Explica-se: Miguel Urbano, português do Alentejo, tornou-se um cidadão do mundo – conheceu várias dezenas de países de quatro continentes, por muitos anos viveu no Brasil e, no fim do século XX, alguns em Cuba.
Miguel Urbano, porém, jamais foi um turista acidental: tornou-se cidadão do mundo porque, por onde passou, participou direta ou indiretamente das lutas sociais que ali se travavam, porque investigou, documentou e denunciou – na condição de jornalista – a miséria, a opressão e a injustiça; e porque sempre orientou a sua conduta cívica pelos ideais socialistas.
Se acaso o meu eventual leitor examinar, aleatoriamente, pelo menos uma dezena dos obituários a que me referi, verificará que a atividade de Miguel Urbano é sobretudo evocada pelo notável jornalista que ele foi. Começou, ainda jovem, quando frequentava o curso de Letras na hoje Universidade de Lisboa, no Diário de Notícias (1949-1956) e depois, ainda capital portuguesa, no Diário Ilustrado (até 1957). Pressionado pela censura salazarista, deixou o país e fixou-se no Brasil: aqui esteve de 1957 a 1974, foi editorialista de O Estado de S. Paulo e, na primeira metade dos anos 1970, editor internacional da revista Visão – ao mesmo tempo em que participava do Portugal Democrático, órgão dos antifascistas portugueses editado, entre 1956 e 1975, também em São Paulo.
A aventura que foi o sequestro do “Santa Maria”, em 1961 – a famosa operação Dulcineia, capitaneada por Henrique Galvão (1895-1970) –, tornou-o amplamente conhecido e, de algum modo, conscientizou-o da necessidade de um combate mais organizado para a derrubada do regime de Salazar. Simpático ao socialismo, três anos depois vinculou-se ao Partido Comunista Português/PCP (certa feita, observou que esta decisão, que marcaria toda a sua vida, fora influenciada pela leitura, em 1961, do romance O caminho das tormentas, de Alexei Tolstoi).
A Revolução dos Cravos possibilitou o seu regresso a Portugal. Logo assumiu a redação do Avante!, órgão oficial do PCP e, em 1976, a direção de O diário, jornal de massas que circulou até 1990. A partir de 1986, dividiu o seu trabalho editorial com a intervenção política institucional: começou na Assembleia Municipal de Moura, passou como deputado pela Assembleia da República (1990-1995) e chegou à Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Embora tivesse raízes em suas origens familiares (seu pai, abastado proprietário alentejano, colaborara na Primeira República portuguesa com Afonso Costa, o mata-frades), a prática da política institucional não o entusiasmava: sua paixão era o jornalismo. E essa paixão o impulsionou, já no século XXI, ao exercício jornalístico através de novos instrumentos: em 2002 criou o site resistir.info e, em 2006, o diário.info.
Com suas colunas e seus textos redigidos em prosa escorreita, cristalina e direta publicados em dezenas de veículos de várias partes do mundo, justifica-se a ênfase que os obituários deram à sua atividade jornalística – e, em Portugal, ficou mais que comprovado que Miguel Urbano ocupa, na imprensa do país, no século XX, um lugar ímpar.
Penso, contudo, que essa ênfase pode obscurecer, ou deixar na sombra, outras dimensões do seu fazer, como é o caso da sua intervenção como organizador cultural, de que é emblemática a criação dos Encontros Internacionais de Serpa, eventos de ressonância que Miguel Urbano organizou em 2004, 2007 e 2010, reunindo pensadores de vários países. Pode, ainda, minimizar a sua reflexão teórico-política, exemplificada em ensaios como Opções da revolução na América Latina (1968), Revolução e vida (1977) e Nómadas e sedentários na Ásia Central (1999). E isto sem mencionar as suas incursões literárias: O homem de negro (1958), Do fundo do tempo (1979), Alva (2001) e A metamorfose de Efigénia (2010). Vale lembrar que, assim como a política institucional, também a literatura envolveu outro familiar seu: o irmão Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), igualmente um conhecido opositor do regime de Salazar, foi ficcionista de nomeada, premiado pela Associação Internacional de Críticos Literários e tendo as suas obras completas editadas pela D. Quixote (Lisboa).
Por outra parte, julgo que devemos considerar que, substantivamente, Miguel Urbano foi um escritor. Não creio que se aplica a ele a imagem de um polígrafo: seja como jornalista, como publicista político, como pensador fino (leia-se, por exemplo, a Meditação descontínua sobre o envelhecimento, de 2009), Miguel Urbano não tinha a linguagem apenas como meio – ela era artesania e arte. Provam-no as suas memórias, os belíssimos dois volumes de O tempo e o espaço em que vivi (2002): nelas, relações e experiências pessoais são transfiguradas em evocações que apreendem o essencial do movimento sociocêntrico de um homem que se dispôs, durante a segunda metade do século XX, a interpretar e transformar o mundo.
Talvez caiba aqui, a finalizar, uma nota pessoal. Meu primeiro encontro com Miguel Urbano ocorreu em São Paulo, em finais de 1973; depois nos revimos em Portugal, em 1976 e 1977. Não aprofundamos relações e, anos depois, quando me tornei correspondente no Brasil do seu O diário, passamos por alto as razões dessa cordial distância. Julgo que havia razões políticas para relações tão cautelosas: à época, Miguel Urbano me identificava, equivocadamente, como um “eurocomunista” – e, à época, essa qualificação era muito pouco simpática a membros do PCP. Só nos aproximamos mesmo em meados dos anos 1980, quando ele saudou com entusiasmo um ensaiozinho meu sobre a Revolução dos Cravos. A partir daí e ao longo das décadas de 1990 e 2000, tornamo-nos bem chegados.
O meu eventual leitor não sabe o esforço que fiz para escrever, sem emoção, esta pouca de linhas sobre o Miguel Urbano. A notícia de sua morte foi, para mim, como um soco na boca do estômago. Sei que, sem este meu amigo e camarada, o mundo de que ele foi cidadão pleno ficou mais pobre.
Fonte: Blog da Boitempo