Do ponto de vista político, o domínio da escrita e a habilidade da leitura consistem em recursos importantes para o exercício da cidadania. Como diria Paulo Freire, contribuem para a leitura do mundo.
Mas, infelizmente, é forçoso lembrar que não são os fatores decisivos para a alfabetização política. As experiências cotidianas e os contornos do tempo em que agem os sujeitos são aspectos mais importantes para uma politizada “leitura do mundo”.
Nos anos imediatamente anteriores ao golpe civil-militar de 1964, grossa parte da população não era letrada. Era “analfabeta” do ponto de vista escolar.
Porém, prevalecia uma imprensa não oligopolizada – somente na cidade do Rio de Janeiro havia mais de 20 jornais em circulação –, e uma televisão que não possuía influência maior nos esquemas de percepção da população.
Ademais, entre os estratos baixos e altos das classes trabalhadores, bem como em frações da pequena burguesia, as experiências cotidianas no trabalho, nas escolas, nas universidades e nos quartéis, permitiam uma percepção mais aguçada do país em que viviam.
Os partidos, de esquerda e direita, assim como os sindicatos de trabalhadores, guardavam boa margem de coerência nas ações e legitimidade junto às suas bases sociais. Por isso, tinham capacidade de desempenhar um papel politicamente educativo.
Um trabalhador humilde tinha clareza de que o capital estrangeiro subtraía muito mais riqueza do que criava no país, bem como identificava no latifúndio uma opressão aos trabalhadores rurais, além de encarecer os alimentos nas cidades, gerando a “carestia”.
Muitos trabalhadores urbanos, sem passar pela escola ou com baixa escolaridade, conseguiam compreender assuntos áridos, para os padrões dos nossos dias, como as transferências dos lucros dos chamados investimentos externos para o exterior.
Não só compreendiam, como demandavam solução política para o que se entendia ser uma “espoliação” sobre os frutos dos trabalhadores e uma “sangria” das riquezas nacionais.
Os Estados Unidos eram concebidos como uma potência perigosa, que ameaçavam os interesses nacionais, na cosmovisão de amplas faixas das classes trabalhadoras e médias.
Hoje, a imbecilidade campeia, o analfabetismo político grassa na terra brasilis. Isso a despeito da elevação dos níveis de escolaridade e, em tese, dos domínios das competências na escrita e na leitura.
Educação escolar e universitária, oferecida ou apropriada, na melhor das hipóteses, de maneira meramente instrumental e despolitizada é o que temos em nossos tempos.
Por outro lado, a principal formadora de (in)consciências, comportamentos, categorias de percepção sobre o mundo e atitudes, está longe de ser a escola.
O sujeito compra um casaco ou um aparelho celular de marca norte-americana e se identifica com os Estados Unidos. A sua afeição, do ponto de vista identitário, é com o “grande irmão” do Norte, pouco se lixando para o Brasil. A sua mente é colonizada pela mercadoria. Quem a faz ou está associado a ela é exaltado. "Viva os EUA", diz o bobalhão.
Veste uma camisa da CBF e sai às ruas clamando contra a “corrupção”. Contribui para colocar inúmeros sujeitos comprometidos com práticas torpes, corruptas, antipopulares e antinacionais.
Contribui para formar um governo ilegítimo, que adota medidas que, em boa medida, irá causar danos diretamente a si mesmo, o pregador da “moralidade”, ontem, via golpe.
A imbecilidade e a obscuridade venceram. Com certificados escolares e universitários. Por ora.
O analfabetismo político impreante, cujos irmãos são a imbecilidade e a obscuridade, tem pai e mãe: o golpe civil-militar de 1964 e a Rede Globo. São essas experiências que conformam boa parte do cotidiano da nossa gente.
O pai, portador de influências duradouras, autoritárias, suscitou a valorização da subalternidade em relação ao exterior (o eterno complexo de vira-latas) e em parte expressiva das relações sociais no país.
A mãe, os conglomerados da família Marinho, opera cotidianamente sob a forma daquilo que o filósofo Ludovico Silva chama de “mais-valia ideológica”. Isto é, o prolongamento simbólico da exploração e das relações sociais desiguais, no tempo de descanso e que deveria ser dedicado à reflexão autônoma dos sujeitos.
Eis o papel que a Rede Globo desempenha: embota as capacidades de percepção sobre os próprios sujeitos, sobre os seus potenciais interesses e suas situações reais de vida, como também em torno das necessidades do país em que vive. O analfabetismo político é o fruto da Rede Globo.
Hoje, o analfabeto político, tão lépido e fagueiro, quanto oco e facilmente manipulável, dá suporte a um governo espúrio, assentado nas abomináveis, mas endeusadas, “instituições”.
Roberto Bitencourt da Silva - historiador e cientista político.