Por trás dessa histeria, a tragédia do avião IL-20 da Forças Aeroespaciais Russas [ru. VKS] de algum modo deu publicidade de modo amplo e crucialmente decisivo a notícias que estavam sendo completamente ignoradas. E não surpreende que tenham sido ignoradas por todos os tipos de ‘especialistas’ em estratégia, política e estrategistas de poltrona (entre os quais me incluo).
As notícias até aqui ignoradas são bastante simples. O tenente-general Alexander Ionov, ex-vice comandante do Estado-maior da Força Aérea Russa de 1991 até 2001, disse ao jornal russo popular Zvezda que é absolutamente garantido que as forças da Defesa Aérea Síria não receberam equipamentos e códigos IFF compatíveis.
Para os que não saibam, IFF (ing. Interrogator Friend-Foe) é o sistema eletrônico que fornece simultaneamente defesa contra fogo-amigo e identificação fácil, pelo radar, de forças amigas. Nos radares velhos para detecção de forças amigas, os alvos dessas forças em geral aparecem marcadas com flechas (“acima” ou “abaixo”) no radar, e é assim que se pode determinar o que fazer para não atirar contra eles. A nova tecnologia IFF é extremamente sensível, assim como os “códigos” dos quais se serve. E não foram fornecidos às forças sírias por boa razão.
A questão que se impõe nesse ponto a todos os leigos é: mas... o que significa então a tal “total integração” das defesas aéreas de russos e sírios? É pergunta legítima. Sem entrar em muitos detalhes de como um aspecto chave dessa integração funciona – em língua ocidental chama-se Capacidade para Engajamento Cooperativo; ing.Cooperative Engagement Capability, CEC) –, há razões para que se assuma que no caso de S-200s mais antigos, os dados do alvo podem ser fornecidos por comandos de voz, por rádio.
Aqui entra um fato da maior importância — os S-200s sírios e respectivos radares estavam já na trilha dos F-16s israelenses, e possivelmente, já os tinham ‘fixado’ como alvos. A certeza, nesse caso, como no velho provérbio que ensina que só se conhece o pudim, comendo, está em que todas as aeronaves avançadas são equipadas com Detectores de Emissões, um sistema de alarme. A aeronave israelense tinha “tela” acessível, na forma do IL-20 russo que fazia a aproximação para pousar na Base Aérea Khmeimim.
Em outras palavras, as aeronaves israelenses foram obrigadas procurar esconderijo, e pode-se imaginar o quanto os alarmes berravam dentro das cabines deles. Claro que viram o IL-20, enorme no radar [orig. huge Radar Cross Section (RCS)]. Para os que sofram de déficit de atenção, vale lembrar que a Força Aérea de Defesa da Síria tem longo currículo de derrubar ou danificar seriamente aviões da Força Aérea de Israel. Problema é que, longe de admitirem as próprias perdas, a Força Aérea de Israel ainda não disse sequer uma palavra, por exemplo, sobre o destino do F-35 “danificado por pássaros”. Estou dizendo é que as Defesas Sírias sim, rastreiam e tomam por alvos aeronaves militares israelenses.
Os mísseis S-200 são o que se conhece por SARH (Semi-Active Radar Homing), que significa que os mísseis carecem de o alvo ser iluminado pelo complexo de radares das defesas aéreas. E aí que o profissionalismo torna-se absolutamente crucial, sobretudo nos casos de distâncias significativas até os alvos ‘tomados’ (dezenas e até centenas de quilômetros). Mas também é crucial um protocolo, as chamadas Regras de Engajamento [ROE (Rules of Engagement)], para todos que estejam no controle de qualquer complexo de Defesas Aéreas que não esteja “dentro” da curva de IFF (ing. Interrogator Friend-Foe) altamente sensíveis.
Nesse ponto, tenho, sim, razões para crer que, sob a tremenda pressão da situação em andamento, no que sempre fora área tranquila de aproximação para a Base Aérea Khmeimim, perfeitamente acordada entre Israel e Rússia, e onde a aeronave de Israel não poderia estar, a tripulação síria simplesmente partiu contra o alvo claramente visível que encobria os aviões israelenses de Radar Cross Section (RCS), menores.
