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Diário Liberdade
Sábado, 15 Abril 2017 14:02

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 2

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Ilka Oliva Corado

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[Por Ilka Oliva Corado Tradução de Raphael Sanz] Chegando ao aeroporto da Cidade do México, passei para a área de migração. O plano estava estudado com cautela e, na ponta da língua, eu iria visitar uma tia que vivia naquela cidade.


Memórias de uma indocumentada - Prefácio e Prólogo

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 1

O único dinheiro que eu levava era um cheque desses de viagem no valor de duzentos dólares, o que despertou a curiosidade dos agentes de migração por tão pouca quantia. Na minha mala havia apenas cinco mudas de roupa. Era tudo o que eu tinha. Não acreditaram na minha história e perguntaram se alguém me esperava na saída do aeroporto, lhes disse que sim, que a minha tia me esperava lá fora e foi aí que decidiram enviar dois agentes de migração comigo para verificar se eu dizia a verdade.

A coyota me esperava com um papel em mãos com o meu nome escrito, mas nenhuma de nós contava que enviariam dois agentes de migração comigo.

Foram caminhando atrás de mim e eu encontrei na multidão a mulher pequena de cabelo tingido de ruivo, calça de lona azul e jaqueta de couro preta. Consegui encontrá-la. Ela também leva minhas características: morena, cabelos cacheados pretos, calça azul, regata cinza e mala cinza. Nossos olhares se encontraram e subi uma mão na altura do peito apontando que atrás vinham dois agentes. Ela entendeu a mensagem e guardou no mesmo instante o papel que tinha meu nome escrito.

Corri para os seus braços fingindo ser sua sobrinha que há anos não a via após ter migrado. A saludei euforicamente: “tia querida, quanto tempo sem te ver!” Ela também entrou em cena e me abraçou com um sentimento de nostalgia e de alegria tão perfeitamente orquestrado que os agentes acreditaram no reencontro e decidiram me deixar em paz – e entrar no país. Carimbaram meu visto e se despediram dizendo: bem-vinda ao México, que sua estadia seja muito agradável. Caminhamos abraçadas, eu a coyota, até o estacionamento.

No avião me encontrei com um árbitro internacional que voltava da Costa Rica onde assistira a um encontro de futebol. Me saludou muito amavelmente e convidou para conhecer as instalações da Federação Mexicana de Futebol e treinar com os colegas, caso eu tivesse essa possibilidade. Também me convidou a presenciar um encontro da liga principal e também um jantar com os colegas. Estes convites me pareceram normais, posto que também sou árbitra de futebol e é uma espécie de camaradagem de recebimento oferecer tais convites quando um árbitro visita um país estrangeiro. Fossem outras as circunstâncias eu teria estranhado. Fica registrado como um dado curioso dessa minha viagem clandestina buscando a fronteira dos Estados Unidos.

O voo da Mexicana de Aviação ia repleto de coyotes e de indocumentados. Temos uma linguagem secreta, um instinto peculiar, uma harmonia que só quem não tem documentos entende a forma cabal, de incógnitos para a sociedade e o sistema que finge não nos ver; mas totalmente visíveis para aqueles que se aproveitam das nossas circunstâncias. Disfarçados detrás de roupas de gala para não chamar a atenção dos olhares mal intencionados, desnudam-se almas temerosas que fingindo valentia lançam-se à conquista do desconhecido em um ato suicida que a ninguém importa, atos que em caso de sobrevivência enviam remessas e fazem promessas de amor – e que o tempo se encarregue de dissolver. É assim, como quem já está do outro lado da fronteira que, se voltar, sempre vai beber a conta gotas as águas da diáspora. O retorno se torna uma quimera e por vezes uma lembrança que tratamos de esquecer. São os desterrados mortos em vida que não se percebem, mesmo que ainda respirem.

Subimos no ônibus que levou até o estado de Morelos, passamos pela pitoresca cidade de Cuerna Vaca que quando vi me senti em San Lucas Sacatepéguez. A paisagem era muito parecida, assim como o clima e a infraestrutura. Quilômetros adiante a brisa rala do calor de Acapulco nos avisou que chegávamos a Morelos, e de lá tomamos outro ônibus que por sua vez nos levou ao povoado de Jojutla.

