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Diário Liberdade
Sexta, 16 Dezembro 2016 17:49

Dez hipóteses de interpretação do fim do ciclo histórico do petismo

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Valério Arcary

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Não deixes que as tuas lembranças pesem mais do que as tuas esperanças
Sabedoria popular persa


1. Pensar o futuro da esquerda depois do impeachment de Dilma Rousseff, e do deslocamento da influência do lulismo sobre a classe trabalhadora, exige perspectiva histórica. Um ciclo político de quase quatro décadas se encerrou com duas derrotas que, embora mais ou menos simultâneas, merecem ser analisadas em separado. Porque têm significado, proporções e sentidos quase inversos. A primeira foi a derrota política do núcleo dirigente do PT diante de suas bases sociais, confirmada nas recentes eleições municipais. A mais importante, porém, foi a inversão desfavorável da relação social de forças que permitiu a posse de Michel Temer e a muito ampla coalizão que oferece sustentação aos planos de austeridade liderados por Meirelles. Enganam-se, dramaticamente, tanto os que consideram que ambas foram regressivas, quanto os que vêm ambas como progressivas. Erros de avaliação estratégica têm consequências diferentes de erros táticos. A história deixou lições incontornáveis.

2. Ao longo deste ciclo histórico ocorreram muitas oscilações nas relações de forças entre as classes, umas favoráveis, outras desfavoráveis para os trabalhadores e seus aliados. Eis um esboço de periodização: (a) tivemos um ascenso de lutas proletárias e estudantis, entre 1978/81, seguido por uma estabilização frágil, depois da derrota da greve do ABC de 1981, até 1984, quando uma nova onda contagiou a nação com a campanha pelas Diretas já, e selou o fim negociado da ditadura militar; (b) uma nova estabilização entre 1985/86 com a posse de Tancredo/Sarney e o Plano Cruzado, e um novo auge de mobilizações populares contra a superinflação que culminou com a campanha eleitoral que levou Lula ao segundo turno de 1989; (c) uma nova estabilização breve, com as expectativas geradas pelo Plano Collor, e uma nova onda a partir de maio de 1992, potencializada pelo desemprego e, agora, da hiperinflação que culminou com a campanha pelo Fora Collor; (d) uma estabilização muito mais duradoura com a posse de Itamar e o Plano Real, uma inflexão desfavorável para uma situação defensiva a partir da derrota da greve dos petroleiros em 1995; (e) lutas de resistência entre 1995/99, e uma retomada da capacidade de mobilização que agigantou-se, em agosto daquele ano, com a manifestação dos cem mil pelo Fora FHC, interrompida pela expectativa da direção do PT e da CUT de que uma vitória no horizonte eleitoral de 2002 exigiria uma política de alianças, que não seria possível em um contexto de radicalização social; (f) estabilização social ao longo dos dez anos de governos de colaboração de classes entre 2003 e junho de 2013, quando uma explosão de protesto popular acéfala levou milhões às ruas, um processo interrompido ainda no primeiro semestre de 2014; (g) finalmente, uma inversão muito desfavorável com as mobilizações reacionárias gigantes da classe média insufladas pelas denúncias da LavaJato, entre março de 2015 e março de 2016, quando alguns milhões ofereceram a sustentação para o golpe jurídico-parlamentar que derrubou Dilma Rousseff, encerrando o ciclo histórico.

3. Este ciclo foi a última fase da tardia, porém, acelerada transformação do Brasil agrário em uma sociedade urbana; a transição da ditadura militar para um regime democrático-eleitoral; e a história da gênese, ascensão, apogeu e declínio da influência do petismo, depois transfigurado em lulismo, sobre os trabalhadores; ao longo destes três processos a classe dominante conseguiu, aos “trancos e barrancos”, evitar a abertura de uma situação revolucionária no Brasil como aquelas que a Argentina, Venezuela e Bolívia conheceram, embora, mais de uma vez, tivessem se aberto situações pré-revolucionárias que foram, habilmente, bloqueadas e contornadas, recuperando-se a governabilidade.

