Memórias de uma indocumentada - Prefácio
Por Priscila Casasola Vargas, Zacapa, junho de 2014
Prefácio do livro de Ilka Oliva Corado
Tradução de Raphael Sanz
Ler a Ilka é parar de frente a ao limiar de uma porta e ser, de primeira, absorvido por uma vorágine de palavras que desembocam em multidões de sentimentos dos que não há volta, porque uma vez lido, não pode ser ignorado.
A conheci, melhor, nos conhecemos de uma forma sui generis, ainda que penso que da mesma forma que se dão milhares de encontros nesse mundo, cada um com suas próprias características. Aconteceu que deixei uma tarefa a minhas estudantes e elas, em sua busca virtual, encontraram Ilka e me passaram informações de seu blog. A princípio pensei que fosse europeia, mas quando vi sua fotografia, não soube onde situar sua origem. Grande foi minha surpresa ao saber que é minha conterrânea, não apenas de país, mas de região e porque sua família paterna é do lugar de onde eu nasci.
Nessa ocasião, me toca falar de sua obra, sua Travessia, que deu início há pouco mais de 10 anos, quando soltou-se das amarras e se lançou à aventura de viajar ao norte. Uma viagem que muitos empreenderam, mas que ela no deixa conhecer em seus pormenores. A Travessia está dividida em onze capítulos, ou etapas, ou progressos, ou avanços. Cada momento da viagem vai deixando no leitor uma ânsia de continuar lendo. Não faltará quem a taxe de exagerada, aludindo que sua história talvez não seja verdadeira, que aborrece demais com a questão do migrante, que seguramente quer sentir-se protagonista, e por aí vai. Agora me digam, quem aqui não é protagonista da própria vida?
Ilka, que segundo dizem é a forma holandesa e húngara para Helena, se levanta um dia e deixa sua vida na Guatemala e com ela as tradições que eram costume familiar. Desde fazer o café, até a despedida no aeroporto, rumo ao México, nos deixa a narração do primeiro capítulo. No segundo, a vemos chegando à Cidade do México, onde a esperava uma “amorosa tia” que a introduz aos meandros do tráfico de pessoas indocumentadas. Enquanto viajava no avião recebeu um convite, ainda que não oficial, nem formal, que muitos árbitros já desejaram: conhecer as instalações da Federação Mexicana de Futebol. Mas não, sua travessia a levava a um pequeno vilarejo no estado de Morelos onde aprenderia como se passar facilmente por uma mulher natural de Vera Cruz, outro estado mexicano.
Os capítulos três, quatro e cinco nos levam até Água Prieta, Sonora, povoado que limita com a pequena cidade de Douglas, no Arizona. Ali, estas duas cidades compartilham a linha, esse limite maldito onde caíram mortas milhares de pessoas que tentaram passar ao outro lado. Ali, Ilka viveu em carne própria o horror da fronteira: estupros, drogas, traição... Ali a conhecemos com outro nome, Chilipuca, a da sorte, que a segue acompanhando. O que nos relata é impossível de ser repetido, porque nem quem viveu situações semelhantes quer recordar, e por isso emudece e morre por dentro, apagando esta luz interna que muitas vezes nos salva do cinismo. É incrível como estando tão próximos dos Estados Unidos, seja tão tortuoso o passo, saltando cercas, deixando a pele e a carne nos alambrados que separam os países, em uma fronteira desumana, batizada com sangue e fogo.
Duas pedras de amuleto e um guia adolescente nos apresentam o capítulo seis. Já está no Arizona e ali volta a Ilka indômita, que com o instinto de uma infância rodeada pela natureza, consegue sortear os quilômetros de deserto que agora deve atravessar. Não vai sozinha, é um grupo, mas o que se atrasa fica para trás, dando ares de uma romaria de solidões.
O capítulo sete e também o oito parecem tirados de um jogo de vídeo game, desses que agora disfrutam as crianças e os jovens em seus telefones celulares, computadores, tabletes ou em enormes painéis planos. São jogos de caça. Neles, o protagonista vai disparando e matando seus “inimigos”. Um artigo publicado na revista Psycology Today comenta que o auge desses jogos está no fato de oferecer a oportunidade ao jogador de adotar sessões da identidade do protagonista, permitindo-o uma espécie de sonho desperto de uma realidade fantástica que gostaria secretamente de viver. Contudo, é bom prevenir, isso vai mais além de um escapismo, os jogadores não estão escapando de algo, estão escapando na direção de algo. Por isso, o relato de Ilka é uma mostra da barbárie a que pode chegar uma pessoa que se sinta poderosa com uma arma na mão, ou a que o poder estatal permite abusar dos indefesos. Estes capítulos me crisparam os nervos e me fizeram sentir o terror, a angustia, a dor e os desejos de gritar pelos inocentes que seguem ficando nessa fronteira da morte.
E quando parece que o desenrolar desta travessia está próximo do final, lemos os capítulos 9 e 10, mas não, falta muito mais, porque Ilka segue escrevendo desde a pequena esquina que organizou como oficina no apartamento onde vive atualmente. Em sua travessia, o grupo com quem viajava se perde no deserto. Feridos com golpes e escoriações no corpo, não deixaram de caminhar, o que os levou quase até Tucson e os distanciou de Douglas. Foram valentes, porque ver morrer alguém não é brincadeira. O sangue tem um cheiro característico que fica na memória, também os gritos e disparos. São os demônios que logo provocam insônia e alterações psicológicas e que não se tratam porque não saem a superfície. Quem sabe o que dirá Freud, Jung, Rogers e outros tantos se ouvissem os migrantes, e se estes últimos se atrevessem a contar o que viveram?
