O eleitoralismo é um mal critério, mesmo quando as perspectivas eleitorais da esquerda são boas. Mas quando são difíceis, como são agora, o eleitoralismo é a antesala de um pessimismo por antecipação. E o pessimismo é a antesala da desmoralização. Eleitoralismo é, por exemplo, escolher o candidato desconsiderando o programa, as alianças, e sobrevalorizando as pesquisas. Pensamento mágico é deixar-se seduzir pela força do desejo.
Aqueles que pensam que a esquerda deveria retirar todas as suas pré-candidaturas e apoiar Ciro Gomes são vítimas de um eleitoralismo, ou seja, uma tática de curto alcance. Existem na história derrotas eleitorais que são vitórias políticas, como a de Lula em 1989, e vitórias eleitorais que são derrotas políticas, como a de Dilma Rousseff em 2014. Mas a pior derrota é a derrota sem luta.
A tendência de decadência do capitalismo brasileiro sugere cenários pouco animadores nos próximos anos. Quando uma nação mergulha em uma dinâmica de decadência histórica, como é hoje o capitalismo brasileiro depois de um contração maior que 7% do PIB em três anos, e depois de quarenta anos de estagnação do PIB per capita oscilando um pouco acima ou abaixo de US$10.000,00, entramos em um etapa histórica perigosa.
Parece claro que já está consolidado, desde o impeachment em 2016, um consenso na classe dominante de que, mesmo um crescimento moderado da economia, algo em torno de uma expansão do PIB anual em torno de 3%, não será possível sem massivos investimentos estrangeiros. Querem tentar aproveitar a brecha aberta pelo conflito dos EUA com a China. Acreditam que o volume de investimento externo, especialmente, norte-americano pode aumentar, substancialmente. Por outro lado, esses investimentos estão ainda condicionados a quem vencerá as eleições presidenciais, e a uma política de choque fiscal e austeridade duríssima que terá como primeira medida a reforma da previdência social.
Seja qual for o resultado das eleições outubro, ainda haverá um novembro. E não parece que esta primavera poderá ser um alívio depois do “inverno do nosso descontentamento”. Vai ser muito difícil, independentemente, do resultado eleitoral, por enquanto, ainda imprevisível. Por isso, também, uma esquerda séria precisa equacionar a tática eleitoral à luz de uma estratégia. Uma estratégia é um posicionamento de médio prazo que ajude a clarificar objetivos táticos plausíveis.
No afã de compreender a situação brasileira, sob a pressão diária dos acontecimentos em cascata, é fácil perdermos o sentido das proporções. Nada adquire um sentido claro quando perdemos a magnitude, a escala, o tamanho do que estamos tentando analisar. Só com um esforço de abstração que nos eleve acima da “poeira” dos dias é que podemos ter uma perspectiva histórica correta.
Quando pensamos as tendências da radicalização social, devemos considerar os fatores objetivos, mas, também, outros, mais complexos e que são subjetivos, porque remetem às flutuações dos humores e da disposição da sociedade, das classes em luta, ou seja, da evolução da consciência social.
Os primeiros podem ser quantificados. O que não quer dizer que os números falem sozinhos. Há que relacionar os indicadores de maneira adequada. E descobrir interações que não são evidentes, podem estar ocultas. Mas a leitura dos fatores subjetivos é muito mais difícil, depende de interpretação. Na história, eles estão sempre enredados. A força de pressão de uns e outros é variável. É um trabalho de ourivesaria analítica, portanto, muito delicado, destacar os elementos para uma apreciação isolada e, depois, a reconstrução das partes em um todo, para realizar uma síntese.
Comecemos pelos fatores objetivos. Estudiosos do Banco Mundial, portanto, ideologicamente insuspeitos de qualquer simpatia teórica pelo marxismo, sugerem que, ultrapassados certos limites de degradação das condições econômicas e sociais, em comparação com o passado recente, produz-se uma ruptura da coesão social. Claro, sempre e quando não forem criadas redes de proteção social.
Quais são estes limites? Para alguns uma inflação anual acima de 50%, se não houver mecanismos financeiros de correção monetária, como atesta a experiência de superinflação latino-americana dos anos oitenta do século passado. Ou o desemprego da população economicamente ativa acima de 25% ou 30%, se não houver salário desemprego, como na Argentina em 2001. Ou o confisco indefinido das poupanças, como no Brasil em 1990. Ou a redução do salário médio nacional acima de 30%, seja sob a forma de confisco, ou de aumento nos impostos, sem garantias de recomposição, como na Grécia, há poucos anos. Ou ainda as contrações econômicas abruptas, uma síntese de combinações variadas dos fatores anteriores, com quedas vertiginosas dos PIB’s, fuga de capitais, que resultam em aumento da desigualdade social.
