A surpreendente ascensão do candidato democrata Bernie Sanders, na disputa pela vaga do Partido Democrata nas eleições à presidência dos Estados Unidos, demostra duas coisas muito claras: o sonho americano está se esfacelando; nem os próprios americanos aguentam mais o american way of life (modo de vida americano).
O tipo de sociedade atual desse país está criando um bolsão de injustiças e exclusões cada vez maior. Mas essa realidade acaba sendo filtrada, principalmente pelos veículos brasileiros de notícias, porque para a corrente liberal de pensamento político e econômico, esse ainda é o modelo a ser seguido – e implementado.
Entretanto, a realidade lá é muito diferente. Em um país onde a meritocracia é base fundamental para o processo de inserção social, o fracasso – profissional ou pessoal – não é aceito. Isso reflete, inclusive, no número de suicídios, que é o terceiro maior do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Os problemas sociais também são consideráveis. Os Estados Unidos possuem a maior população carcerária do mundo, 16 milhões de crianças vivem no limite da segurança alimentar, a maioria das mulheres não consegue licença-maternidade remunerada e não há atendimento púbico gratuito de saúde. Para muitos, isso não é sonho, é pesadelo.
Mas o que a candidatura de Bernie Sanders significa nesse sentido?
Um dos motivos que tem alavancado a campanha de Sanders é a crítica ferrenha ao desregulado sistema financeiro norte-americano que, livre, leve e solto, e na base de muita fraude e corrupção, criou a enorme crise econômica global, que iniciou em 2008 e tem ecos ainda hoje no planeta.
O mais surpreendente é que Sanders se autodenomina um socialista democrático e usa sem medo a palavra socialismo para definir a base de sua plataforma política. Isso em um país que viveu a paranoia da Guerra Fria desde os tempos de disputa geopolítica com a antiga União Soviética.
Atualmente, Sanders representa uma parcela considerável de norte-americanos que não suporta mais o peso do "modelo de vida americano". Este que estabelece você só tem acesso àquilo que puder pagar, incluindo saúde básica e educação de qualidade.
A busca por status e aquisição de produtos é central nesse modelo. Aqueles que não atingem este objetivo sofrerão arduamente. E nisso, muitos já não estão mais dispostos a acreditar como verdade absoluta.
Não é possível prever se a candidatura de Sanders vai prevalecer, porque sua oponente, Hillary Clinton, carrega toda a força do nome e tem apoio dos políticos tradicionais do partido, além de ter muito mais recursos financeiros para fazer campanha, parte proveniente de grandes corporações. Ela está no Partido Democrata, mas joga um jogo político muito parecido com aquele disputado pelo Partido Republicano.
Bernie Sanders tem, além do suporte das parcelas insatisfeitas, o apoio de entidades sindicais de peso, e não recebe contribuição financeira de empresas privadas.
O fôlego de sua campanha é, também, resultado dos ecos causados pelo movimento Ocuppy Wall Street, que surpreendeu o mundo em 2011 ao contestar o acúmulo da maioria das riquezas do mundo por apenas 1% da população.
Sanders e Clinton representam dois projetos muito diferentes dentro do próprio partido, até porque ele originalmente foi eleito senador independente por seu estado, Vermont.
Enquanto isso, aqui no Brasil, aqueles que ainda propagam o mito da felicidade norte-americana decorrente do modelo “ideal” de sociedade, tentam nos convencer de que o capitalismo pregado por lá seria capaz de garantir a todos um lugar ao sol e que, por isso, deveria ser implementado aqui também.
Dessa forma, esperam que o terreno para implementação das políticas liberais esteja sempre fértil.
É óbvio que, comparado a muitos outros países, eles ainda estão em situação mais favorável, mas isso tem muito a ver com as condições históricas em que se deu o processo de colonização. E certamente há pontos benéficos que devem servir de exemplo para outras nações. Mas acreditar que o modo de vida americano representa um modelo perfeito de sociedade, nem eles acreditam mais nisso.
Guilherme Mikami é jornalista, cientista político e diretor da agência Abridor de Latas