Dentro duma dada ordem jurídica que se quer superar (Leyes Fundamentales del Reino; Estatut d’Autonomia de Catalunya), o parlamento eleito com um dado grao de limitações da representatividade por circunstâncias históricas (Cortes Españolas; Parlament de Catalunya) aprova por maioria um texto (Ley para la Reforma Política de 1976; Llei de Transitorietat Jurídica i Fundacional de la República de 2017) que frontalmente choca com a legislação de rango máximo, e suspende-a. Explicitamente ou não, ambas leis estabelecem a “excepcionalidade jurídica” necessária para não implosionar o processo. O objetivo é que o correspondente sujeito político soberano (“pueblo español”; “poble catalá”) se dote duma nova ordem constitucional. Para isto, instrumentalmente, o parlamento catalão deve aprovar também uma Llei del referèndum d’autodeterminació de Catalunya, mas esta não altera em nada a ordem jurídica nem a subordinação de Catalunha ao Estado Espanhol.
A notável diferença, que situa o processo catalão a anos-luz em termos de garantias e de legitimidade democrática por cima do processo da Transición, é que a Llei de Transitorietat só se aplicaria se, nesse referêndum prévio, o povo catalão se declarasse independente para fazê-lo. Ainda mais: independente na forma duma república; isto é, quem desejasse a continuidade da monarquia, mesmo só de âmbito catalão, poderia também votar Não e esperar o seu momento histórico, não é?. Caso de voto negativo no referendo, o povo catalão aceitaria continuar sujeito e sumisso ao Reino de Espanha. A Ley para la Reforma Política, porém, foi imposta sobre a população por umas Cortes nem remotamente democráticas, e só se referendou a Constitución que indireta e subrepticiamente nasceu dela.
Neste sentido, uma segunda diferença é que a Llei de Transitorietat faz explícito que o objetivo é um processo constituinte; a Ley para la Reforma Política ocultou que o alvo das primeiras eleições com partidos seria a elaboração duma constituição onde nem sequer se pôs em jogo a forma de estado monárquica imposta polo regime.
Evidentemente, há diferenças também quanto ao papel doutros atores internacionais e às novas legalidades e legitimidades, vinculantes em diversos graus, que se foram criando e impondo na Europa de 1976 até hoje. Mas o paralelo entre La Transición e La Transició é suficiente para concluirmos que a oposição ideológica e política à segunda não pode estar nem está fundamentada num rechaço ao método da reforma-de-dentro — provadamente “efetivo”, diria-se, tanto na Espanha como em Chile, por exemplo —- , mas, simplesmente, numa nem sempre confessada questão de identidade nacional ideologicamente supradeterminante: a “española” inclusiva (fagocitante) e a catalã separadora. É o sujeito político (espanhol vs. catalão) e o seu âmbito que diferem nos processos de 1976 e de 2017, não o procedimento nem os princípios políticos polos quais um coletivo reclama soberania para se regir sem subverter frontalmente (nem muito menos com violência física) a ordem jurídica anterior. De facto, a Llei de Transitorietat é modelicamente garantista quanto à defesa e manutenção de direitos (laborais, sociais, mercantis, de propriedade, etc.) adquiridos pola população afetada, como não podia ser doutra maneira se se entende que o Procés pretende apenas uma articulação diferente de Catalunha com os estados do entorno.
Para o processo independentista, portanto, trata-se de superar o quadro jurídico do qual emerge a legitimidade (limitada, mas historicamente necessária) das suas próprias instituições que o promovem, isto é, o quadro do Estatut. Não se trata em absoluto, como se pode pensar, de superar uma Constitución Española que na prática só se reconhece já como uma legislação internacional imposta, num grau inferior à legislação europeia, e à qual, na lógica política, também se pode acolher às vezes para reclamar o avanço dos direitos do povo (reformar tal Constitución Española talvez seja a proposta do pretenso federalismo ou do “equidistantismo”, mas essa é uma luta política diferente). E é por isso frente a esta superação do Estatut que têm reagido vozes unionistas ou “equidistantes” de Catalunha, que querem ignorar que as legitimidades da Constitución e do Estatut estão intimamente imbricadas, como o desmembramento deste polas sentenças do Tribunal Constitucional espanhol têm demonstrado.
O problema — está a comprovar-se — é que o Estado Espanhol está a ter sucesso em enquadrar o conflito em termos de confronto externo/interno, em lugar do que historicamente é: um problema interno catalão, um conflito cruzado entre unionismo e independentismo, direitas e esquerdas sociais, e Capital e Trabalho. E a responsabilidade — por conivência — neste sucesso de Espanha por parte do unionismo catalão, incluindo setores de CSQEP, é enorme. É certo que, quantitativamente, o seu peso eleitoral e portanto a sua oposição a La Transició é maior do que tinham os opositores (ultras ou não) à Ley para la Reforma Política nas cortes franquistas. Mas aqueles setores espanhóis lutaram contra a Reforma como uma traição a Espanha, enquanto os unionistas catalães pensam, declaram, e com a sua passividade efetivamente confirmam que para eles o Procés é uma traição a… Espanha também, não a Catalunha. Porque, se quisessem combater La Transició, teriam declarado votar NÃO no 1 de outubro, e não reclamariam umas “garantias” democráticas que — estamos a ver — o Estado Espanhol é incapaz de dar. Alguns setores compreendem isto, mas não os suficientes para vencermos a miragem de que tudo isto se trata dum problema de estado.
A tautologia, então, está servida. Sem tais “garantias” (que, a propósito, foram convenientemente eliminadas polos braços armados do Estado Espanhol), é possível que o referêndum do 1 de outubro, como Referêndum do Bom Burguês (aquele onde se vai dizer o que se pode dentro do que se pode dizer) fracasse. Então La Transició terá que assemelhar-se ainda mais a La Transición: a maioria do parlamento catalão, como o espanhol no seu momento, ditará uma Declaração de Independência (todas são “unilaterais”, claro); o presidente catalão dissolverá o parlamento e convocará eleições constituintes, já sem o referendo prévio. O Tribunal Constitucional espanhol sentenciará que a Declaração é inconstitucional, e as eleições não serão vistas polo unionismo como “constituintes”. Nessa altura os poderes políticos espanhóis poderão destituir quem quiser, mas é duvidoso que uma convocatória de eleições autonómicas possa ser declarada ilegal (embora já nada surpreenderia).
Então, se o previsível acontecer (que nessas eleições o independentismo catalão, de esquerdas e de direitas, obtenha uma maioria parlamentar ainda maior), começaria uma nova fase na qual o minguante unionismo teria que compreender que a carta a jogar é já a de segurar a hegemonia (polo menos eleitoral, que é a que permite as leis que permitem os privilégios) no novo estado, não impedir este. Seria a sua única oportunidade de neutralizar os setores populares. Só a sua inteligência político-eleitoral poderia garantir isto. É triste pensar que esta seja praticamente a única opção atual para uma independência de Catalunha sem sangue.
Fonte: Desde a margem