A idéia preconceituosa de que só sob condições de miséria biológica os trabalhadores pobres têm disposição revolucionária de luta não tem fundamento histórico. Se fosse assim, a África subsaariana estaria no epicentro das situações revolucionárias no século XX. Situações revolucionárias se abrem quando uma sociedade desaba em crise nacional, a classe dominante se divide, os setores médios se desesperam, e emerge no mundo do trabalho a vontade de lutar em defesa de si próprios, sendo os porta-vozes de um outro projeto de nação, arrastando atrás de si uma maioria social, inclusive parcelas das classes médias. Estas situações tendem a ser internacionalizadas, rapidamente, em ondas regionas de extensão. Foi o que aconteceu em janeiro de 2011 na Tunísia, contaminou, o Egito e alastrou-se como um vendaval no mundo árabe.
É difícil dizer qual será o limite dos brasileiros. Serão diferentes do que foram os limites dos argentinos em 2001, dos venezuelanos em 2002, dos bolivianos em 2003, ou dos egípcios em 2011. A experiência política da decadência nacional é um processo desigual. Porque as nações são distintas, com inserções diferentes no mercado mundial, com histórias recentes muito variadas, e em estágios de desenvolvimento díspares.
As classes sociais são, fundamentalmente, as mesmas no mundo em que vivemos, mas a sua configuração em cada país é única, particular, específica. Por exemplo, o peso dos assalariados urbanos pode ser maior ou menor, relativamente, aos pequenos proprietários, ou muitas outras variações. E deve entrar nesta equação da análise os fatores subjetivos. O humor social depende da percepção subjetiva. É sempre um processo de acumulação de mal estar.
Em algum momento, a quantidade dá o salto de qualidade, e o cidadão médio fica furioso, o ódio ao governo se alastra, e contagia uma maioria da sociedade. A vontade de derrubar o governo ganha a força de uma paixão política. Paixões são um estado de espírito intenso, é um momento de máxima exaltação. Não se pode manter por muito tempo. Os nervos e músculos da sociedade não aguentam. Misturam-se na mais alta intensidade, esperança e incerteza, rancor e insegurança. O medo da aproximação da hora de um confronto decisivo, a hora de medir forças, gera uma inquietação frenética. É a oportunidade histórica em que se abre a chance da transformação social. É ahora da situação revolucionária.
Em 1992, quando da mobilização para derrubar Collor – lembremos o primeiro presidente eleitos desde 1961 - a divulgação pela mídia de uma fonte em cascata na residência particular da família do presidente foi uma centelha que levou milhões de jovens às ruas, ficaram furiosos. Por quê a cascata? Não sabemos. Foi uma gota d’água. Havia uma enorme raiva acumulada por uma recessão que levou o desemprego nas grandes cidades acima de 20%, e uma super-inflação que destruía os salários. A fonte em cascata foi a faísca.
Chefes de Estado e de governos que exigem sacrifícios “bíblicos”, “sangue, suor e lágrimas”, mas alimentam um modo de vida ostentatório, meio faraônico, ou costumes impublicáveis, à maneira dos Borgias, inflamam a indignação do cidadão comum. Suas provocações incendeiam a cólera da juventude.
Muito antes que os setores mais vulneráveis do povo venham a conhecer as condições de miséria material asiáticas, ou de humilhação social predominantes no mundo árabe, o país estará incendiado por mobilizações que farão lembrar os anos oitenta. Consideramos tendências, não se pode dizer qual é o limite para a sociedade brasileira. Há, contudo, um modelo teórico a partir do qual podemos afirmar que estes limites existem. Não são limites rígidos, fixos, inamovíveis.
Consideremos os fatores mais objetivos. Vamos considerar três fatores. As sociedades urbanizadas da periferia têm menor tolerância à perda de direitos do que as sociedades ainda agro-pecuárias. Urbanização significa industrialização, portanto, peso social do assalariados, em todas as atividades e ramos. Significa maior complexidade produtiva, portanto, uma parcela maior dos setores médios. E significa escolaridade mais elevada.
A classe trabalhadora brasileira contemporânea, em sua maioria, é muito diferente da geração que entrou em cena nos últimos anos da luta contra a ditadura militar. Não acabou de chegar do campo para a cidade. Seus familares foram beneficiados pela mobilidade social ascendente. Ela está vivendo uma dinâmica inversa e regressiva, é jovem, muito concentrada em vinte cidades com um milhão ou mais de habitantes, e mais instruída. Nesse contexto social, encontraremos menos ilusões de que os sacrifícios de hoje terão recompensas no futuro. Têm menos paciência. Isso é assim porque a capacidade de expressar de forma independente os seus interesses é maior.
