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Diário Liberdade
Segunda, 01 Mai 2017 16:37

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 4

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Ilka Oliva Corado

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Por Ilka Oliva Corado, Tradução de Raphael Sanz

Corremos e nos escondemos nos matagais enquanto saltavam todos que estavam nos táxis que, em um ranger de dentes iam-se do lugar. Estávamos no meio do nada, longe do centro de Agua Prieta, metidos no deserto de Sonora.


Eu era a única que levava um gorro de montanhista e luvas negras, que foram indicações da coyota que não os tirasse nem por um segundo quando entrasse no deserto porque de noite é difícil enxergar os cactos e os espinhos incrustam na pele sem nenhuma piedade. Devido a minha experiência de andar em barrancos e escalar montanhas e vulcões optei por vestir-me com uma calça, camiseta, jaqueta e tênis que era o mais confortável possível para a travessia e certamente fui a única vestida assim, o restante dos meus companheiros iam vestidos com calças de lona escuros e sapatos, alguns com botas de fazenda, as mulheres com sapatos fechados, muito poucos íamos de tênis.

Só eu levava soro, os outros levavam água potável e mezcal. Nos tinham dito que o frio do deserto era assassino e certamente, apesar de que vivo em uma cidade que seus invernos são gélidos, não senti tanto frio como o que vivi nos desertos de Sonora e Arizona. Creio que o circunstancial da travessia teve um forte peso para esse frio quase nórdico, fazendo desta experiência algo épico em minha vida.

Adentramos no deserto de Sonora, caminhando um atrás do outro, conforme indicação dos coyotes. Quando já havíamos avançado cinco quilômetros nos detivemos e novamente o coyote nos explicou a travessia: “ninguém de vocês vai se atrever a me delatar como o coyote em caso de sermos pegos pela la migra, porque se o fazem, a organização matará a todos, o que temos de dizer é que tomamos o caminho por nós mesmos e que não levamos coyote-guia, e em caso apareçam os cuatreros no caminho não resistamos ao assalto e se vierem nos violar, que violem...”.

Uma das garotas perguntou nesse instante se eu havia tomado a injeção para não engravidar em caso de um abuso sexual no deserto. Nesse momento caiu minha ficha da seriedade da situação em que eu havia me metido, nunca me ocorrera a ideia de tomar qualquer injeção anticoncepcional. Eu era a única mulher do grupo desprotegido em caso de algo assim acontecer. Recebi a advertência da minha vida por não prever algo tão importante.

O coyote seguia com as instruções: “se em caso nos detenha a polícia estatal ou o exército mexicano me deixem falar com eles e ninguém abre a boca, se em caso algum de vocês desistir de seguir, ficará esperando o amanhecer e que o encontremos nós e não a polícia, os cuatreros ou la migra”.

O cuatreros são gangues que transitam pelo deserto assaltando imigrantes em travessia.

No toque das seis da tarde o céu começava a pintar-se de vermelho e alaranjados acesos, e o frio da noite era sentido através da brisa rala que soprava por entre os cactos. No grupo havia pessoas de quarenta anos, vinte, cinquenta, dezoito – um casal chamou minha atenção porque o rapaz quis ir aos Estados Unidos e a moça não quis ficar no México. Ele tinha 18 e ela 16, e para que não fosse embora “fugida” e as pessoas da cidadezinha não murmurassem impropérios, os pais de ambos aceitaram que se casassem e assim fizeram. Casaram-se sem nenhum tipo de celebração e no dia seguinte partiram de Jalisco, sua terra natal, para Sonora.

Não me cabe a menor dúvida que no meu grupo havia gente de outras nacionalidades distintas à mexicana mas por estratégia dizíamos todos que éramos mexicanos. Minha condição física estava em 100% e isso permitiu que caminhasse ao lado do coyote sem apartar-me dele. O grupo ficava relegado a uma distância de cinquenta metros porque ninguém conseguia manter o ritmo com o que o coyote avançava. E que seja dito: era um menino de 18 anos, magro que só.

Enquanto caminhávamos conversei com ele e me disse o que muitos já me disseram ao longo da vida: “sinto como se te conhecesse há muito tempo, como se tivéssemos crescido juntos”. Me contou que o pagavam 150 dólares por indocumentado entregue no Arizona e que fazia duas viagens por semana com um mínimo de 15 pessoas levadas em cada grupo. Fazendo as contas, o menino ganhava 4500 dólares em uma semana. Era nativo de Guanajuato e queria estudar na universidade. Por essa razão havia se metido a trabalhar como coyote e estava indo tão bem que decidiu seguir cruzando gente pela fronteira, trabalho que realizava desde os 15 anos. Mais velho de 6 irmãos, sua família mora em um rancho longe do pequeno centro urbano mais próximo e seu sonho era construir uma casa para sua mãe e que ela deixasse de lavar a roupa alheia para ganhar a vida. Estava alcançando o sonho porque já havia comprado o terreno onde construirá a casa com tudo. Também comprara umas cabeças de gado e uma pick-up de dupla tração para que ninguém os humilhasse enchendo-os de pó a cara como quando caminhavam para o centro urbano.

