As manifestações de descontentamento demonstradas por familiares de segmentos dos policiais militares, do Rio de Janeiro, representam o mais recente desdobramento dos dilatados protestos organizados pelos servidores públicos do estado, que ocorrem há meses.
Especialmente, esposas de PMs têm se dirigido nesses últimos dias às portas dos batalhões e lá se instalado, de modo a repercutir as mazelas que atingem aos servidores do setor da segurança pública e às suas famílias.
O descalabro administrativo e fiscal realizado pela dupla Cabral/Pezão, à frente do governo estadual, é por demais conhecido. Contínuos atos de corrupção, motivados pela flagrante submissão governamental aos interesses do grande capital nacional e internacional, sangraram as contas públicas e têm redundado na opção peemedebista em desmontar as condições de trabalho e vida dos servidores e da população.
Além de salários atrasados e demais direitos trabalhistas desrespeitados, fenômeno que perdura há mais de um ano, os desinvestimentos em múltiplos serviços públicos têm refletido a escolha do governo Pezão (PMDB) em fazer com que servidores e usuários dos serviços paguem a fatura da crise. Isso para assegurar o atual e abominável estado de coisas, que somente financia os altos lucros das grandes empresas. Muitas, multinacionais, isentas de impostos.
Em função do espúrio acordo estabelecido com o governo federal, capitaneado pelo entreguista e golpista Michel Temer (PMDB), o governador pretende privatizar a Cedae (companhia estatal de água e esgoto) e aprovar inúmeras outras medidas que já foram rejeitadas pela Assembleia Legislativa ano passado. Lembre-se ainda que o ex-governador Sergio Cabral Filho está preso e o TRE-RJ cassou o mandato de Pezão.
Isso posto, cumpre olhar com atenção e simpatia as ações e os reclamos dos familiares de policiais militares. Escrevo à quente, em meio ao processo social em curso – indefinido e em constante mutação. Mas, algumas ponderações são necessárias.
Essas ações dos familiares da PM são resultado do processo de politização e esclarecimento derivado das iniciativas conjuntas de diferentes segmentos do funcionalismo estadual do Rio, civil e militar, articulados por meio do Movimento Unificado dos Servidores do Rio de Janeiro (MUSPE).
Quem tem participado dos atos em frente à Alerj, desde o final de outubro, pode perfeitamente perceber a elevação dos níveis de criticidade e politização de amplos estratos do funcionalismo estadual. Também em setores da segurança, principalmente Bombeiros e Polícia Civil, porém, PM também incluída.
Trata-se de um aprendizado coletivo, que se tem dado por intermédio da interlocução de experiências e visões, da criação de convergências em torno de questões e problemas comuns, que afetam a todos. Evidentemente, não sem inúmeras contradições e limitações. Mas, o espírito de cooperação e unidade tem crescido, a olhos vistos.
Diga-se, ainda, que o setor da segurança, meses atrás, poderia ter aceitado a proposta de emenda parlamentar que o livrava da pretendida contrarreforma da previdência. Por outro lado, a proposta do governo busca aumentar a contribuição para 14% sobre os vencimentos, mais 8% “provisórios”.
Foram oferecidos projetos de emendas pelos deputados estaduais Flavio Bolsonaro (PSC) e Dionísio Lins (PP), que davam um tratamento à parte para a segurança. Os servidores da área recusaram e aderiram ao movimento geral do funcionalismo. Diga-se, por muito menos, não seriam nem são poucos os servidores que topariam a proposta ou se retirariam da luta social contra o descalabro promovido pela turma do PMDB e seus satélites.
Hoje, frações da PM tanto têm realizado ações repressivas e violentas nos protestos, quanto têm sido vítimas das mesmas, ao lado dos Bombeiros e de servidores do setor civil – Cedae, saúde, educação, ciência e tecnologia, justiça, Polícia Civil etc. Isso se chama contradição. Na linguagem marxista: dialética.
Todos os órgãos públicos do RJ têm divisões, clivagens, heterogeneidades entre os servidores. A segurança, no caso em relevo, a PM, está apresentando também as suas divisões. Infelizmente, não são poucas as frações dos servidores e das esquerdas cariocas que têm demonstrado dificuldade em perceber as potenciais implicações disso.
Uma percepção cristalizada e pouco afeita à observação do fluxo sobre o novo e o contraditório, em meio ao movimento, tem se manifestado e redundado em uma certa desvalorização inócua, senão infantil, da ação de setores da polícia. Muitos falam em marxismo. Poucos operam com ele enquanto instrumento de análise e percepção.
