As suas “memórias” dão o retrato de um período em que os elementos dessa enorme tragédia se misturam com a acção de personagens moral e pessoalmente abjectos, aspecto em que, evidentemente, se destaca.
Na contra-capa das memórias de Boris Ieltsin*, a editora Livros do Brasil insere a opinião de um historiador inglês, Geoffrey Hosking, segundo o qual o ex- presidente da Rússia escreveu «uma obra extraordinariamente interessante», por ser «muito honesta».
Mente. É desonesta e desinteressante.
Pretende ser um Diário. Não é. Foi escrito entre Agosto de 1991 e Outubro de 1993. Depois parou. Alguns capítulos são datados; outros não.
Mas dificilmente o livro pode enquadrar-se no género memórias.
Tudo é mau nele. A reflexão sobre a História, as opiniões sobre militares, ministros, amigos, adversários e inimigos. A evocação do passado em diferentes épocas interrompe abruptamente o relato de crises em desenvolvimento.
O título da obra na tradução portuguesa é «A Luta pela Rússia», mas a maioria dos leitores terá motivos de sobra para concluir que o titulo «A Luta contra a Rússia» seria muito mais adequado.
Os primeiros capítulos são dedicados aos acontecimentos de Agosto de 1991 e ao fracassado putsch cujo desfecho foi a secessão das repúblicas que constituíam a União Soviética.
Anos depois, já com Ieltsin instalado na presidência da Rússia, conheci Anatoly Lukyanov, presidente do Soviete Supremo durante o governo de Gorbatchov.
Encontrava-me en Moscovo em Dezembro de 1993 como membro da Assembleia da Republica convidada a acompanhar as eleições para o Assembleia Federal russa, um parlamento bicameral.
A atmosfera era incompatível com uma consulta democrática.
A eleição seria regulamentada pela nova Constituição, mas o povo desconhecia esse texto, que fora publicado pelo Pravda horas antes do início da votação.
Os partidos distribuíam propaganda nas secções de voto e registei que marido e mulher entravam simultaneamente nas cabinas de votação. Transmiti como observador numa secção o meu protesto ao presidente da mesa e ele respondeu que, sendo marido e mulher, «dormindo na mesma cama, não havia motivo para não votarem juntos».
Recordo que eu e um deputado comunista grego, num plenário de observadores internacionais realizado na embaixada da França, fomos os únicos entre centenas a declarar que as eleições careciam de credibilidade mínima.
Anatoly Lukyanov contou-me que Gorbatchov já estava totalmente desprestigiado na Rússia muito antes do putsch de 91. Teimava em fazer a apologia da perestroika mas mal o ouviam. A maioria dos membros do Politburo, quando ele falava, olhava para Alexandr Yakovledv que fora o ideólogo da chamada reestruturação e era o mentor intelectual do secretário-geral do Partido.
A atmosfera era de descontentamento generalizado. As massas encaravam com apreensão o futuro imediato.
A economia, em vez de aumentar, afundara-se. Nos supermercados havia escassez de alimentos e de outros produtos essenciais.
Ieltsin, meses antes, exigira a demissão de Gorbatchov, mas depois entendera-se com ele para promoverem a substituição da URSS por uma «confederação de estados soberanos». O projeto não teve pernas para andar e quando o grupo que concebeu o putsch anunciou que Gorbatchov estava doente e incapacitado para exercer as suas funções, Ieltsin deu uma cambalhota.
Os mais destacados lideres putschistas - Yanaiev, o general Yazov e Kyuchkov, chefe do KGB - atuaram como noviços em política.
Decretaram o estado de emergência em Moscovo, assumiram o controlo da televisão e da radio e mobilizaram importantes forças militares que cercaram o edifício da chamada Casa Branca, onde então funcionava o governo da Rússia. Mas esqueceram-se de cortar o telefone do gabinete de Ieltsin.
Este pôde falar com altas patentes militares e sair da Casa Branca sem ser detido, subir para um tanque, arengar dali o povo num discurso inflamado e regressar tranquilamente ao seu gabinete de trabalho. Conversou depois pelo telefone com Yanaiev e outros putschistas.
Lukyanov, na conversa que mantivemos, esboçou um quadro da situação muito diferente daquele que Ieltsin e os governantes e media do Ocidente apresentaram ao mundo. Segundo ele, os moscovitas saíram às ruas numa atitude de expectativa. Não apoiaram o putsch, mas também não aclamaram Ieltsin.
A Casa Branca estava indefesa e podia ter sido ocupada, segundo o próprio Ieltsin, por um simples comando de tropas especiais. Mas não houve ataque.
Desde o início, o golpe assumiu contornos de comédia dramática.
Lukyanov, que participara discretamente no putsch, contou-me que Gorbatchov, que estava em férias na Crimeia, saiu sem ser preso da residência e tomou o avião para Moscovo depois de recusar a proposta para renunciar apresentada pelos representantes dos golpistas.
Na capital, recebido afetuosamente por Ieltsin, submeteu-se docilmente a todas as imposições do presidente russo.
A suprema capitulação foi o documento assinado por ambos que extinguiu o Partido Comunista da URSS.
Não houve porem resistência. O Partido, que contava então quase 20 milhões de filiados, havia apodrecido há muito; não era mais uma organização revolucionária.