Nos primeiros 25 quilômetros caminhamos com tranquilidade, e a noite nos caiu em cima com frio gélido, mas não baixamos o passo, tratei de explicar-lhes que não podiam estar tomando água a cada cinco minutos porque acabariam nossas reservas e não sabíamos o que ainda nos esperava mais adiante, ainda que nos houvesse dito que só íamos a caminhar seis horas e chegaríamos à fronteira, tínhamos que estar prontos para qualquer eventualidade. Foi justamente o que aconteceu.

Quando caminhávamos por talvez quarente quilômetros, nos apareceu um grupo de policiais estatais que com armas automáticas nos rodeou e pediram documentos, mas o coyote de imediato os perguntou pelo chefe, sacou um maço de dólares da mochila e os entregou, lhes deu o santo e a senha da organização a que pertencia e isso foi suficiente para que nos deixassem passar e continuar a travessia.

Quanto mais adentrávamos o deserto mais iam desaparecendo os matagais e o a paisagem era povoada por cactos, o horizonte de terreno seco e polvorento também desapareceu  para dar lugar a um chão empedrado que não nos deixava avançar sem que nos machucassem os pés.

Em algum lugar no horizonte vimos uns refletores que nos iluminavam e pareciam ser postes de luz elétrica que estavam a menos de cem metros de distância, mas o coyote nos explicou que estávamos a oitenta quilômetros deles, e que eram refletores gigantes que iluminavam longas distâncias, instalados para assegurar que indocumentados não cruzem a fronteira, assim como os traficantes de drogas. A luz passava e a cada cinco minutos voltava, os focos rotavam em forma circular e cada vez que se acercavam nos tocava cair no chão e esconder-nos atrás de cactos, assim fizemos ao longo de sessenta quilômetros e ainda não havíamos chegado à fronteira.

Escutava gritos das pessoas quando seus corpos topavam com os espinhos dos cactos, o que mudou o ânimo do coyote que começou a nos advertir e exigir absoluto silêncio porque íamos nos aproximando da fronteira e o barulho, os movimentos e até mesmo as respirações fundas podiam ser detectadas por sensores no deserto, pelas autoridades estadunidenses.

Logo apareceram os aviões e helicópteros que vigiam o deserto. O cansaço começava a aparecer em todos mas era mais naqueles que não tinham condição física ou não vestiam roupa confortável nem calçavam sapatos adequados para a travessia.

Havia gente com diabetes, problemas respiratórios e dois que sofriam ataques epiléticos. Ninguém disse nada porque do contrário nenhum coyote os levaria. Isso foi dito a murmurinhos enquanto avançávamos e essas pessoas pediam para descansar mas já sabiam a resposta. Tínhamos que cruzar a fronteira antes do amanhecer ou la migra nos encontraria.

Começamos a trotar para acelerar o passo, quis levar uma lembrança daquele deserto que a memória fosse incapaz de apagar, então peguei uma pedra do deserto de Sonora e outra do deserto do Arizona, as tenho eu meu parapeito hoje junto a uma planta de cacto que recém comprei ano passado, quando decidi fazer as pazes com as alusões da minha travessia.

Chegamos à linha divisória quando o relógio batia na meia noite e nos encontramos com centenas de migrantes esperando a mudança da guarda da Patrulha Fronteiriça para cruzar a fronteira nesses dez minutos que tardava em aparecer o seguinte comboio de patrulhas.

Faltava meia hora e as centenas de migrantes de um leque de nacionalidades estavam deitados de boca pra cima no solo empedrado com grupos que não passavam de 25 pessoas, nós também buscamos um lugar ao longo da linha e esperamos nossa vez.

As estrelas se viam tão de perto que o longe do firmamento parecia ter baixado para nos acompanhar, na espera passavam de mão em mão as garrafas de mezcal e de tequila. Um gole para espantar o frio e passar adiante para que o próximo necessitado também queimasse a garganta e entibiasse o coração. Eu não bebi mas passei a garrafa para a mão seguinte.

A linha divisória do deserto de Sonora e Arizona tinha do lado mexicano duas cercas de arame farpado, seguido de uma linha férrea, uma rua de terra batida e fechava com mais duas cercas de arame farpado, já no lado estadunidense. Cruzaríamos em fileiras. Colocamos as blusas e as jaquetas no chão e caminhamos sobre as roupas. O último grupo recolheria tudo ao passar. Isto era para evitar deixar pistas e pegadas de sapatos na rua de terra por onde iluminam os focos de luz estadunidenses.

Quando dessem o sinal, cada qual faria cargo da forma em que ia saltar as cercas e também afastar-se o mais rápido possível da linha. Estávamos a instantes de cruzar a famosa fronteira que tantas vida já arrebatou. Eu estava a segundos de abandonar o território mexicano para seguir como uma indocumentada em outra proeza da qual aqueles que sobrevivem se negam a falar e tentam esquecer.

Glossário:

Coyota – Coyote feminino: pessoa que em troca de dinheiro auxilia migrantes a cruzarem a fronteira entre México e EUA.

Mezcal – Destilado típico mexicano feito a partir de cactos.

La Migra – gíria para a patrulha fronteiriça e outras forças paraestatais anti-imigração.

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