As contradições, as fissuras na dinâmica social, são precisamente algumas das principais matérias primas da reflexão marxista. Sem perceber isso, empobrece-se tanto o pensamento quanto a ação política, à esquerda.
Particularmente, a Polícia Militar é foco de muitas controvérsias. Não sem razão. Há muito é utilizada para o exercício da segregação no espaço carioca, via repressão e violação dos direitos humanos das populações faveladas, assim como para garantir o sossego dos poderosos, do grande capital, também reprimindo as manifestações públicas.
Isso tudo é de notório conhecimento. Eu mesmo, há tempos, tenho sido forçado a respirar muito gás e correr da polícia em protestos. Mas, a vida segue o seu fluxo e tem os seus movimentos próprios. Cabe enxergar.
Em primeiro lugar, observar que os estratos sociais que conformam a PM costumam ser mais humildes, travando contato direto com uma realidade brutalizada e socialmente injusta. Matam e morrem em meio aos mesmos estratos populares de origem de sua classe social, em uma guerra insana às drogas. Só o poder se beneficia com isso.
Os policiais ainda são cotidianamente estimulados pela pauta e pelos enquadramentos dos meios de comunicação a operar com uma lógica repressiva e sanguinária. Isso, há muito, com força de incidência política, com governadores eleitos sob a bandeira da segurança. A PM é também submetida a um código militar ultrapassado, que visa apartá-la das iniciativas, experiências e aspirações de demais setores do funcionalismo e do povo.
Considerando tudo isso, é realmente motivo para saudação o alinhamento de segmentos da PM a demais setores da segurança pública e do funcionalismo, em geral. Não sendo improvável um recuo (as pressões e as ofertas do governo estadual são ponderáveis), mas em função das posições anteriores, a expectativa é que frações da PM permaneçam sintonizadas com a pauta do movimento unificado.
Em meio a muitas contradições, as intervenções orais feitas por segmentos da PM, nos atos públicos, têm demonstrado também, como em muitos e outros setores do funcionalismo fluminense, maior criticidade política e ações de solidariedade.
Verdade seja dita: o cenário de hoje no Rio de Janeiro seria um sonho para partidos comunistas e demais organizações anti-imperialistas de esquerda, movimentos de libertação nacional etc. do Brasil e do 3o mundo, em geral. Isso, no passado.
Divisões entre braços armados do aparelho do estado; aberta erosão da legitimidade do sistema de poder; parca capacidade de cooptação e neutralização do descontentamento social pelo bloco de poder; identificação e iniciativas políticas de convergência entre diferentes setores do funcionalismo; repercussão e impacto nacional de tais ações etc.
Se tivéssemos partidos e líderes mais consequentes entre as esquerdas – e menos colonizados pelo liberalismo –, a estrutura de poder carioca, fluminense e brasileira colocava a barba de molho, mais do que já tem colocado.
Infelizmente, não temos. Então, é ressignificar o “software” político de muitos. Não se pode perder o germe de politização e criticidade antissistêmica em curso no estado do Rio de Janeiro. Cabe observar, participar e apoiar mais, em um sentido progressista, socialista, para que não se entregue os potenciais frutos a demagogos e fascistas de plantão.
Importa assinalar, acompanhando o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que o tão temido fascismo, antes de ganhar forma política, se enraíza em um perfil de sociedade destituída de direitos e coberturas coletivas solidárias. Nesse sentido, o “fascismo social” está presente de diferentes maneiras no Rio de Janeiro e no País.
Com efeito, decisivo é também bloquear os seus apelos e eventual crescimento político, que maiores danos sociais, políticos e econômicos ao estado e ao país acarretariam.
Vivemos no estado do Rio uma conjuntura social e política em ebulição, de claro corte antissistêmico – com potenciais e emergentes alternativas não convencionais, reacionárias ou progressistas. Um contexto que demanda atuação consequente das esquerdas. Sem medo do povo, de suas contradições e limitações, sem arrogância e presunção elitista, como têm se manifestado em alguns segmentos ditos de esquerda.
Uma nova rejeição do pacote de medidas neoliberais no Rio de Janeiro terá reverberação e impacto nacionais, permitindo a debilitação do vende pátria e reacionário Michel Temer, que quer submeter o País a um neocolonialismo turbinado e praticamente escravizar os trabalhadores. Isso requer unidade dos servidores e apoio da população.
Por fim, cabe registrar que, como ação imediata, tendo em vista impedir a privatização da Cedae, o MUSPE convocou novo ato público para terça-feira, em frente à Alerj.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político. http://jornalggn.com.br/blog/roberto-bitencourt-da-silva/os-protestos-dos-servidores-do-rio-e-a-participacao-da-seguranca-observacoes-marxistas#.WKDQpor2US0.facebook