THATCHER E OS ESTADOS UNIDOS
No capítulo seguinte, rompendo a desordenada cronologia, Ieltsin comenta os seus contatos com líderes ocidentais. Cobre de elogios Margaret Thatcher e George Bush, confessa ter aprendido muito com ambos, e escreve a propósito do encontro com a primeira-ministra britânica: «não me recordo de ter mantido uma conversa mais interessante em toda a minha vida». Graças a «essa grande dama, a sinceridade tornou- se componente da diplomacia». Bush também o deslumbrou. Mas esclarece estar «imensamente grato» aos primeiros-ministros da França, da Espanha e da Itália».
À sabedoria do chanceler alemão Helmut Kohl deve também muito.
A sua visão do mundo mudou, confessa, durante a primeira viagem aos EUA em 1989. Ao sobrevoar a estátua da liberdade em Nova Iorque foi tocado por «uma forte sensação de liberdade». Mas foi durante uma sauna, mais tarde, que teve uma revelação: «eu era um comunista por tradição soviética, por inércia, por educação, mas não por convicção». Terá sido esse um dos seus raros desabafos honestos.
Uma conversa que escutou entre Dick Cheney e James Baker, quando o primeiro pedia ao outro um sumo de frutas, ajudou-o a perceber os EUA. E formulou a si mesmo uma pergunta: «Por que serão assim os americanos? Compreendi que isso se devia ao fato de serem pessoas absolutamente independentes – mesmo do próprio presidente - e por isso podiam trabalhar pelas suas ideias, por uma causa».
Páginas como essas parecem escritas por um ser extra-terrestre.
O BOMBARDEAMENTO DA CASA BRANCA
O capítulo 6 é dedicado à «terapia de choque», a receita do FMI e do Goldman Sachs, para destruir a herança da Revolução de Outubro e implantar o capitalismo selvagem sobre as ruinas da economia soviética.
Pelo meio, muitas páginas são dedicadas à esposa, às filhas e netas e a insultos ao povo russo e à incapacidade por ele manifestada através dos seculos para «aderir a uma política consistente». Somente apos meados do seculo XIX, com o czar Alexandre III, terão entrado «finalmente na família das nações civilizadas». Mas por pouco tempo.
Reconhece e comenta o fracasso da «terapia de choque». E desanca o super-ministro Guennady Burbulis e o seu amigo e homem de confiança Yegor Gaidar que na reconversão da Economia não «tinha compreendido o seu próprio papel e o seu lugar».
A corrupção atingira níveis inéditos. Milhões de russos tinham caído em pobreza extrema. Quando a situação se tornou explosiva, Gaidar, então primeiro-ministro, sem consultar Ieltsin, apresentou no Parlamento a demissão coletiva do governo.
Surpreso e indignado, Ieltsin comenta: «Foi como se me desse um murro na cara».
O parlamento rejeitou a demissão coletiva e exigiu apenas a saída de quatro ministros.
Os acontecimentos precipitaram-se, tomando um rumo imprevisto.
O presidente do Congresso - constituído por duas Camaras - Rutskoi, que era vice presidente da Rússia, pronunciou um discurso desafiador.
Ieltsin, que em capítulos anteriores elogiara as suas qualidades, despeja sobre ele uma torrente de críticas. Alias qualifica muitas vezes os inimigos de fascistas e insiste em se apresentar como um paladino da democracia.
Para caracterizar a caótica situação existente, utiliza uma linguagem enigmática que poucos entenderam: «o país estava a entrar num período difícil de alienação social».
Um terço do livro, quase 100 páginas, é dedicado ao conflito com o legislativo que desemboca no bombardeamento e quase destruição do edifício da Casa Branca, sede do Congresso.
Ieltsin, instalado então no Kremlin, lembra que Bush lhe telefonou pedindo que evitasse a saída de Gaidar.
A narrativa toma rumos inesperados. O autor pula com frequência de reminiscências da juventude, da sua carreira no Partido nos Urais para o namoro com a futura mulher, e dai para episódios do quotidiano familiar, a reforma monetária, para voltar ao conflito com o Legislativo a que chama alternadamente Congresso, Parlamento e até Soviete Supremo.
Porque Ieltsin era alcoólatra, sou levado a crer que muitas páginas, caóticas e delirantes, foram escritas em estado de embriaguez.
A rebelião armada do Parlamento em Outubro de 1993 é comentada em três capítulos. As Forças Armadas tardaram a atender aos apelos dos chefes militares que apoiavam Ieltsin, mas, após uma fase de hesitações, bombardearam a Casa Branca, matando dezenas de deputados.
Sublinho que alguns membros destacados do Parlamento e o seu líder, Rutskoi, tinham sido aliados de Ieltsin na luta contra o putsch de 91.
Ieltsin informa que os participantes presos apos o golpe de 91 e os participantes nos acontecimentos de Outubro de 93 foram todos amnistiados sem julgamento em Fevereiro de 1994.
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Conclusão pessoal. Ieltsin é um desequilibrado, profundamente reacionário, na fronteira da loucura.
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*Boris Ieltsin A Luta pela Rússia, Editora Livros do Brasil, 364 págs., Lisboa, 1994