A reforma trabalhista pretende desmontar por completo o que hoje existe em termos de legislação protetiva do trabalhador na relação de trabalho entre patrão e empregado. Citemos, por exemplo, o art. 223-G, §2º, do PLC 38/2017, segundo o qual passa a ser possível a condenação do trabalhador a título de danos morais por eventual ofensa à empresa ou ao empregador, retirando toda possibilidade de livre manifestação de pensamento do empregado. Além deste, temos o art. 58, §2º, que extingue a integração das horas de trajeto na jornada de trabalho ou ainda o art. 396, §2º, que extingue o direito da mulher de usufruir de dois intervalos ao longo da jornada para amamentar o próprio filho.
Como se percebe, somente por esses três dispositivos da proposta, ser contra a reforma não é apegar-se a motivos estritamente ideológicos. Resistir à reforma é o único modo de preservarmos os poucos direitos que atualmente existem, mas que, na sua maior parte, ainda hoje sequer foram efetivados.
A despeito da natureza burguesa do direito do trabalho e do direito em geral, enquanto perdurar o fundamento que serve de substrato real à forma jurídica, o capitalismo, nos cabe lutar em defesa da manutenção da regulamentação normativa da relação de trabalho, na medida em que esta seja mais “benéfica” ao trabalhador. Se, de fato, tal legislação é a regulação da extração do mais valor. Por outro lado, ela é também uma forma (ainda que frágil) de limitação do poder de direção do capitalista, logo, um choque entre forma e conteúdo. A forma, a despeito das mossas vontades, sempre prevalecerá. Por isso, a insuficiência em lutar na defesa da CLT se complementa com o fato de ser esta a pauta objetiva que precisamos empunhar.
Começa assim a letra assinada por Adoniran em 1951:
Se o senhor não tá lembrado
Dá licença de contá
Que acá onde agora está
Esse adifício arto
Era uma casa véia
Um palacete assobradado
Adoniran faz referência a um edifício onde moravam ele, Joca e Mato Grosso, personagens fictícios por ele criados. Tal edifício deu lugar ao que antes havia sido o palacete assobradado, a casa velha na qual os três haviam constituído sua moradia, sua “maloca”. A referência, como vemos, é ao passado, o que denota uma existência pretérita seguida da sua destruição.
O “edifício alto” conota, para nós, a legislação que se pretende aprovar com a reforma trabalhista, uma legislação que esteja de acordo com o “espírito do tempo”, como diz Rogério Marinho (PSDB), relator da reforma na Câmara, ou seja, “moderna”. Na verdade, o moderno não raramente se adequa às pretensões dos fortes – que são os que dizem o que é ou não moderno. No caso da moradia, a adequação é sempre à especulação de grandes rentistas do ramo imobiliário – como ocorreu na “cracolândia”, em São Paulo, no dia 21 de maio. No caso da reforma trabalhista, trata-se de uma adequação à vontade dos patrões, que querem preservar a taxa de lucro com baixíssimo ou sem nenhum custo.
Já a CLT é a casa “véia”, o palacete assobradado que servia de abrigo a quem dela precisava, aos trabalhadores, ao narrador, Joca e Mato Grosso. São esses três as figuras que representam nos versos a classe trabalhadora de hoje. Classe que está sob o risco de perder o abrigo desta importante “casa véia” que é a CLT. A canção continua assim:
Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca
Mas um dia, nós nem pode se alembrá
Veio os homis c'as ferramentas
O dono mandô derrubá
Aqui, o narrador diz ao seu interlocutor que foi naquele palacete assobradado que construíram sua maloca, sua morada. Uma vez mais, fazemos a devida alusão à CLT. É nela que os trabalhadores encontram proteção, guarida, quando estão diante de uma violação cometida por seus patrões, o que não é raro de se constatar. Porém, certo dia, os homens com as ferramentas começaram a derrubar a tal casa velha a mando do então proprietário.
Aqui, temos o surgimento de dois novos e cruéis atores: o proprietário e os seus representantes, seus serviçais, algo próximo à figura do capitão do mato na história brasileira. No caso da reforma trabalhista, o posto de serviçal é ocupado pelos membros do Congresso Nacional (deputados e senadores favoráveis à reforma) e do Executivo Federal (o presidente Michel Temer e seus ministros, como Henrique Meirelles). O posto de proprietário está ocupado pelo empresariado brasileiro, que são os que detém o poder dos meios de produção, os donos das indústrias, fábricas, terras, empresas prestadoras de serviços em geral, etc. Esse vampiro que é o capitalista, o proprietário, mandou derrubar a CLT. Com o seu alto poder monetário de financiamento das campanhas eleitorais, o grande empresariado comprou os legisladores e os membros do executivo. Impôs a estes supostos representantes do povo a sua vontade: destruir a CLT, a “casa véia” de Adoniran, Joca e Mato Grosso. A ferramenta para isso: o próprio direito.
