E isso porque, para Žižek, uma crítica da ideologia “nos obriga a inverter a frase de Wittgenstein, ‘do que não se pode falar, deve-se guardar silêncio’, para ‘o que não se pode falar, não se pode calar’”. O que o agridoce filósofo esloveno quer salientar com essa inversão é que, antes de se pretender dizer toda ou “mais verdades” sobre determinado fenômeno, o fundamental no discurso que não se cala diante da proibição ética/política é dar voz ao excesso inerente a esse mesmo fenômeno que, se por um lado o ameaça, por outro o completa. Além do que, uma crítica que não vai além do que critica, isto é, que não se aventura a dizer mais do que o criticado “permite”, faria um trabalho tímido demais.
A primeira parte da crítica žižekiana da ideologia pós-colonialista recai sobre os próprios acadêmicos pós-culturalistas contemporâneos. O filósofo, em primeiro lugar, lembra-nos de que “a grande maioria dos acadêmicos ‘radicais’ da atualidade, silenciosamente conta com a estabilidade de longo prazo de uma posição de trabalho segura”. E isso para dizer que eles, quando lidam de modo politicamente correto com questões de sexismo, gênero, racismo, xenofobia, exploração dos trabalhadores etc., estão na verdade presos “a um ritual compulsivo cuja lógica oculta é: Falar o máximo possível sobre a necessidade de uma mudança radical, para nos assegurarmos de que nada realmente vai mudar!”.
Ou seja, as questões com que grande parte dos acadêmicos pós-colonialistas se ocupam, e para as quais buscam “soluções” teóricas, é melhor que, na prática, não encontrem soluções, pois só assim, mantendo vivo o problema de que tratam, eles manterão pertinentes as suas pesquisas e, consequentemente, os seus privilegiados salários acadêmicos. E isso porque, critica Žižek, suas escolhas e atos já são “um ato dentro das coordenadas ideológicas hegemônicas”. Dito de outro modo, eles são concretamente o mundo colonizado a respeito do qual fazem abstrações teóricas descolonializantes. Para Žižek, são como o pós-moderno padrão, cuja lógica é “vamos continuar mudando algo todo o tempo para que, globalmente, as coisas fiquem iguais”.
Dessa visada, pode parecer que Žižek está dizendo que somente aqueles que não têm nada a perder poderiam abordar a realidade de modo autêntico. “Só que não!” Face à inautenticidade dos acadêmicos pós-colonialistas do Primeiro Mundo, o filósofo faz um elogio aos ideólogos e práticos do Terceiro Mundo. Estes, pelo menos assumem mais honestamente o fato de serem cativos das coordenadas globais do capitalismo. E aceitar corajosamente que se é parte do problema com o qual se está envolvido, porventura não é começar justamente por aquele excesso intrínseco que todavia pede desesperadamente para que se cale a respeito de si?
Já a segunda parte da crítica žižekiana da ideologia pós-colonialista ataca o hoje popularizado – e por que não dizer sacralizado? – “direito de narrar”. Para Žižek, o Calcanhar de Aquiles do direito de narrar é que ele usa “uma experiência particular singular como argumento político”. Por exemplo: só um jovem pobre gay latino-americano pode dizer o que significa ser um jovem pobre gay latino-americano. Entretanto, adverte o filósofo, “tal recurso a uma experiência particular que não pode ser universalizada é sempre, por definição, um gesto político conservador”. E o perigo disso é que, se qualquer um pode se valer de sua experiência singular para se justificar, pode-se com isso serem justificadas experiências abomináveis. Dentro dessa lógica absolutamente permissivista, deveríamos nos calar diante de muçulmanos radicais que matam seja lá quem for. Afinal... não sabemos o que é ser um muçulmano radical.
Mutatis mutandis, a crítica do pós-colonialismo é do pós-modernismo se confundem. A pós-modernidade é conhecida por ser a Idade onde inexistem certezas absolutas, verdades universais, ou, nietzschianamente falando, a era na qual “Deus está morto”. O problema é que, aponta Žižek, sem a referência a uma dimensão universal de verdade, o que resta é uma profusão de perspectivas, de narrativas, que, no final das contas, dá espaço à “narrativas ridículas”, tais como “a supremacia da sabedoria aborígene holística”, e o que é mais grave, o desprezo à ciência como se se tratasse de “apenas mais uma narrativa entre as superstições pós-modernas”.
Para escapar a esse relativismo, que, como vimos, pode facilmente endossar absurdos, Žižek propõe que qualquer abordagem pós-colonialista deve estabelecer a priori critérios externos à narrativização –atitude paradoxalmente contrária à ladainha pós-moderna pós-colonialista. Retomemos o exemplo anterior. Um jovem pobre e gay latino-americano narrando a sua experiência existencial a um grupo de senhores ricos heterossexuais europeus. O critério que estes têm de preestabelecer é o seguinte: nada do que aquele narrar será alienígena a eles, às suas possibilidades de compreensão. Afinal, “jovem” só faz sentido contraposto a “velho”; “pobre”, a “rico”; “gay”, a “heterossexual”; e assim por diante.
Ainda que somente negativamente, uma pessoa pode, em determinado nível, compreender a experiência existencial singular de outra, afinal, estamos falando de seres humanos que a priori pertencem a um universal comum, qual seja, a humanidade. Desse modo, o medo pós-colonialista de que a comparação de singularidades as anula, atenta justamente contra o fundo comum sem o qual a própria ideia de singularidade deixa de fazer sentido.
Para esclarecer melhor o seu argumento, Žižek vale-se provocativamente da defesa politicamente correta da singularidade do Holocausto. Contra aqueles que acham que comparar, que relativizar a ignomínia nazista é inadmissível, o filósofo sustenta que “sim, o Holocausto foi singular, mas a única maneira de estabelecer essa singularidade é compará-la com outros fenômenos similares”. A provocação do autor ataca justamente a proibição à comparação, pois, nas palavras dele, “a suspeita atormentadora que emerge [da proibição à comparação] é que, se nos fosse permitido comparar o Holocausto com outros crimes similares, este seria privado de sua singularidade”.
Ora, se algo, alguém ou grupo desfruta de singularidade, o faz não porque foi resguardado de ser relativizado, comparado, mas, antes, porque pode sê-lo, sem que essa singularidade corra o risco de ser solapada. O zelo pós-culturalista em respeito às singularidades das narrativas na verdade é covarde: tem medo que as suas “singularidades” não se sustentem diante de singularidades minimamente diversas.
Pós-culturalismo corajoso é aquele que garante a singularidade de uma narrativa, de um fenômeno, justamente através do universal, do comum de que eles participam, ainda que seja da essência de uma singularidade resistir internamente a isso. A universalidade, fantasma à ideologia pós-culturalista, muito antes de comprometer uma singularidade, na verdade traz à luz o seu excesso, “aquilo” do singular sem o qual ele não é; ou, lacanianamente falando, “aquilo mais do que ele mesmo” que, entretanto, faz com que ele seja justamente o que é: uma singularidade dentro do universo.