4. A eleição em 2002 de um presidente com origem social na classe trabalhadora em um país capitalista semiperiférico, como o Brasil, foi um acontecimento atípico. Mas não foi uma surpresa. O PT já não preocupava a classe dominante, como em 1989. Um balanço destes treze anos parece irrefutável: o capitalismo brasileiro não esteve nunca ameaçado pelos governos do PT. Os governos do PT foram governos de colaboração de classes. Favoreceu algumas poucas reformas progressivas, como a redução do desemprego, o aumento do salário mínimo, o Bolsa-Família, e a expansão das Universidades e Institutos Federais. Mas beneficiaram, sobretudo, os mais ricos, mantendo até 2011 o tripé macroeconômico liberal intacto: a garantia do superávit primário acima de 3% do PIB, o câmbio flutuante em torno dos R$2,00 por dólar e a meta de controle da inflação abaixo de 6,5% ao ano. Não deveria surpreender o silêncio da oposição burguesa, e o apoio público indisfarçável de banqueiros, industriais, latifundiários e dos investidores estrangeiros, enquanto a situação externa foi favorável. Quando chegou, em 2011/12, o impacto da crise internacional aberta em 2008, o apoio incondicional da classe dominante fracionou-se.

5. Por isso, embora o Brasil seja menos pobre e ignorante que há dez anos, não é menos injusto. O balanço histórico é devastador: a direção lulista se deixou transformar em presa da operação LavaJato, desmoralizou-se diante da classe trabalhadora e da juventude, e entregou as classes médias enfurecidas nas mãos do poder da Avenida Paulista, abrindo o caminho para um governo Temer ultrarreacionário. Não foi para isso que uma geração lutou tanto. Lula conquistou, entre 1978 e 1989, a confiança da imensa maioria da vanguarda operária e popular. A proeminência de Lula foi uma expressão da grandeza social do proletariado brasileiro e, paradoxalmente, de sua simplicidade ou inocência política. Lula conquistou, entre 1978 e 1989, a confiança da imensa maioria da vanguarda operária e popular pelo seu papel corajoso à frente das greves. Uma classe trabalhadora jovem e com pouca instrução, recém-deslocada dos confins miseráveis das regiões mais pobres, sem experiência de luta sindical anterior, sem tradição de organização política independente, porém, concentrada em dez grandes regiões metropolitanas e, nos setores mais organizados, com uma indomável disposição de luta. As ilusões reformistas de que seria possível mudar a sociedade sem um conflito de grandes proporções, sem uma ruptura com a classe dominante, eram majoritárias e a estratégia do “Lula lá” embalou as expectativas de uma geração.

6. A classe trabalhadora não foi capaz de manter o controle sobre as suas organizações e os seus líderes, depois da inversão da correlação de forças entre as classes, em 1995, quando da vitória eleitoral de FHC, embalado pelo Plano Real, e a terrível derrota da greve dos petroleiros. Sem vigilância, o aparato burocrático dos sindicatos agigantou-se, monstruosamente, e o aparelho do PT se adaptou, eleitoralmente, ao regime, e ficou irreconhecível. O PT já tinha demonstrado nas prefeituras, governos estaduais e no Congresso Nacional que era uma oposição ao governo de plantão, mas não era inimigo do regime democrático-liberal de tipo presidencialista que vingou depois de 1985. Não era sequer inimigo irreconciliável do estatuto da reeleição, uma deformação antirrepublicana e, especialmente, reacionária. A burguesia já admitia, desde 1994, que o PT pudesse ser um partido de alternância disponível para exercer o governo em um momento de crise econômica e social mais séria. Lula e Zé Dirceu assumiram, publicamente, mais de uma vez, compromissos com a governabilidade das instituições, exercendo pressões controladoras sobre os movimentos sociais sob sua influência. Lula não foi um improviso como Kirchner. Lula não foi uma surpresa como Evo Morales. Lula não foi considerado um inimigo como Hugo Chávez.

7. É preciso distinguir o que foram os governos do PT, das percepções e ilusões que ainda beneficiam Lula nas pesquisas de opinião para 2018. O crescimento econômico entre 2004 e 2008, interrompido em 2009, porém, recuperado com exuberância em 2010, foi inferior à média do crescimento dos países vizinhos, mas a inflação foi, também, menor. Desde 2011, com Dilma, o Brasil entrou em fase de estagnação econômica e reprimarização produtiva. As medidas contracíclicas foram em vão. Tentou-se um pouco de tudo: (a) a redução da taxa Selic e os financiamentos do BNDES às obras das grandes empreiteiras à frente do PAC (hidroelétricas na Amazônia, as novas refinarias Abreu e Lima e Comperj, as sondas para a exploração do pré-sal); as isenções fiscais; as privatizações generosas de aeroportos; novas e ambiciosas parcerias público-privadas, como os estádios e aeroportos; favorecimento e garantias redobradas aos investimentos estrangeiros; além de sinalização de novas reformas trabalhistas e previdenciárias. A burguesia foi se deslocando, aos poucos, com hesitações, para a oposição.