Peguemos todas nossas coisas
E fumos pro meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nós sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração
Nesse ponto da canção temos uma situação peculiar. Adoniran, no papel de narrador, Joca e Mato Grosso pegam suas coisas e vão para o meio da rua assistir à demolição, o que, a princípio, demonstra uma certa passividade dos envolvidos frente a tal injustiça. No caso das reformas, ao mesmo tempo que vemos as reivindicações de vários grupos, movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos, percebemos também certa desmobilização de setores da classe trabalhadora, que apenas “apreciam” a tentativa de demolição da CLT. Os meios de comunicação jogam papel importante nisso, já que não falam a verdade sobre a reforma para os milhões de trabalhadores que são diariamente bombardeados com falsas notícias tanto na TV quanto nas rádios e nos jornais.
Nós, trabalhadores, apenas apreciaremos a destruição do nosso “palacete assobradado”, nossa “casa véia”, nossa CLT por capitalistas e pela elite ocupante da burocracia nacional? Devemos ter consciência de como ressoam as alterações inseridas na CLT. Cada mudança é como uma tábua derrubada, cada extinção de direito é uma dor que se intensifica, se amplia, no coração dos trabalhadores e se expressará nas amargas condições de trabalho que se instalarão com a aprovação das reformas.
Mato Grosso quis gritá
Mas em cima eu falei:
Os homis tá cá razão
Nós arranja outro lugar
Só se conformemo quando o Joca falou:
"Deus dá o frio conforme o cobertor"
Mato Grosso quis gritar, diz o verso. O narrador, por sua vez, deu razão aos serviçais. Joca, a seu turno, resignou-se na tentativa de transferir seu conformismo aos demais. Ora, temos aí, pelo menos, duas possibilidades: ou resistimos, tal como faz Mato Grosso inicialmente, ou aceitamos a vontade dos proprietários e seus serviçais de destruírem a CLT. Como em inúmeras situações, haverá aqueles que “pelegam”, que ficam do lado do patrão e seus representantes, algumas poucas vezes inclusive em benefício próprio. Quem não se lembra das cenas finais de “Eles não usam black-tie”, de Leon Hirszman, em que Maria, com uma dureza singular, dá uma lição em Tião, o pelego? Devemos ser, na defesa da CLT e na resistência à reforma, como Maria, no caso do filme, e como Mato Grosso, no caso dos versos de Adoniran. Essa história de que “Deus dá o frio conforme o cobertor” deve ser revertida ao interesse da nossa classe e interpretada assim: “A burguesia produz, acima de tudo, seus próprios coveiros”. E como “bons” proletários que somos, iremos subverter a própria forma equivalência para dar à burguesia um frio que ela não seja capaz de suportar!
E hoje nós pega páia nas gramas do jardim
E prá esquecê, nós cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida
Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossa vida
Saudosa maloca, maloca querida
Dim-dim donde nós passemos os dias feliz de nossas vidas
Do contrário, se nos resignamos, terá a canção de Adoniran acertado o destino da nossa classe: dormiremos nas gramas do jardim sob o gélido rocio. Então, apenas nos restará cantar assim:
Saudosa CLT, CLT tão necessária, CLT suposto vilão do “patrão”
Dim-dim donde nós um dia encontremos proteção,
Saudosa CLT, CLT tão necessária, CLT suposto vilão do “patrão”
Dim-dim donde nós um dia encontremos proteção.
Será o destino da CLT, com a reforma trabalhista em andamento, aquele cantado por Adoniran Barbosa em Saudosa Maloca? Ou a ironia de Adoniran vencerá com o grito de Mato Grosso, que é o grito da própria classe trabalhadora, dando à canção um desfecho diferente daquele que desabrigou Joca, Mato Grosso e o narrador?
Vamos juntos barrar essa reformar e nos unir à Greve Geral de que ocorrerá ainda em junho!
*João é estudante ProUnista de Direito da PUCSP, colunista do Diário da Liberdade, coordenador do Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito (GPMD) e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
[1] Parto das reflexões promovidas pela professora Regina Vera Villas Bôas, numa intervenção ocorrida na PUC-SP em 17/05/2017, num evento sobre Direito e Arte.