Nesse caso Israel não violou só uma norma ética, escondendo-se por trás do IL-20. Violou muito mais – voou os próprios aviões para uma área especificamente demarcada como “fora de alcance”, proibida para a Força Aérea de Israel.
Como afirmou Yakov Kedmi, do serviço Nativ, de Israel, depois dos eventos, toda essa tragédia foi resultado da falta de profissionalismo, da irresponsabilidade e da temeridade dos israelenses; disse que o erro cometido por generais israelenses é desses que provocam calamidades totais e levam ao fracasso.
A própria reação de Israel depois dos eventos é reveladora. Israel entrou imediatamente em modo de contenção de danos, com Netanyahu correndo ao telefone para falar com Vladimir Putin. Pôs à disposição de Putin todo o Comando da Força Aérea de Israel, que viajaria imediatamente para Moscou, e pôs em prontidão, abertos, todos os canais diplomáticos, informacionais e do governo entre Israel e Rússia.
Não poderia haver sinal mais claro de verdadeiro pânico e confusão no alto comando de Israel, que imediatamente ofereceu condolências.
Não foi ato de guerra, como tantos tanto gostariam que tivesse sido, alguns movidos só por ódio a Israel, às vezes justificado, na esperança de que a Rússia dê cabo desse “mal”; outros só pela adrenalina, já antecipando as cenas de TV durante o jantar, de uns degolando outros.
Mas a questão da interação entre forças russas e sírias, sim, é real e não se explica só por algumas razões puramente militares e culturais. Contudo, já há algumas conclusões a extrair:
1. Não haverá “aniquilação” de Israel, nem tiroteio entre a Rússia e o Estado Judeu, como tanto apreciariam e pelo qual tantos anseiam;
2. Mas haverá algum tipo de Zona Aérea de Exclusão; e, como Vladimir Putin já disse, a Rússia tomará “providências que todos verão”. Obviamente, essa declaração importante, pelo chefe de Estado da Rússia, acabou naufragada no oceano de fúria e especulações, e muita confusão, digo eu, mas esse já é, faz tempo, o padrão que todos conhecemos.
3. A questão das Regras de Engajamento e da interação – é a mais importante. Especialistas devem revisar protocolos e procedimentos táticos. Todas as ressalvas e cuidados de engajamento têm de ser estritamente aplicados e respeitados.
4. Treinamento para o pessoal sírio e, depois que os S-300s (PMU) forem também entregues à Síria, será indispensável manter conselheiros russos em tempo integral em todas as tripulações da Defesa Aérea Síria que venham a operar tecnologia mais avançada que os velhos S-200s.
No fim, essa tragédia deve servir como lição real e gravíssima e, em sentido militar, um alerta para que todos se mantenham firmemente aderidos aos acordos, ou as coisas podem fugir muito depressa a qualquer controle.
Israel resolveu que lhe seria permitido trair acordos. Israel que pergunte à Turquia o que acontece quando alguém agride a Rússia. — A Força Aérea Turca sabe bem, aprendido perfeitamente depois que atacou e derrubou o SU-24 russo: foi grudada no chão, sem meios para decolar. Hoje a Turquia é aliada situacional de Irã e Rússia. Quanto aos significados geopolíticos mais amplos, é esperar e ver.
Já disse bem claramente várias vezes. E aqui repito: os cães ladram, mas a caravana segue adiante.
[1] Orig. obliterate [do latim obliterare, de littera, letra]. Um dos usos formais do verbo obliterar [port. do Brasil], de onde obliteração, é “obliteração de um selo”: “A obliteração é um ritual realizado nos lançamentos de selos personalizados, em que a autoridade sela e carimba um cartão, que depois será conservado no Museu dos Correios. Em francês, o cognato obliterer está no Larrousse como “apagar, fazer desaparecer”.
Em português do Brasil, a palavra tem pelo menos um específico uso militar, em “Existe uma técnica para camuflagem facial que é muito comum, conhecida como “face fantasma”. A técnica tem como principal objetivo, obliterar a percepção de profundidade do rosto, utilizando de forma estratégica as cores de um kit de camuflagem comum”.
Em inglês, no mesmo campo militar, a palavra ocorre em “US military test shows the A-10 'Warthog' can obliterate the small-boat swarms that Iran uses” [NTs].