É mais difícil para a classe dominante impor uma destruição das conquistas históricas da geração anterior. A ruptura da coesão social é muito perigosa para o capitalismo. É difícil que se inicie um incêndio social, mas depois que começou, é muito mais difícil controlá-lo. Porque fica mais ou menos claro, rapidamente, que se trata de uma regressão social.
Segundo elemento: é mais fácil fazer essa destruição de direitos sociais em sociedades nas quais há uma parcela pequena da população economicamente ativa que é jovem. A emigração deixa sequelas sociais e políticas. A emigração de centenas de milhares de portugueses jovens, por exemplo, deu tempo ao salazarismo. No Brasil, a emigração de 5% da população economicamente ativa nos anos noventa do século passado deu tempo ao ajuste neoliberal recolonizador feito pelo governo do PSDB, presidido por Fernando Henrique Cardoso.
Os jovens têm maior disposição de luta, porque a população mais idosa tem mais medo de lutar, tem mais medo do que pode perder, ou menos esperança de que a luta coletiva possa abrir o caminho de vitórias. Naquelas sociedades em que há menos jovens é mais fácil impor regressões sociais. Por que há menos resistência. A coluna vertebral da resistência é sempre a geração mais jovem. Ela é a fagulha, a centelha, a faísca. Não pode vencer sozinha, mas é a juventude que incendeia a imaginação da classe trabalhadora e dos setores de classe média. No Brasil, a manifestações de 2013 foram um síntoma.
Terceiro elemento a ser considerado, e mais importante: a memória político-social da história recente. Naquelas sociedades nas quais, no período histórico anterior, os trinta anos do passado recente, a população viveu a experiência de crescimento econômico, existiu alguma mobilidade social, uma parcela da classe operária e a maioria da classe média conseguiram acesso a casa própria, os ajustes econômicos na forma de ataques sociais impiedosos manifestam-se como uma hecatombe inesperada. Nestas circunstâncias, a fúria popular tende a ser proporcional à desilusão. O potencial de explosividade é mais intenso.
O tema do patrimônio, ou do padrão de vida, e da casa própria. Por que a casa própria, ou seja a luta do MTST, tem tido tanta importância? Uma das transformações do século XX com a urbanização foi que a casa própria se transformou no objetivo central de consumo da vida do assalariados e da classe média. É o empréstimo mais importante da vida adulta de cada pessoa. Eles sabem que quando o trabalhador comum, o cidadão médio se sente encurraldado, tende a abandonar a credulidade política. A credulidade é uma forma da inocência política. As velhas lealdades aos partidos tradicionais se rompem.
Esta é a janela por onde passa a onda de radicalização social. Quando ela virá não sabemos, porque se decide no campo da luta política, que é o campo das conjunturas, dos ritmos curtos, das respostas rápidas, das iniciativas inesperadas, das surpresas, dos golpes e contra-golpes, das respostas instantâneas.
Mas nenhuma sociedade mergulha em decadência sem que haja resistência, portanto, luta social. A psicologia social não opera da mesma forma, nos mesmos ritmos, que a psicologica dos indivíduos. Na dimensão pessoal, qualquer ser humano pode desistir de lutar em defesa de si mesmo, e o faz, se rende, ponto, quebra. Está desgastado pelo cansaço, ou pelo desânimo, até pela desilusão. As classes sociais, não. As classes têm que lutar. Sempre lutam. A maior parte do tempo, resistem, e só um setor mais ativo avança. E este setor que vai na dianteira da luta se sente, incontáveis vezes, frustrado ou abatido, porque sabe que luta pelos outros, luta por todos, no lugar dos que não se movem, não se arriscam. É comum que este desenvolvimento desigual das mobilizações gere um certo desespero da vanguarda.
Porque as amplas massas não lutam com disposição revolucionária de vencer, a não ser, excepcionalmente. Mas quando surge esta disposição ela é a força social-política mais poderosa da história.
Não será possível transformar o Brasil em um Bangla Desh sem grandes lutas sociais. Mas grandes lutas podem ser vitoriosas ou derrotadas. Oportunidades podem ser aproveitadas ou desperdiçadas. Como aprendemos, amargamente, em Junho de 2013, ou em menor escala, com o processo aberto pela greve geral em abril de 2017, quando esteve colocada a possibilidade de derrubar Temer. Uma esquerda com responsabilidade estratégica deve pensar a tática eleitoral de 2018 com a perspectiva de se preparar para os grandes confrontos que virão depois de outubro.
Fonte: Fórum.