Olhemos um exemplo, o da quarta maior economia europeia. A população espanhola passou de menos de 40 milhões em 1999 para 47 milhões em 2010. a maior parte deste salto, um dos mais espetaculares no continente europeu, é resultado de migrações de Equador, Bolívia, Marrocos, etc. Na Alemanha residem hoje 1,5 milhão de turcos com nacionalidade turca, que foram para o país em seis vagas de migrações desde 1961. Isso não inclui nem a imigração temporária – determinante depois de 2000 – nem as gerações já naturalizadas.
A imigração é de fato uma das grandes fraturas que divide a sociedade europeia, e não só – o tema ocupou um do lugares-chave na eleição de Donald Trump para presidente dos EUA. A sociedade divide-se transversalmente quanto a este tema. Não é difícil encontrar um liberal que defende a imigração como “direito humano”. Nem um operário que esteja contra. Se a extrema-direita eleitoral questiona os migrantes, os partidos liberais são entusiastas da livre circulação – ainda que não da sua legalização. O tema atravessa, de forma não homogênea, as classes sociais.
Argumentamos aqui que a razão é sobretudo de ordem política – a ausência de partidos fortes que representem interesses ligados às classes trabalhadoras deixou-as reféns de dois tipos de políticas nacionalistas. A complexidade de atitudes diante das migrações tem sido mediada sobretudo por duas visões, em suma: a racista/proibicionista (setor de extrema-direita) e a defesa da livre circulação de força de trabalho (partidos liberais e conservadores e social-democratas) e dos direitos humanos (partidos social-democratas). Não existe, a este respeito, uma política internacionalista com influência real nas sociedades europeias hoje.
O real impacto das migrações na vida dos povos (de onde saem e qual o impacto nos países de onde vêm) e na dos países onde chegam tem sido ignorado. Fala-se do direito a ir. Nunca do direito a ficar. Isto é, do direito a dispor dos seus recursos, ser força de trabalho – e viver – no seu país.
O direito histórico à autodeterminação dos povos disporem dos seus recursos e meios de sobrevivência – que celebra-se no fim da I Guerra Mundial – é hoje marginal nos discursos das lideranças europeias. A razão fundamental é que a iniciativa da defesa das migrações parte das classes dirigentes europeias, para contrariar a elevação salarial, pela escassez previsível da força de trabalho.
São, portanto, razões mais simples do que as propaladas divisões de pele, etnias, credos religiosos, que, existindo (e existem), têm sido ampliados pelos media e a indústria cultural, a reboque de políticas de regulação da flexibilização e/ou queda do preço da força de trabalho. Têm como força intelectual a esquerda pós moderna que sobrepõe a fragmentação identitária às classes, mesmo quando todos os trabalhos empíricos que têm como objeto estudos da competição salarial demonstram que os trabalhadores não são racistas com outros trabalhadores que não se apresentam como concorrentes diretos. Ou seja, um quadro intelectual de uma empresa pode vir de qualquer país estrangeiro para a Europa que por norma é bem recebido – o racismo surge se e quando há concorrência salarial, portanto perda do controle dos fatores de trabalho.
Recordemos o trabalho de Dick Geary, que sustentou também que o machismo nas fábricas no século XIX estava intimamente ligado ao fato de as mulheres entrarem no mercado de trabalho ganhando menos, sendo portanto um concorrente direto e que a mesma hostilidade por parte dos operários era destinada a todos aqueles, mulheres, crianças, outros operários homens, que ganhassem menos. Isto quando não havia organizações sindicais internacionalistas – como o caso bem sucedido dos Wobblies nos EUA – que combatiam esta concorrência colocando em prática – e não só em palavras – formas de luta solidárias que levavam à elevação do salário para todos.
A imigração está relacionada com um fator objetivo – o valor da massa salarial e a segurança no emprego. As políticas de “apelo à tolerância” mantendo a concorrência salarial, o dumping, conduzem os trabalhadores organizados à desmoralização ou ao apoio a partidos de extrema-direita, porque o fator objetivo mantém-se. Numa sociedade mercantilizada – em que a própria força de trabalho é ela mesmo uma mercadoria, em concorrência entre si -, os trabalhadores concorrem no setor, concorrem no mercado nacional, e concorrem no mercado internacional, para vender a sua força de trabalho. Ora, as políticas migratórias do lado dos Estados europeus têm respondido prioritariamente à gestão da força de trabalho e não em primeiro lugar – nem principalmente – a causas humanitárias ou de inspiração multicultural. Sem laços de solidariedade efetivos – como cotização para greve dos que ganham mais em favor dos que ganham menos, como fizeram em Portugal os estivadores, mantendo ambos a greve até fixar todos os salários no valor dos que ganham melhor – , o racismo terá base social onde progredir. Porque o sentido de justiça dos trabalhadores diz-lhes que a trabalho igual deve ser pago com salário igual. Não podemos deixar que a extrema-direita usufrua do beco sem saída oferecido pela “livre circulação”. Ao nacionalismo xenófobo deve contrapor-se a organização internacionalista, não a livre circulação liberal que na verdade de livre só tem a venda pelo preço mais baixo da força de trabalho, alternada com o desespero do desemprego.
Raquel Varela é colunista do Esquerda Online, historiadora, investigadora e professora universitária. Especialista em história global do trabalho e história das revoluções.
NOTAS
[1] Michael Roberts, The Long Depression, Chicago, Haymarket Books, 2016, p. 147
[2] Michael Roberts, The Long Depression, Chicago, Haymarket Books, 2016, p. 147
[3] Michael Roberts, The Long Depression, Chicago, Haymarket Books, 2016, p. 147.
[4] Referindo as migrações pós 1945, a Turquia tinha, enquanto Império Otomano já uma história de migrações para territórios germânicos.
[5] Yasar Aidyn, The Germany-Torkey Migration Corridor, The Transatlantic Policy Migration, Migration Policy Institute, 2016, p. 4.
[6] Robert O. Paxton, Europe in the Twenthith Century, Orlando, Harcourt Publisher, 1975, p. 171
[7] Ellen Meiksins Wood, The Retreat of the Intellectuals, Socialist Register, 1990. Republicada em Jacobin (https://www.jacobinmag.com/…/ellen-meiksins-wood-gramsci-s…/ acesso em 2 de Fevereiro de 2018.
[8] Dick Geary, European Labour. Politics From 1900 to the Depression, New Jersey, Atlantic Highlands, 1991.
Fonte: Esquerda Online.