No rescaldo da marcha neonazi em Charlottesville, na Virgínia, a revolta do presidente dos EUA não foi dirigida contra os terroristas que mataram uma pessoa e feriram várias dezenas, mas contra a retirada de estátuas confederadas. «Triste por ver a história e a cultura do nosso grande país serem destruídas com a remoção das nossas lindas estátuas», escreveu num de muitos tweets inflamados sobre a «preservação da cultura sulista» e a «beleza dos monumentos» dedicados aos partidários da escravatura que perderam a guerra civil em 1865.
As mesmas bandeiras haviam sido pretexto para a marcha nazi que, sob o lema «unir a direita», juntou em Charlottesville uma miscelânea de milícias armadas com metralhadoras, fascistas alt-right da era digital, supremacistas, neoconfederados e outros racistas de diversas denominações para protestar contra a remoção da estátua do general confederado Robert Lee. Primeiro, Trump recusou-se a condenar o nazi que atirou um automóvel contra a multidão de manifestantes antifascistas. Sem nunca utilizar a palavra «terrorismo», o presidente condenou a «violência de muitos lados» e frisou que, entre os nazis, «havia gente muito boa». Depois, quase obrigado, leu de um papel que condenava os nazis. No dia seguinte, já sem papel, deu o dito por não dito e apontou o dedo à esquerda. A ambivalência do presidente sacudiu, em medidas iguais de surpresa e indignação, todo o espectro político. O problema, contudo, não se resume às palavras hediondas de Trump, mas à arquitectura do sistema hediondo que ele representa; o problema é que, como disse Trump, Washington e Jefferson também tinham escravos.
Racismo e capitalismo
Steve DiMayo é militante da Redneck Revolt, uma organização que, resgatando a etimologia da expressão redneck (pescoço vermelho, de trabalhar ao sol) intervém junto das populações mais pobres da América rural para recuperar a tradição de luta das comunidades que os democratas apelidam de «white trash» [«lixo branco»]. «Só tive tempo de saltar», disse-me, «estava ao telefone e só me apercebi quando havia corpos a voar à minha frente. Um dos carros atropelou uma rapariga ao meu lado e ela desmaiou. Achei que estava morta».
«As estátuas têm de vir abaixo ou vão ser usadas para nos dividir ainda mais. O Sessions [procurador-geral dos EUA] está a matar a Acção Afirmativa e aqui no Sul, sem isso, tens a segregação outra vez. Só a luta é que o pode evitar. Esquece o resto. O governador [Terry McAuliffe, da Virgínia] quando decretou o estado de emergência, foi para mandar 1500 polícias atacar-nos. Os nazis são amigos dele».
Posição semelhante tem Takiya Thompson, estudante de 22 anos da Carolina do Norte que, na semana passada, protagonizou um vídeo que chegou às televisões de todo o mundo. Foi durante uma manifestação antifascista em Durham, uma das 700 convocadas de costa a costa. As imagens mostram Takiya a trepar à estátua de um soldado confederado e a prender-lhe uma corda. As massas fazem o resto.
«Foi um momento espontâneo. Havia mulheres negras, imigrantes, comunistas, mas também liberais e pessoas com pouca consciência política. Os democratas gritavam “O amor vence o ódio”, nós gritávamos “A polícia e o Klan andam de mãos dadas”», contou-me a jovem militante do Partido Mundo Operário, «A polícia americana evoluiu a partir das patrulhas que capturavam escravos foragidos. O racismo está embutido nas raízes mais profundas da sociedade americana. É por isso que para combater o capitalismo há que combater o racismo. Racismo e capitalismo chegaram aos EUA ao mesmo tempo, são dois fruto da escravatura. A questão da classe vem em primeiro lugar, mas a questão do racismo não vem em segundo. Eu olho para as lutas de todos os oprimidos como uma só luta. Sou filha de um imigrante jamaicano e sei bem que o racismo é um instrumento do sistema. Trump não é uma anomalia do sistema, ele é o sistema com uma retórica mais feia. Os democratas fazem o mesmo, mas com um sorriso».
Apesar de ser visível no vídeo que a estátua é derrubada por dezenas de pessoas, só sete foram detidas e acusadas. «Vou ser presente a tribunal no dia 12 de Setembro», enquadrou Takiya, «Querem fazer de nós presos políticos. Eu sei que as leis desta nação não foram feitas para proteger pessoas como eu, com o meu aspecto».
Nos dias após a detenção de Takiya e dos seus camaradas, mais de duzentas pessoas dirigiram-se ao xerife de Durham para confessarem terem sido elas a puxar a corda. A verdade é que não foram duzentos: foram milhões a puxar a corda. Seria bom que o xerife de Durham o soubesse e registasse, num longo auto de ocorrência.
Estátuas do terror
Mais de mil monumentos aos confederados subsistem em 2017. São, quase todos, produto da chamada «era pós-reconstrução», uma fase política entre o último quartel do século XIX e 1920 em que foram desmanteladas muitas conquistas dos antigos escravos. O propósito da construção das estátuas não era, nem nunca foi, a preservação da História, mas a instauração de um clima de terror racista para facilitar a entrada em cena da segregação Jim Crow.
Fonte: Avante!