8. Eis a chave de explicação do sucesso popular dos governos do PT, até que em 2015 Dilma assumiu o programa do PSDB, e rompeu com a base social do lulismo: reduziu o desemprego a taxas menores que a metade daquelas que o país conheceu ao longo dos anos 90; permitiu a recuperação do salário médio que atingiu em 2011 o valor de 1990; aumentou a mobilidade social, tanto a distribuição pessoal quanto a distribuição funcional da renda, ainda que retornando, somente, aos patamares de 1990, que eram, escandalosamente, injustos; garantiu uma elevação real do salário mínimo acima da inflação; e permitiu a ampliação dos benefícios do Bolsa-Família. Foi um governo quase sem reformas progressivas e muitas reformas reacionárias, porém, com uma governabilidade maior que seus antecessores. Mas estes dez anos não passaram em vão. Uma reorganização sindical e política pela esquerda do governo, e das velhas organizações, como a CUT e o PT começou, ainda que o processo de experiência tenha sido lento. O fortalecimento inequívoco do PSOL nas eleições de 2016 sinaliza o que ainda pode estar por vir, mas ainda está em disputa.

9. Algo fundamental mudou em 2016 e subverteu a relação social de forças. As manifestações na Paulista a partir março de 2015 deram visibilidade a núcleos quase subterrâneos, e muito divididos entre si, de uma direita errática, e lograram colocar em movimento, na escala de milhões, setores médios e até, minoritariamente, populares (articulados, predominantemente, a partir de Igrejas evangélicas), e levaram a direita institucional a reboque. Abriu-se no Brasil uma situação defensiva do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores. O julgamento de Lula será tão político como o de Dilma. Qualquer ilusão na neutralidade da LavaJato será fatal. Portanto, o presumível é que ele vai ser condenado, e não poderá concorrer em 2018. É improvável que seja possível incendiar a classe trabalhadora para ir às ruas contra a condenação de Lula, se não foi possível mobilizá-la para tentar impedir o impeachment. No entanto, ninguém na esquerda deveria permanecer neutro diante da manobra política jurídica que tenta impedir Lula de poder ser candidato. Esta operação é uma continuação da ofensiva que começou em março de 2015, e culminou com o impeachment. Só poderemos criticar o PT diante dos trabalhadores, fazendo o balanço dos seus treze anos no governo, se tivermos a grandeza de defender Lula contra o ataque de nossos inimigos de classe.

10. A esquerda sindical combativa, os partidos da esquerda socialista, enfim, todas as organizações revolucionárias, ainda que, lamentavelmente, fragmentados, porém, com um espaço importante de diálogo com a juventude e setores mais organizados dos trabalhadores, não deverão apoiar uma candidatura do PT em 2018, seja quem for o candidato. É possível construir desde já uma alternativa nas lutas e nas eleições. É possível superar a etapa das divisões, e abrir uma etapa de reorganização com unificações e blocos. Ficou provado no Rio de Janeiro com a espetacular mobilização de uma nova militância alcançada em torno de Marcelo Freixo. Dizia-se que, com a crise do petismo, seria tão grande a desmoralização que teríamos que esperar o espaço de uma geração, vinte cinco ou até trinta anos, para que uma alternativa ao lulismo pela esquerda pudesse alcançar influência entre os trabalhadores.Esse foi o argumento mais repetido contra a esquerda anticapitalista. Resumia-se a uma lamentação: não adiantava ter razão nas críticas aos governos do PT, mas não conseguir sair da condição de minoria. A resposta a ela não é difícil: sim, é possível, mas há ainda uma grande pré-condição. Só poderá acontecer quando se levantar uma onda de luta no movimento dos trabalhadores e da juventude. Propostas anticapitalistas não ganham influência de massas a não ser em situações revolucionárias, ou pelo menos transitórias. Entretanto, uma avalanche já começou. A ruptura com o petismo não é algo para um futuro incerto. São muitos milhões que já romperam. É toda uma enorme parcela da geração mais jovem da classe trabalhadora que já perdeu esperança no lulismo. O que há de velho, de apodrecido, de corrompido no movimento dos trabalhadores e da juventude precisa ser deslocado, para abrir o caminho. Acontece que o ritmo dos dois processos não é o mesmo: a ruína da influência do petismo tem sido mais rápida que a construção de novos instrumentos de luta. A questão é saber se aqueles que rompem com o lulismo encontrarão ou não, exterior ao PT, e em oposição irreconciliável ao governo Temer, um polo de esquerda unido e, suficientemente, forte que possa ser um ponto de apoio para a defesa dos seus interesses.

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