Foi na Internet e não na televisão que Trump fez propaganda. Com o estratega neofascista Steve Bannon e a sua equipa de físicos e engenheiros da Analytica, a campanha de Trump desenvolveu 50 mil perfis individuais de eleitor, permitindo aquilo a que se pode chamar micro-propaganda.
Quando, há cerca de um mês, Donald Trump venceu as presidenciais estado-unidenses, a maioria dos órgãos de comunicação social do planeta constataram que não tinham uma única boa explicação para o sucedido. Então, num espectáculo de leitura constrangedora, milhares de comentadores, colunistas e «especialistas» fizeram o que sabiam: perguntaram à Internet uma qualquer variante de «por que venceu Trump?» e deixaram que o Google desse a resposta. O resultado foi uma avalanche de notícias falsas e explicações desprovidas de base científica: não, não foram os operários do Cinturão da Ferrugem quem deu a Casa Branca a Trump; é mentira que os trabalhadores mais pobres se tenham virado para o Partido Republicano e todas estatísticas que atribuem o ónus à cor da pele, ao sexo ou à habilitação literária esquecem-se de que Mitt Romney perdeu as eleições de 2012 com mais votos do que Trump e um eleitorado idêntico. Mas, com este péssimo exemplo de informação desinformada, a comunicação social da classe dominante conseguiu, acidentalmente, revelar um dos segredos da vitória de Trump: a Internet como arma de desinformação individualizada.
Num excelente trabalho de investigação do The Guardian, publicado na semana passada, a jornalista Carole Cadwalladr constata que o Google parece querer conduzir-nos para sites de neofascistas, portais de notícias falsas e organizações de direita. O Google é, hoje em dia, sinónimo de Internet. Um gigante que, em menos de vinte anos, conquistou o monopólio da gestão do conhecimento digital do mundo, controlando, a 63 mil pesquisas por segundo, a hierarquia das nossas fontes e, consequentemente, a nossa percepção sobre o que é verdadeiro e o que é falso. Quando, por exemplo, escrevemos no Google (em inglês) «por que é que os comunistas...», o motor de busca sugere que completemos a pergunta com: «por que é que os comunistas são maus?», «por que é que os comunistas são odiados», etc. apresentando de imediato dezenas de sites ligados à extrema-direita dedicados à produção de notícias falsas. No contexto português, se perguntarmos «em que partido votar», o Google conduz-nos para as peças mais proselitistas do Observador e a «testes» que, mesmo respondendo com as posições do PCP, insistem que devemos votar no Bloco de Esquerda.
Micro-propaganda
O Google, à semelhança do Facebook, do Twitter e de outros gigantes da Internet, não revela a mecânica do seu algoritmo, pelo que é impossível saber ao certo por que razão nos conduz para uma página e não para outra, mas a campanha de Trump demonstrou que o futuro da propaganda passa por compreender o nebuloso funcionamento da Internet.
Foi na Internet, e não na televisão, que Trump fez propaganda. Com o estratega neofascista Steve Bannon e a sua equipa de físicos e engenheiros da Analytica, a campanha de Trump desenvolveu 50 mil perfis individuais de eleitor, permitindo aquilo a que se pode chamar micro-propaganda: anúncios personalizados em função do que o Google, o Facebook e o Twitter sabem sobre nós. E estas empresas garantem saber quem nós somos. Da mesma forma que a Internet às vezes parece saber de que produtos ou marcas gostamos, a campanha de Trump sabia, com um grau de certeza sem precedente histórico, quem estava desempregado, quem era operário, quem era negro, quem estava grávida, quem tinha um seguro de saúde dispendioso, etc.
Outra inovação da micro-propaganda digital é a sua natureza dinâmica. Ao bombardear os eleitores com propaganda personalizada, é possível gerar níveis de interacção que alteram o nosso perfil na Internet, convencendo o Google de que «gostamos» dessa opção política. Um dos feitos mais impressionantes da campanha de Trump foi gerar uma nuvem de centenas de sites de propaganda, notícias falsas e depósitos de «conteúdos» sem qualquer credibilidade capazes, no entanto, de competir de igual para igual com gigantes como a CNN. O segredo destes sites consiste precisamente em surgir primeiro nos motores de busca explorando o que a Internet pensa que somos.
De uma prisão fascista, António Gramsci parecia ver a lonjura dos nossos tempos: «o velho mundo está a morrer e o novo luta por nascer: este é o tempo dos monstros», escreveu. Os efeitos cognitivos e ideológicos da apropriação capitalista da Internet, ainda na infância histórica, têm o potencial de multiplicar os monstros e reduzir o que nós somos ao que a Internet pensa que somos.
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2246, 15.12.2016