas chinesas trazerem mão de obra chinesa para alguns dos empreendimentos na infraestrutura. Mas acho que muito mais positivo, do que essa evidência negativa, é o fato de que a China converteu-se em nova fonte de demanda para os produtores de commodities na África. Significa que esses produtores africanos já não dependem exclusivamente da demanda do ocidente. O mercado tornou-se competitivo, o preço dascommodities exportadas subiu durante aquele período; isso significou melhor situação econômica para aqueles países.
Em segundo lugar – e é por isso que rejeito enfaticamente o argumento de que a China seria nova potência imperial na África –, a China compreende o problema de desenvolver outros países. Um dos grandes problemas é desenvolver infraestrutura para distribuição, dos transportes, de energia e os blocos de construção indispensáveis a economias mais desenvolvidas.
O que a China fez em todos os principais países da África é implantar sistemas de rodovias, ferrovias... Para os chineses tudo isso é criar a condição essencial para o desenvolvimento.
A China nem sempre agiu corretamente. Se se considera Myanmar, sim, aproximaram-se excessivamente do regime militar [que persegue os Rohingya], e uma fraqueza dos chineses [é que frequentemente chegam a países que não conhecem], sem terem suficiente informação sobre a opinião local em campo. Aconteceu sem dúvida em Myanmar e no Sri Lanka. Claro que essas tensões são reais e importantes. E não há dúvidas de que os chineses ainda cometerão muitos outros erros. O importante é que aprendam dos próprios erros.
Aos poucos já estão aprendendo a lidar com o que se chama "sociedade civil" em outros países, porque na China não esse mesmo tipo de "sociedade civil", do modo como há em outros muitos países.
(YK): Para concluir, falemos dos EUA. Há beligerância crescente entre as duas superpotências. Mas, simultaneamente, as duas economias dependem uma da outra. A China detém parte maior da dívida dos EUA, em papéis do Tesouro, que qualquer outro país, o que, por sua vez, permite que os EUA gastem mais do que poderiam na compra de produtos chineses. É situação sustentável?
Martin Jacques: A principal dificuldade no ocidente é a inabilidade, a incapacidade para compreender a China. Ouça o programa BBC Today, leia The Guardian: absolutamente não há nem sinal de que estejam percebendo que o mundo mudou, com o crescimento da China. Quantos artigos ou matérias jornalísticas se leem sobre a Iniciativa Cinturão & Estrada – que é o mais importante projeto global dessa era da história humana?
Ironicamente, Trump foi o primeiro político norte-americano importante que reconheceu o declínio dos EUA. O declínio dos EUA é a premissa geradora de "Fazer a América Grande Outra Vez" [ing. Make America Great Again]. Mas também Trump está iludido na crença de que consiga reverter o processo. Acredito que, sim, haverá guerra econômica, mas nada fará reverter a ascensão da China.
O que há aí são poderosas e profundas forças históricas em ação, assim como, na Europa nos séculos 16 e 17, também agiram forças históricas poderosas e profundas. Cabe aos EUA aceitar a ascensão histórica da China, compreender o processo e renegociar o seu relacionamento com a China. No âmago de qualquer resposta que eu possa dar à sua pergunta, está outra pergunta: como o ocidente conseguirá lidar com o próprio declínio relativo?