Em um mercado a coyota tem a sua casa e comércio, onde vende todo tipo de vestidos e decorações para: casamentos, festas de quinze anos, batizados e funerais. Suas filhas, que também são parte do negocio de trafico de pessoas indocumentadas, foram as encarregadas de me dar aulas de geografia e história do México. No instante que cheguei a coyota disse aos vizinhos que eu era uma prima veracruzana que havia crescido em Guerrero perto do porto de Acapulco. Meu sotaque, minha cor de pele, a forma do meu corpo e meu cabelo crespo ajudavam com a descrição.

Neste dia guardei na minha mala o sotaque guatemalteco e nossos modismos e gírias para aprender novos e mexicanos. Não sei como aconteceu, mas consegui, caso contrário minha história teria sido diferente e talvez eu não estivesse nesse momento a escrever este relato.

Dia e noite estudando nomes de rios, ruas, cidadezinhas, Estados, governantes, aprendi o hino nacional e canções tradicionais de Morelos, Guerrero e Veracruz. Tudo isso para poder me defender em caso de ser detida pela polícia do México ou pela Patrulha Fronteiriça já nos Estados Unidos. O único objetivo era que caso fosse deportada me devolveriam para o México e não pra Guatemala, e isso me permitiria tentar novamente. E nesse caso, sendo entrevistada pela polícia mexicana, me deixariam seguir viagem.

O nível de organização que têm as redes que traficam migrantes indocumentados me deixou surpreendida porque há gente envolvida em todos os níveis e instâncias. Uma delas, para poder viajar como mexicana – com visto autorizado até Sonora, por onde cruzaria o deserto para chegar ao Arizona. Fomos ao hospital público de Morelos e ali um contato me tirou uma amostra de sangue e armou um cartão médico, coisa de no máximo uns vinte minutos. Vi como colocou três gotas do meu sangue sobre um papelão e me explicou que era para saber o meu tipo sanguíneo e o nível de hemoglobina. Surpreendeu-se quando viu meu tipo sanguíneo e disse o que dizem todos: seu sangue é raro e é muito difícil de conseguir nos hospitais.

Compramos as passagens de avião com destino a Hermosillo, no estado de Sonora. No dia antes de partir fomos com as filhas da coyota ao mirante da lagoa Tequesquitengo e apontando com a mão direita me ensinou a condutora do automóvel onde estava em Acapulco; “atrás desses morros”.

Já havia aprendido a cozinhar comida mexicana quando de noite um grupo de vizinhas que me tiveram carinho organizaram uma despedida em Pozole. Uma delas pegou o violão e todas começaram a cantar canções do tempo de Pancho Villa que entrelaçaram com coros evangélicos e católicos, terminaram com a velada de No volveré de don Antonio Aguillar e La Golondrina de Pedro Infante.

Na manhã seguinte me disfarçaram com sapatos de taco, traje tipo alfaiate e penduraram uma bolsa no meu braço. No outro braço uma mochila preta com a muda de roupa que cruzaria o deserto: calça preta, tênis azul, gorro de montanhista e luvas pretas. O resto ficou na casa da coyota, que assegurou enviar por correio dali uns dias, o que nunca aconteceu. Mas sim, ela enviou a carteira com meus documentos guatemaltecos.

O cartão médico seria minha identificação em caso de qualquer inconveniente, tinha forma de carta de habilitação. Abordamos o avião com a coyota e as indicações foram claras: “se te descobrem nem te venha à cabeça voltar a me ver, viajaremos em acentos distintos”. Por sorte ou por azar do destino, nem no aeroporto da Cidade do México e nem em Sonora conseguiram me identificar.

Enquanto voava, eu observava pela janela os cerrados dos estados de Querétaro, San Luis Potosí, Zacatecas, Durango, parte de Sinaloa e Chihuahua, até que chegamos a Sonora e no horizonte podíamos ver o mar de Puerto Peñasco, tão longe do meu quintal, do gramado da minha cidade, e não estava nem na metade do caminho.

Glossário:

Coyota – Coyote feminino: pessoa que em troca de dinheiro auxilia migrantes a cruzarem a fronteira entre México e EUA.

Cuerna Vaca – Capital do Estado de Morelos, México.

San Lucas Sacatepéguez – Município na Guatemala.

Veracruzana – mulher natural do estado de Veracruz, México.

Pozole – Tipo de comida mexicana.

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