Deleuze dizia que filosofar é produzir conceitos. Dessa perspectiva, no momentum de sua produção pelo filósofo, um conceito corre risco de ser absolutamente pertinente à realidade que pretende fazer conhecer. Entretanto, depois de “manufaturados”, o vício dos conceitos é se hipostasiarem enquanto explicações universais atemporais que precisam, necessariamente, abstrair as particularidades daquilo que conceituam para manterem suas preestabelecidas validades universais. E, nesse sentido, os conceitos se tornam barreiras ao pensamento.
Slavoj Žižek, no seu “Alguém disse Totalitarismo?”, critica a célebre conceituação de Hannah Arendt a respeito do Totalitarismo, acusando-o de ser um conceito-tampão que, aplicado aos diversos casos históricos de Estados autoritários/tirânicos – inclusive os clássicos do início do século XX -, na verdade nos impede de conhecê-las em suas particularidades. Para este filósofo, o conceito arendtiano de Totalitarismo é um tipo de “tapa-buraco” que em vez de forçar o pensamento a adquirir uma nova visão sobre a realidade histórica, na verdade, “desobriga-nos de pensar, ou nos impede ativamente de pensar”.
Já o filósofo Baptiste Noël critica o vulgar e hodierno uso do conceito de “fascismo”, dizendo que estarmos nos valendo indiscriminadamente desse conceito – que na verdade aponta uma experiência histórica específica – outra coisa não é que nos alienarmos do fato de que os radicalismos atuais que nos afrontam não são sorrateiras ervas-daninha fascistas, mas vermelhas maçãs polpudas da “nossa” tão defendida democracia liberal. Para Noël, chamar vulgarmente alguns dos nossos políticos ultraconservadores e interlocutores desagradáveis de fascistas é apenas “desconversar”. Em suma, é dar um apelido novo a um velho e conhecido boi – sendo que o velho boi é a democracia liberal, e o novo apelido, o fascismo.
Também o filósofo István Mézáros critica a ilustre máxima weberiana segundo a qual “O Estado detém o monopólio da violência”, dizendo que se trata de “uma evasão ideológica flagrante”, sustentada para borrar o fato de que o mais grave a ser pensado, e que, no entanto fica, esquecido, “é a ilegalidade do Estado – mesmo quando essa não se manifesta de modo violento”. Para Mézáros, a violência do Estado “deve ser objeto de séria investigação histórica, em vez de ofuscar o assunto com a identificação genérica do Estado com o seu decretado monopólio da violência”.
O que estes três exemplos de crítica a três conceitos determinados apontam é que os conceitos, embora se coloquem como unidades de conhecimento, podem ser vórtices de obscurantismo. A pergunta que se coloca aqui, portanto, é a seguinte: qual a distância segura, nomeadamente crítica, que devemos tomar dos conceitos, visto que, de um lado, são de fato vias ao pensamento, mas, de outro, condenam o pensamento ao já pensado, e, consequentemente, ao não-pensar? E suma, como jogar fora a água suja (a alienação a que os conceitos nos levam) sem jogar o junto bebê limpo (a possibilidade de mais pensar oferecida pelos conceitos)?
Nietzsche dizia que as palavras são metáforas que se esqueceram de que são metáforas. A palavra amor, por exemplo, acredita apontar certeiramente um objeto específico. Já poesia, não obstante, desmente que aquilo que se esconde sob a palavra amor possa ser peremptoriamente resumido, seja em uma única palavra, seja em um conjunto delas formalizadas em versos. E assim como as palavras se esqueceram de que são meras metáforas, os conceitos também se esquecem de que são apenas conceitos. E nesse esquecimento, convencem-nos de que apontam, inequívoca e universalmente, a realidade. No entanto, são abstrações cunhadas diante uma – pequena – porção de realidades particulares.
A busca de uma distância crítica em relação aos conceitos, segura o suficiente para que não privem o pensamento, quiçá deva sondar o terreno intermediário entre as simples palavras e os grandes conceitos. Até porque não estamos falando de seres alienígenas um em relação ao outro. As palavras, chamadas de metáforas por Nietzsche, são todavia conceitos, embora muito simples. Outrossim os conceitos são metáforas, só que bem mais complexos do que as palavras. Porventura o melhor ponto ao pensamento estaria entre a simplicidade das palavras e a complexidade dos conceitos?
Cartesianamente falando, conhecer clara e distintamente a realidade é fazê-lo mediante unidades de conhecimento as mais simples possíveis. E se os conceitos mais simples e imediatos são as próprias palavras, temos que são elas as pequenas, todavia mais confiáveis pedras sobre a superfície do rio que queremos atravessar ao pensar. Claro, elas também têm seu calcanhar de Aquiles: certa distância intransponível em relação ao que nomeiam. Entretanto, se as palavras, assim como os conceitos, podem induzir a erros, estes são, todavia, erros menores. Os conceitos, ao contrário, enquanto conjunto de palavras, são, consequentemente, um misto inextricável de distâncias em relação ao real. Na nossa analogia do rio, seriam as grandes pedras que facilmente acumulam limo sobre si. E nestas escorregamos muito mais facilmente. Por isso, crítica!
A conclusão, portanto, é que o pensamento mais esclarecedor e precavido é aquele que se fia mais nas pedras semânticas mínimas das palavras do que nos continentes máximos dos conceitos. Em relação aos nossos exemplos conceituais “continentais” de Totalitarismo, criticado por Žižek; de fascismo, por Noël; e de Estado enquanto mero monopolizador da violência, por Mézáros; o trabalho virtuoso do pensamento é explicar, em simples palavras, as realidades singularidades de que se ocupa, em um humilde trabalho descritivo/analítico, sem sucumbir à tentação de se complicar com os grandes “resumos de ópera” conceituais que, em verdade, inscrevem e sintetizam o pensamento. Em suma, tolhem-no.