Termino minha intervenção comentando o capítulo onze, o final da travessia que termina em um onze de novembro. Para muitos esta data poderá passar como um dia qualquer dos outros 364 que restam no calendário. Contudo, para Ilka, foi o reencontro com sua hermana-mamá, e para mim, é o dia em que meu pai celebra seu aniversário.
Sua travessia foi tão real como é a própria Ilka: humana, franca, sensível, mas sobretudo, um grito sonoro ao sofrimento dos migrantes. Que se calem os que nunca receberam um dólar suado por aqueles que trabalham nas sombras da imigração.
Memórias de uma indocumentada – Prólogo
Por Carolina Vásquez Araya, 18 de julho de 2014
Prefácio do livro de Ilka Oliva Corado
Tradução de Raphael Sanz
Imensa é a distância entre a imaginação e a realidade. Ilka Oliva descobriu isso em suas andanças e recebeu o golpe dos verdadeiros perigos e das autênticas humilhações; não aquelas imagens criadas em nossa mente, as quais sem querermos colocamos um freio naturalmente engatilhado pelo instinto de conservação, senão as que deixam sabor à derrota e uma enorme frustração.
Observei de perto o desenvolvimento deste livro e devo dizer que, se me surpreende a audácia da autora para relatar episódios tão dolorosos e extremos, me surpreende ainda mais sua vontade de continuar essa exploração íntima e complexa das consequências de sua tremenda aventura.
Quiçá por isso aqui não há poesia. Porque, ao contrário da sublimação, aqui se trata de uma reportagem, um diário de viagem cuja única nota de romantismo – se é que há – está na solidariedade entre seres humanos únicos em uma situação de risco extremo. O laço entre indivíduos cuja façanha máxima foi haver deixado esse passado e será o único ponto de referência que os vincule com sua própria identidade.
Ilka não teve essa infância feliz nem essa adolescência despreocupada que lhe poriam em selo literário. Sua vida esteve marcada pelos costumes e hábitos de uma sociedade machista e misógina, onde a violência contra a infância e muito especialmente contra as meninas, é um estilo de vida. Portanto, Ilka recebeu as patadas correspondentes e cresceu com o estigma do seu sexo e sua pobreza.
Rude e valentona, empreendeu uma rota incomum para buscar sua realização. E então, ensinou educação física e arbitrou partidas de futebol ostentando camisas oficiais, até que a fizeram entender o inútil dos seus esforços em romper paradigmas e abrir seu caminho em um mundo de homens. A frustração é um motor poderoso e propicia as decisões mais arriscadas: assim Ilka partiu para o norte.
A história que nos conta Ilka Ibonette Oliva Corado nas seguintes páginas é a de milhões de seres humanos que buscam um destino melhor longe de suas terras. Migrantes, indocumentados, aliens, intrusos, e assim por diante. Muitos são os apelativos com os quais a intolerância pretende etiquetar, sem maior motivo que os interesses econômicos e sociais dos governos dos países de chegada.
Qual é o delito de buscar para si e sua família um destino melhor? Por que isso é um problema? Dispostos a trabalhar nas tarefas mais duras e em um ambiente de abuso e humilhações, estes cidadãos aportam um enorme valor com suas remessas e sua vontade de alcançar sonhos.
Ilka não é mais que uma entre todos eles, mas uma que se atreveu a denunciar o que acontece, que teve coragem de colocar nestas páginas os episódios que guardou, quiçá, durante anos escondidos no mais obscuro de sua memória. O feito de haver sido tornadas públicas, por outros meios, essas denuncias sobre a situação de milhares de meninas e meninos, de adolescentes que cruzam a fronteira para se reunirem com os pais, ou escapar deles – ou da extrema pobreza na qual sobrevivem –, é uma coincidência que dá enorme validez a este livro.
Não se trata de uma história de terror, o negócio do tráfico humano está aí, latente e desenvolvendo-se como o mais legítimo dos negócios e diante do olhar e da complacência das autoridades. O contrabando, o narcotráfico e as extorsões alcançaram extremos tais que a população simplesmente foge. Mas isto não é novidade porque acontece há muito tempo, o novo é a denúncia dos detalhes escabrosos deste tráfico demencial.
Os detalhes deste livro demonstram que os sistemas e estruturas erigidos em torno da migração ilegal na fronteira sul dos Estados Unidos têm todas as características de operações clandestinas, só que neste caso realizadas sob uma faixada de legalidade e em função do resguardo fronteiriço. Contudo, se trata de autênticas caças, impulsionadas pelo mais extremo racismo e nela se perpetram estupros e assassinatos que jamais serão investigados.
O livro que você tem em mãos é uma obra de valentia, um relato poderoso por seu valor de testemunho e por deixar descobertos não apenas os detalhes de um trajeto cheio de perigos, mas também as mais íntimas experiências da autora. Mas além de tudo isso, é a excelente descrição de fatos e feitos, e situações, escritos por uma mulher que se lançou sem paraquedas a fazer literatura. O talento natural de Ilka nos deixa com a certeza de que se continuar em seu trabalho literário, poderá alcançar novas alturas. Essa é a minha predição e espero que aconteça.
Carolina Vásquez Araya. Guatemala, 18 de julho de 2014